domingo, 26 de setembro de 2010

Conversando com Fiorin sobre interdiscursividade em uma perspectiva bakhtiniana: o Poema nº. 13 de Manoel de Barros



Maria Leda Pinto
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS


Neste artigo, procuramos estabelecer uma conversa com Fiorin, em seu artigo Interdiscursividade e intertextualidade[1] a partir do discurso estético de Manoel de Barros em seu Poema nº 13.

O que diz Fiorin

Em seu artigo Interdiscursividade e intertextualidade[2] Fiorin aborda a noção de interdiscurso em Bakhtin, partindo de dois objetivosverificar se, sob outro nome, a questão do interdiscurso está presente na obra de Bakhtin e examinar se é possível distinguir, com base nas idéias bakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade.
Para refletir sobre os objetivos estabelecidos em seu artigo, Fiorin traça inicialmente um histórico do aparecimento do termo intertextualidade afirmando que essa palavra foi uma das primeiras atribuídas a Bakhtin que ganhou prestígio no Ocidente, por meio da obra de Julia Kristeva. Segundo o autor, a palavra intertextualidade obteve cidadania acadêmica antes de o termo dialogismo alcançar notoriedade. Ressaltou ainda a contribuição de Roland Barthes em relação ao termo e finalizou pontuando que, ao longo do tempo, esse termo passou a ser utilizado de maneira frouxa.
Em seguida, centra-se na noção de interdiscurso e intertextualidade em Bakhtin fundamentando-se em toda a obra do teórico russo. Afirma inicialmente que a questão do interdiscurso, em Bakhtin, apresenta-se sob o nome de dialogismo, mas ressalta que é preciso refletir mais detidamente sobre essa noção. É preciso, em primeiro lugar, afastar duas leituras não procedentes, mas recorrentes sobre esse conceito; aquela que preceitua dialogismo como equivalente a diálogo no sentido de interação face a face e a outra que afirma quedois tipos de dialogismo: o dialogismo entre interlocutores e o dialogismo entre discursos.
Para o pesquisador brasileiro, o dialogismo não se confunde com a interação face a face, por ser uma forma composicional em que “ocorrem relações dialógicas que se dão em todos os enunciados no processo de comunicação, tenham eles a dimensão que tiverem” (p. 166). O outro aspecto é que há dialogismo entre discursos, pois o interlocutor existe enquanto discurso. Portanto, não existe dialogismo entre interlocutores, o que há é “um embate entre dois discursos: o do locutor e o do interlocutor, o que significa que o dialogismo se dá sempre entre discursos” (p. 166).
Considerando o que efetivamente é dialogismo em Bakhtin, Fiorin destaca dois sentidos que lhe interessam para a concretização dos objetivos traçados na discussão sobre a interdiscursividade e intertextualidade. Primeiramente, concebe o dialogismo como o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto, seu princípio constitutivo. Em segundo lugar, dialogismo é uma forma particular de composição do discurso[3].
Pontuando que os homens não têm acesso direto à realidade, tendo em vista que nossa relação com essa realidade é sempre mediada pela linguagem e destacando a afirmação de Bakhtin de que não é possível ter-se a experiência do dado puro, o autor mostra que o real se apresenta para nós semioticamente em uma evidência de que o nosso discurso não faz uma relação direta com as coisas e sim com outros discursos. “Essa relação entre os discursos é o dialogismo”. Dessa maneira, se não temos relação com as coisas e sim com os discursos que lhes dão sentido, “dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem” (p. 167).
No entender do autor, Bakhtin não nega a existência do sistema da língua, quepor trás de todo texto, encontra-se o sistema da língua” (Bakhtin, 1992, p. 331), o qual, para o teórico russo, é necessário para o estudo das unidades da língua, mas que, no entanto, nãoconta do modo de funcionamento real da linguagem. Em razão disso, Bakhtin propõe uma outra disciplina que nomeia de metalingüística[4] (p. 320). Essa disciplina tem por objeto “o exame das relações dialógicas entre os enunciados, seu modo de constituição real” (Fiorin, 2006, p. 168).
Pautado no texto de Bakhtin O Problema do texto[5], Fiorin vai tratar do enunciado e das unidades da língua, mostrando as características próprias destas e daquele e, conseqüentemente, as diferenças que se evidenciam. Dentre essas características, destacamos aquela que evidencia que as unidades da língua compreendem as palavras e as orações, enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação. “As primeiras são repetíveis, os segundos, irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos” (p.168).
Fiorin observa que não é a dimensão que define o que é um enunciado, que este pode ser tanto uma resposta de uma palavra quanto um romance de vários volumes. O que delimita a fronteira do enunciado “é a alternância dos sujeitos falantes. Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabelece entre todos eles” (p. 168). Dessa forma, o dialogismo é constitutivo do enunciado e este não tem existência fora daquele. “A relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal” (p. 169).
Neste sentido, vejamos o que diz Bakhtin (1992, p. 316):

Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavraresposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em uma dada questão, em um dado assunto, etc. É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições.

As várias características do enunciado e das unidades da língua são pontuadas por Fiorin com exemplificações de vários textos, bem como a distinção entre texto e enunciado. Diante das considerações: se um texto tem um autor, é irrepetível e ganha sentido na relação dialógica, não é então sinônimo de enunciado? o autor afirma que é preciso ler cuidadosamente o que o teórico russo coloca acerca do assunto ao longo de suas obras[6]. Nesse sentido, vejamos o que afirma Bakhtin (1992, p. 330-351):

O texto enquanto enunciado. (...) Dois fatores determinam um texto e o tornam um enunciado: seu projeto (a intenção) e a execução desse projeto. (...) Fora dessa relação (a relação dialógica), o enunciado não tem realidade (a não ser como texto).

Como observa Fiorin (2006, p. 180), a partir do momento que o texto se torna um enunciado, ele é distinto deste e

[...] se o texto é distinto do enunciado e este é um todo de sentido marcado pelo acabamento (a obra), dado pela possibilidade de admitir uma réplica, cuja natureza específica é dialógica, o texto é a manifestação do enunciado, que é uma ‘postura de sentido’.

O autor conclui afirmando que: se Bakhtin estabelece uma diferença entre texto e enunciado; se o enunciado pode ser aproximado ao que se compreende por interdiscurso — tendo em vista que se constitui nas relações dialógicas, enquanto o texto é a manifestação desse enunciado — é possível estabelecer uma diferença entre interdiscursividade e intertextualidade: “aquela é qualquer relação dialógica entre enunciados; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquela em que se encontram num texto duas materialidades textuais[7] distintas” (p. 191).
A historicidade do discurso, em Bakhtin, é apreendida no movimento, lingüístico da constituição da noção de dialogismo. Segundo Fiorin (p. 191-192): “É na relação com o discurso do Outro, que se apreende a história que perpassa o discurso. (...), em Bakhtin, a História não é algo exterior ao discurso, mas interior a ele, pois o sentido é histórico”.

A Interdiscursividade no discurso estético de Manoel de Barros – Poema nº 13

Poema Nº 13

Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés de seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
(BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 61.)

Considerando que para Bakhtin o interdiscurso se constitui nas relações dialógicas, a construção de sentidos do poema nº13 se constitui na interdiscursividade do discurso estético de Manoel de Barros com outros discursos, já que o autor vai buscar nesses discursos, podemos dizer que uma sustentação/justificativa para o seu discurso. Quando cita Cristo, São Francisco e Vieira está se respaldando nos grandes feitos de alguns sujeitos que fizeram a história do discurso religioso. Quando cita Shakespeare e Chaplin, nomes do teatro e do cinema, se respalda na história do discurso artístico. Além desses discursos, outras vozes atravessam o poema: a vida dos nobres, seus fracassos e sua soberbia, explicitada no texto como uma doença.
Dessa maneira, o poema apresenta algumas possibilidades de interpretação/efeito de sentido, nessa tessitura polifônica de “vozes”. Numa perspectiva polifônica da ironia, podemos entender que o poeta adota uma posição crítica em relação ao discurso religioso e artístico que não pode assumir socialmente, tendo em vista que os feitos já são consagrados no contexto histórico e social da humanidade. Coloca, então, esses feitos no mesmo patamar de uma das piores características humanas: a soberba, que qualifica como doentia, valendo-se do discurso citado para refutá-lo.
A outra possibilidade de efeito de sentido tem relação com o discurso do poeta no seu desejo de ser “coisa”, “outro ser”. Se o poeta quer ter “...o condão de sê-las”( as coisas), que é preciso transfazer a sua realidade (o Pantanal), embora isso possa parecer ao outro uma “soberbia”, uma “doença”, ele equipara todo o destaque reservado à “Humildade”, às “aves”,aos “peixes”, ao “amor”, aos “tolos”, aos “vagabundos” também ao que para ele tem essa mesma importância: “...as pobres coisas do chão mijadas de orvalho”, a quem sente-se capaz de monumentar.
No verso “Hei de monumentar os insetos!” é possível construirmos o sentido de que se outros monumentaram coisas que são já agora monumentos; o poeta monumenta o que ninguém quis considerar: os insetos, as coisas, o desprezível, o sobejo (mijo). Nesse sentido, existe também aí um interdiscurso com a confissão: ele está confessando sua soberba de querer monumentar, como outros, que em outros momentos da história, monumentaram.

Considerações Finais

Essa é uma primeira conversa, que está aberta a outras conversas com outros discursos, em outros momentos históricos. Vale ressaltar também que no momento em que adentramos o discurso estético de Manoel de Barros — por meio do Poema nº 13 — para com ele dialogarmos com o discurso de Fiorin, posicionando-nos como sujeito/leitor, a construção de sentido foi gradativamente construída, fazendo-nos interagir com o poema e o texto, num processo de escolhas e de mobilização do universo de conhecimentos que já tínhamos e de outros que tivemos de ir buscar — por meio de outras leituras — a fim de chegarmos aos efeitos de sentido possíveis para nós neste momento e que constituem a conversa realizada.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Introdução e Tradução do russo Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARROS, Diana L. P. de. & FIORIN, J. Luiz (Orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. Ensaios de Cultura, n. 7. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto, 2006, p. 161-193.


[1] FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto, 2006, p. 161-193.
[2] FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto, 2006, p. 161-193.
[3] Em nota, Fiorin destaca um terceiro sentido que registramos aqui: visto de uma forma mais geral, dialogismo “é o princípio de constituição dos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo” (FIORIN, 2006, p.192).
[4] Fiorin chama esta disciplina de Translingüística e justifica sua escolha, à maneira dos franceses, em razão dos valores semânticos que cercam a palavra metalingüística. “Esse problema de denominação é uma prova da correção das teses bakhtinianas sobre o problema da distinção entre as unidades potenciais do sistema (objeto da Lingüística) e as unidades reais de comunicação (objeto da translingüística). Do ponto de vista do sistema, meta (prefixo grego) e trans (prefixo latino) são equivalentes: no entanto, eles são completamente distintos no funcionamento discursivo”. O autor coloca que o objetivo de Bakhtin era instituir uma ciência que fosse além da Lingüística, que pudesse analisar o funcionamento real da linguagem e não só o sistema virtual que permite esse funcionamento (p.162).
[5] Esse texto faz parte da Obra Estética da criação verbal que tem hoje, no Brasil, duas traduções. Na tradução do francês, feita por Maria Ermantina Galvão G. Pereira, o referido texto se encontra às páginas 327- 58 e na tradução do russo, elaborada por Paulo Bezerra, às páginas 307- 35. A obra utilizada por Fiorin é a tradução do francês e datada de 1992.
[6] O leitor encontrará, principalmente, na obra Estética da criação verbal maiores informações e aprofundamento em relação às idéias de Bakhtin sobre enunciado, texto e gêneros do discurso.
[7] Para o autor, materialidade textual compreende um texto em sentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura um estilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. (p.191).

Nenhum comentário:

Postar um comentário