Maria Geralda de Miranda, Pós-Doutora pela UFRJ. Coordenadora do Curso de Letras da UNISUAM, Líder do grupo de Pesquisa Diretório CNPq Estudos da Linguagem: Discurso e interação. mariamiranda@globo.com
O sujeito que fala no romance é um homem essencialmente social, historicamente concreto e definido e seu discurso é uma linguagem social (ainda que em embrião), e não um ‘dialeto individual’. O caráter individual, e os destinos individuais e o discurso individual são, por si mesmos, indiferentes para o romance. (Bakhtin)
É pela via da intertextualidade que as vozes da história se fazem representar no romance Partes de África, do escritor português Helder Macedo. Como afirma Linda Hutcheon (1991, p.157), a intertextualidade é “uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto.” A compreensão de Bakhtin (1997) do texto literário como um “mosaico, construção caleidoscópica e polifônica, estimulou a reflexão sobre a produção do texto, como ele se constrói e como absorve o que escuta.
A maneira que Helder Macedo escolheu para abordar a história da colonização portuguesa em Partes de África está de acordo com a forma bakhtiniana de pensar o romance. O jogo estabelecido pelo escritor português na representação do papel do narrador e de algumas personagens é muito interessante. A polifonia, termo cunhado por Bakhtin (1997, p. 185), em seus estudos sobre “a poética de Dostoiéviski”, se apresenta de Macedo de maneira peculiar. São diferentes personagens e, por isso, diferentes consciências a discutirem e interagirem na narrativa romanesca.
Pensamos que é quase impossível falar de polifonia, sem falar de intertextualidade (sobretudo como a define Gérard Genette (1986, p. 97), como sento “tudo o que põe um texto em relação manifesta ou secreta com outros textos”) e vice-versa, uma vez que cada fala – seja de narrador ou de personagem – pode estar “prenhe” das palavras de outro. Mesmo sendo conceitos diferentes, polifonia e intertextualidade necessariamente se tangenciam, já que a única forma de se ter acesso a um determinado texto em um outro contexto é através da voz, seja ela de que narrador for. Afinal, como afirma Dal Farra (1993, p. 117), um escritor é
sempre alguém determinado biograficamente, que escreve sobre factos, experiências, sensações, etc., da sua lavra pessoal, sobre dados do seu conhecimento, modificando ou conservando os sucessos reais, trazendo da memória alguns, sobre os quais tem ou não consciência de estar operando fidedignamente, e outros que de propósito transforma – eis, pois, a substância original de que o romance se nutre, a zona secreta da escrita, que nada tem de prestidigitação.
Na verdade, o escritor Helder Macedo lança mão do discurso irônico, brinca com o processo de escritura e mistura ficção e história. Em Partes de África há um jogo explícito em que se tenta nivelar o discurso do autor e o discurso do narrador, sem falar na metanarratividade – que é, de acordo com Umberto Eco (2003, p. 199), a “reflexão que o texto faz sobre si mesmo e sobre a própria natureza.” – e da intrusão autorial que ocorre quando o autor “reflete sobre o que se está contando e que talvez convide o leitor a participar de suas reflexões.”
As estratégias discursivas desenvolvidas no romance, certamente, têm um significado que está para além do capricho formal do competente enunciador, uma vez que a fragmentação narrativa e a utilização de “gêneros” variados veiculam conteúdos ideológicos do texto pós-moderno e do texto pós-colonial, que anunciam, quase sempre, o fim de verdades imutáveis. Observa-se, então, que o propósito do enunciador talvez seja fazer com que a história relatada no livro pareça de fato fingida, isto é, que o leitor não a leia como uma autobiografia, apesar dos dados, ou de os traços da personagem-narrador confundir-se com os do autor –
Estou com cinqüenta e tal anos e em férias sabáticas, coisas que nunca me tinham acontecido ao mesmo tempo. E foi assim que pude aceitar a hospitalidade do meu bom amigo Bartolomeu Cid dos Santos, na sua bela casa, mais amada que usada. (...) Em todo caso já se sabe que as férias vão chegar ao fim logo que comece a habituar-me (...) Tenho ao menos a consolação de ter trazido papel suficiente para durante alguns meses poder mandar Londres e a Cátedra Camões às urtigas. (MACEDO, 1999, p. 9 – grifo nosso)
O jogo entre o autor e narrador é particularmente interessante no texto. O eu que enuncia desdobra-se, ora em narrador, ora em autor. O autor, entidade do mundo real, que não deve ser confundida com o narrador (este é o item número um da teoria narrativa), vai dissociar-se de si próprio, ao assumir a função narrativa, para contar uma história talvez “verdadeira” de forma fingida.
No romance de Helder Macedo, a tensão existente entre autor e narrador é um simulacro que permite que se discuta essa questão por duas vias. Em primeiro lugar, observa-se que, no universo diegético dos textos narrados em terceira pessoa, e que possuem narradores heterodiegéticos (REIS & LOPES, 1989, p. 121), simula-se a neutralidade do narrador, e há uma preocupação com o arranjo dos fatos de modo que eles pareçam “verdadeiros”, uma vez que é afastada a subjetividade enunciativa. Em Partes de África, o enunciador avisa que vai mesclar as duas naturezas de fatos – os que aconteceram e os que poderiam ter acontecido (históricos e ficcionais) – para além de denunciar os “buracos” deixados na seqüenciação da narrativa e nem sempre percebidos pelo destinatário.
Em segundo lugar, a tensão entre estas duas instâncias do fazer literário autor/narrador, trazida ao texto, se revela como uma “falsa tensão”, porque o enunciador de Partes de África conhece a diferença ontológica, como diriam Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, entre autor e narrador. Como crítico literário que é, titular da Cátedra Camões, em Londres, conhece bem o simulacro representativo que é o texto.
Tanto a palavra autor, que aparece no título do primeiro capítulo – “Em que o autor dissocia de si próprio e desdiz o propósito do seu livro” –, quanto a palavra narrador no fragmento acima demonstram que é de interesse do enunciador produzir essa espécie de ambigüidade, já que cada um dos termos tem o seu lugar na ficção. O enunciador fala também de um “erro evidente”, colocar uma personagem e um episódio – o episódio do chapéu sem nenhuma importância aparente para a sua história –, “sobretudo em um livro que se pretende com poucas palavras”. Mas o “uso perdulário da economia narrativa” tem o propósito claro de não deixar o leitor identificar-se com a história, nutrir simpatias ou rancores. O enunciador quer que o enunciatário chegue por si às conclusões autorais previamente determinadas. Como em um quebra-cabeça, a busca do sentido da obra é um exercício que o leitor precisa fazer durante o percurso de leitura.
Ora, conforme já procuramos argumentar, uma das estratégias de composição de Partes de África é a de não procurar esconder a “distância ontológica”, digamos assim, existente entre o autor e narrador, daí certamente a escolha da primeira pessoa para narrar a história. O narrador, em virtude da opção por este foco narrativo, além da representação e do controle das ações e das personagens, também participa do mundo narrado, como personagem central, a quem podemos chamar de narrador autodiegético. (REIS & LOPES, 1989, p. 118).
Como já procuramos demonstrar, há vários jogos estabelecidos pelo narrador-autor em Partes de África, mas um deles é certamente entre texto e leitor, ou se preferirmos, entre escrita e leitura. É claro que é pela via da leitura que se poderá armar o quebra-cabeça romanesco. A importância dada ao receptor é também uma característica das rupturas pós-modernas.
Obviamente que esse leitor idealizado e neutro não tem o perfil daquele encarregado pelo autor-narrador de Partes de África de encaixar as peças do “mosaico incrustado de espelhos” (MACEDO, 1999, p. 39), que é o seu romance. A ausência de uma sintaxe narrativa linear, que é também uma característica da pós-modernidade, estampa mais ainda a necessidade de cada leitor escrever um outro texto. O narrador-autor também não esconde que o seu romance, ou o seu mosaico, é produto da sua leitura de tantos outros textos, que ele vai trazendo para as páginas em branco. Neste aspecto, o número de intertextos é variadíssimo, o que também informa que tipo de leitor é o escritor Helder Macedo.
É muito interessante também o modo pelo qual o autor insere o capítulo XIV no romance, intitulado “Luís Garcia de Medeiros Um drama jocoso – 2o ato”. O jogo de máscaras aqui faz refletir ainda mais sobre as estratégias discursivas empreendidas no texto. A flagrante intertextualidade entre o conteúdo do capítulo com a ópera Don Giovanni de Mozart, e o modo como o autor joga com a questão da autoria do “drama” nos leva a pensar até mesmo na estratégia autoral da heteronímia. Isto é, Helder Macedo usa várias máscaras no romance, sendo Luís Garcia de Medeiros uma delas.
Por outro lado, a estratégia utilizada pelo autor parece estar além da utilizada na heteronímia, pois as partes inseridas no romance – que o enunciador afirma serem escritas por outros autores – são, afinal, submetidas a um título geral Partes de África e a um autor, Helder Macedo. O texto inserido no capítulo XIV, que segundo Macedo é de autoria de Luís Garcia de Medeiros, é que, na verdade, faz a releitura da ópera Don Giovanni, com as atualizações consoantes à época salazarista.
Não vamos aqui fazer uma análise do “drama jocoso”, nem da ópera Don Giovanni de Mozart que se reescreve naquele jogo, que nos lembra o Pierre Menard de Borges, mas tão somente reiterar que a releitura feita pelo suposto Luís Garcia de Medeiros permite várias possibilidades de interpretação. A sua personagem João de Távora, lido como Don Giovanni, é desenhado com um perfil diabólico, sem moral e sem ética, como o da ópera, ou seja, a obra primeira. Além de seduzir muitas mulheres, é acusado de entregar à PIDE o Comandante Diogo Salema, antigo homem do regime salazarista e pai da feminista Ana Maria, personagem que Távora também seduziu. Sem falar que Lopo Reis é o reflexo especular de Leporello, servo e cúmplice de Don Giovanni. E iríamos por aí no jogo da intertextualidade proposta.
No entanto, o que aqui nos interessa enfatizar, na verdade, é que o “drama”é mais uma das metáforas que o autor utiliza para compor o seu mosaico, incrustado de espelhos. Poderíamos dizer até que o capítulo XIV é uma parte que serve para metonimizar o romance inteiro, pois, se entendemos que a obra é a via pela qual o autor sinaliza a chegada de um novo tempo, a partir de uma releitura da história, o “drama” também simboliza isso, ao reler modernamente a ópera de Mozart e apontar para o fim do salazarismo.
Quanto à questão da autoria, Macedo, no capítulo XII, avisa que vai inserir o escrito de Luís Garcia de Medeiros em seu livro e, no capítulo XIII, ele dá as coordenadas para o leitor sobre a transposição feita por Medeiros da ópera para o “drama”. Ao dar as tais coordenadas, Macedo, também leitor de Medeiros, e provavelmente espectador de Mozart, vai reescrevendo em suas Partes de África o que o amigo Medeiros já havia escrito, fazendo cortes e alguns comentários –
Farei a transcrição, com alguns cortes que indicarei, a partir do segundo ato – a seqüência, digamos, mas intimista – deixando implícitas as confrontações ideológicas e sexuais entre João de Távora e Ana Maria, a prisão do Comandante, o crescendo da expectativa revolucionária até ao anticlímax – que o Medeiros, é claro, baseou-se na nossa experiência comum – de que afinal tudo ficará em nada, e a tal orgia, que João de Távora improvisou para celebrar o fiasco (...) e para cujo propósito festivo tinha aberto a casa (...) que herdara de sua mãe. (MACEDO, 1999, p. 135)
Assim, vemos que tanto no capítulo XIII, como no XV, o procedimento do narrador-autor de Partes de África, é totalmente metanarrativo. Macedo trava com o leitor uma conversa sobre os procedimentos discursivos de sua história, conduzindo este a raciocinar sobre as suas metáforas. Evidentemente que o seu jogo, constituído sob o viés da ironia, é muito sofisticado, e o leitor, se não tiver um certo repertório cultural – no caso concreto acima mencionado, se não conhecer também a ópera Don Giovanni –, não conseguirá estabelecer as relações necessárias ao entendimento. E aí a reflexão contida no capítulo XV faz todo o sentido:
Perguntará agora o descontente leitor dessa prosa sem rima: mas o que é que o drama salazarista do tal Medeiros ausente que nem Dom Sebastião em parte incerta e que, pela amostra, de jocoso não tem muito nem pouco, vem a fazer neste livro como uma das partes de África prometidas na capa? (...) Ao que responderei com a cansada paciência das salas de aula, depois de (...) fazê-lo sentir-se tanto como um réptil (...) O que tem a ver com as minhas partes de África? Mas tudo, contenha um pouco essa sua tão dezarrazoada indignação e pense só mais um bocadinho, mas tudo. O que é que o senhor estave a fazer, enquanto fingia que estava a ler? (MACEDO, 1999, p. 219 – grifo nosso)
Esse fingimento pertence tanto ao campo discursivo onde o autor e o narrador se encontram, jogando seu jogo de verdade e de fingimento, quanto ao campo interpretativo do leitor, a quem é “cobrada” uma certa competência cultural e que pode ser tudo, menos leitor ingênuo. Só assim, ele, o leitor, consegue fazer parte do jogo de espelhos, ao constituír-se também como mais uma voz a engrossar o coro de vozes presentes no texto. E é desta forma também que ele poderá compreender a “lógica” do mosaico, proposta pelo escritor.
Para ir fechando, precisaremos, mais uma vez, convocar a voz de Bakhtin (2002, p. 134). Conforme observa o autor, “a linguagem é dada ao romancista estratificada e dividida em linguagens diversas. É por isso que mesmo onde o romancista se apresenta com uma só linguagem totalmente fixa, (...) ela ressoa em meio do plurilingüismo.” Na realidade, o que Bakhtin está dizendo se vincula à sua visão polifônica do romance, ou seja, que o gênero romanesco só pode ser pensado a partir de um jogo de vozes, porque o sujeito que fala no romance utiliza uma “linguagem social”, sendo, pois, avesso ao discurso individual, ou monológico.
Como salienta Inocência Mata (2003, p. 25), Bakhtin vai além dos formalistas russos, precisamente pela “contextualização da obra literária na sua série sociológica, pelo fato de se preocupar não apenas com a aplicação do método formal na análise do enunciado textual, sem ter em conta que o ‘produto’ é o resultado da interação verbal com outras linguagens”. Ainda segundo a autora, ao introduzir “a noção de “cronótopo”, isto é, a correlação do tempo e do espaço históricos com o fenômeno literário, Bakhtin assegura que a obra literária, enquanto manifestação de um gênero vive da tensão criativa entre a sua singularidade e a continuidade da memória do (gênero).” Concordamos com Mata, pois, conforme procuramos demonstrar, o romance aqui estudado é produto da tensão criativa entre história e ficção e/ou entre memória e história. Também enfatizamos que o jogo de vozes presente no texto e a atualização das vozes da história corroboram o pensamento de Bakhtin sobre a impossibilidade de pensar a obra literária deslocada de um espaço e de um tempo histórico. E é desse jogo que surge o mosaico “incrustado de espelhos” em que se insere o próprio leitor, cuja voz é mais uma a juntar-se a tantas outras que se presentificam e se encenam no texto.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiésvski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
_______. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. São Paulo: Huicitec, 2002.
________. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DAL FARRA, Maria Lúcia. Epitáfio para a metaliteratura. In Vértice 53, março/abril, 1993, pp. 117-120.
GENETTE, Gérard. Introdução aos arquitexto. Lisboa: Vega, 1986.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2002.
MACEDO, Helder. Pedro e Paula. São Paulo: Record, 1999.
MATA, Inocência Luciano dos Santos. Ficção e história na obra de Pepetela: Dimensão extratextual e eficácia.Tese de Doutorado, defendida na Universidade de Lisboa, em 2003.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário da Teoria da Narrativa. São Paulo: Ática, 1989.
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