Maria Edith Romano Siems[1]
“Corporeidade e exigências estéticas nas relações no contemporâneo”, um dos temas postos na edição 2010 das rodas bakhtinianas, traz já em sua essência, uma provocação. Como pesquisadora na área da formação de professores e, dentro dessa, da formação de professores no campo da Educação Especial, a temática me propõem um deslocamento do olhar até então academicamente construído.
Nas práticas de meu cotidiano, como formadora de professores em cursos de Pedagogia e em Licenciaturas, o cinema, além de espaço de fruição de prazer estético, mostrou-se ferramenta pedagógica fundamental. Ferramenta de deslocamento dos limites do tempo-espaço em que nos colocamos, instrumento de sensibilização, de transfiguração, de transposição de limites e olhares.
Entendendo como Bakhtin, em seu tão curto quanto denso texto Arte e Responsabilidade (Bakhtin, 2003, p. XXXIII e XXXIV), a relevância de integrar ciência, arte e vida como campos de unidade do humano, o cinema, a docência e os pensares acerca da deficiência vieram se mesclando, na representação pessoal sobre o mundo e, como tal, como espaços de construção de ciência e de diferentes meios de estar na vida.
Neste texto trazemos à discussão algumas inferências acerca dos olhares socialmente construídos sobre e com a deficiência, no espaço escolar e em produções cinematográficas, com destaque para o olhar contra-hegemônico do cineasta espanhol Pedro Almodóvar que, ao caminhar na contramão da lógica até aqui constituída, nos instiga, responsável e responsivamente, à naturalizar as diferentes maneiras de ser humano.
Apontamos inicialmente as relações estabelecidas com o corpo deficiente no espaço escolar, instigada pelos discursos da Inclusão Educacional, contrapondo-as à imagem dos personagens com deficiência efetivamente incluídos na obra de Almodóvar. E, para nos auxiliar a pensar acerca desses temas, nos questionamos: quais elementos da arquitetônica bakhtiniana nos favoreceriam um aprofundamento desse olhar?
A Inclusão Educacional em nossos sistemas é frequentemente traduzida como inclusão de pessoas com deficiência, embora pudéssemos estende-las a tantos outros grupos considerados como minoritários. Historicamente foram sendo incorporados no convívio coletivo nos espaços da educação formal, sujeitos de origens étnicas diferenciadas e, não é demais lembrar, a própria aceitação da educação das mulheres é relativamente recente em nossa trajetória de construção social, embora se caracterize como direito ainda não reconhecido em todas as sociedades humanas. Neste sentido, conforme apontado na Declaração de Jomtiem, apesar dos esforços mundiais no sentido de oferecer Educação para Todos, dois terços dos adultos analfabetos no mundo são mulheres, em muitos países, ainda formalmente impedidas de ter acesso ao conhecimento.
Em nosso país, caminhamos na direção de incorporar a presença de mulheres, de negros e de populações de diferentes etnias, dentre os quais representantes dos tantos grupos indígenas que nos circundam em nossas escolas regulares. Verificamos, no entanto, sérias resistências à presença dos indivíduos que apresentam condições físicas que contrariam a noção de “normalidade” estabelecida para os corpos humanos.
Em que pesem as garantias legais presentes em vários de nossos instrumentos de normatização legal, no cotidiano das salas de aula ainda prevalecem as discussões sobre a condição real de se efetivar a inclusão de pessoas com deficiência nas salas de aula consideradas como de ensino regular. Permite-se sem maiores pudores, estabelecer a marca biológica como elemento que autoriza o expurgar do humano, do social, no indivíduo, e seu encaminhamento para espaços segregados de educação.
São reincidentes os discursos que nos apontam as práticas de “inclusão excludente” (KUENZER, 2005) em que pessoas com deficiência são matriculadas nos espaços educacionais regulares, mas ali permanecem sem que usufruam da condição de pertença. Estigmatizados pelas marcas biológicas de falta, pelas ausências que lhe são atribuídas, findam, nesta pretensa Inclusão Educacional, por ser privados do “nascimento social” no sentido apontado por Bakhtin:
O indivíduo humano só se torna historicamente real e culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe e através da classe. Para entrar na história é pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele não entra na história. É necessário algo como um segundo nascimento, um nascimento social. ( BAKHTIN, 2004, p.11)
É desse nascer social, construído no universo do coletivo, que vimos privando muito de nossos congêneres. Socialmente já não mais nos permitimos restringir a presença de mulheres, negros ou índios em nossos espaços de circulação. Ainda nos autorizamos, no entanto, a discutir o direito ou não de que os sujeitos humanos que apresentam corpos “com defeito” compartilhem os vários espaços sociais, dentre eles o educacional.
Na lógica cotidiana de nossas escolas, e nos discursos que permeiam o senso comum, ainda encontramos a explicitação da defesa de que pessoas que apresentam deficiências seriam melhor educadas caso ocupassem espaços específicos e especializados. Espaços estes que deverão se constituir com base nas características biológicas do outro “anormal”, desqualificando-se desta forma seu direito de acesso a toda a riqueza e complexidade das relações estabelecidas nos espaços destinados ao convívio do conjunto dos indivíduos pertencentes ao universo categorizado como “normal”.
É interessante notar que, mesmo quando pautados nos documentos de normatização legal que asseguram o direito à educação preferencialmente nos espaços de ensino regular (BRASIL, 1996; BRASIL, 2001), a vinculação dos alunos com deficiência ao sistema ainda se dá a partir da marca biológica que lhe for atribuída por um laudo clínico. São os alunos “inclusos”, demarcados pelo que lhes “falta” e não por sua condição de sujeitos humanos, portanto sujeitos sociais. Pautados no discurso verbalizado de nossa responsabilidade ética em educar a “todos”, muitos educadores se direcionam no sentido de estabelecer uma docência que se pense “inclusiva”. No entanto, conforme nos lembra Bakhtin,
Que uma proposição seja válida em si e que eu tenha a habilidade psicológica de compreendê-la não é suficiente, nem mesmo para o próprio fato da minha concordância real ex-catedra com a validade da proposição – como meu ato realizado. E que é necessário acrescentar é alguma coisa saindo de dentro de mim mesmo; a saber, a atitude moral de dever-ser da minha consciência com relação a proposição teoricamente válida em si. É precisamente essa atitude moral da consciência que a ética material desconhece, como se ela pulasse por cima do problema oculto aqui sem vê-lo. Nenhuma proposição teórica pode fundar imediatamente um ato realizado, nem mesmo um ato pensado, em sua real execução. ( BAKHTIN, 1993, p.41)
Caminhando em direção semelhante, em perspectiva de colocar holofotes sobre a diferença, posta sobre um outro, fora de mim, a arte, como espaço de reflexão e de registro de nossas práticas sociais vem trazendo ao longo dos últimos anos produções que apontam essa visibilidade que vem sendo dada às questões que envolvem a presença do corpo humano com deficiência. Dentre as manifestações artísticas que vem apresentando olhares sobre nossas relações com a deficiência, destacamos o cinema como campo de reflexão.
A produção cinematográfica tem sido pródiga na oferta de filmes que registram trajetórias de indivíduos com deficiência, a partir de seus olhares ou dos olhares de seus próximos, por vezes falando sobre a deficiência, em outros, falando com a deficiência, mas em geral contando histórias que tomam a deficiência como elemento fundante. Protagonizadas pela deficiência, não pelos sujeitos. São retratos de “mitos, heróis ou vítimas” (SILVA, 2000).
Na contracorrente dessa tendência que repete, na arte, o que fazemos no espaço escolar – demarcando a deficiência como tônica que se sobrepõem ao “humano”, somos provocados pela perspectiva inquietante de Pedro Almodóvar. Cineasta espanhol pródigo em impactar o olhar de seus espectadores com sua palheta multicolorida, e uma leitura peculiar sobre o mundo, o ator, diretor e roteirista Pedro Almdóvar apresenta uma profícua produção cinematográfica referenciada pela imprensa por vários de seus aspectos pouco convencionais: a discussão da sexualidade (hetero, homo, transexual), os embates quanto aos papéis sociais de sujeito – mães, dirigentes religiosos, artistas e tantos outros temas polêmicos que traz à tona em seus filmes.
Nas análises da crítica sobre sua filmografia, poucas são as referências a uma presença que tem sido marcante em volume expressivo de seus filmes: a de pessoas com deficiência. “Abrazos rotos” (2009) desenvolve-se em torno da trajetória de vida de um escritor cego; “Carne Trémula” (1997) em torno das dificuldades afetivas e sexuais de um policial usuário de cadeira de rodas; em “Hable com ella” (2002), além das discussões que envolvem a ausência de consciência dos sujeitos, somos brindados com a dança de Pina Bausch em uma coreografia que envolve, entre tantos e tantos elementos, a presença de corpos com deficiência física dançantes. Isso apenas para destacarmos três exemplos da presença da deficiência em sua ampla filmografia.
Mas, o que diferencia a deficiência mostrada por Almodóvar do tratamento convencionalmente dado pelo cinema aos sujeitos com deficiência? De maneira geral, podemos indicar que, em nenhum dos filmes acima citados, a deficiência assume o caráter de protagonista das histórias contadas. Ao contrário, o que vemos na tela são as vivências de seres humanos permeados por seus dramas, afetos, amores e desamores, compondo uma caminhada que tem como foco o “ser”. A deficiência enquanto condição do ser, não é negada, pelo contrário, como característica do ser, as deficiências postas direcionam e se fazem presentes no cotidiano dos personagens almodovarianos. Não é, no entanto, sobre a deficiência que se dá a vida, mas sobre os sujeitos que, entre suas singularidades, apresentam também a deficiência. Não vemos a construção de mitos, heróis ou vítimas, mas de seres humanos, únicos em suas singularidades, que a partir dessa singularidade estabelecem seu viver.
No embate entre esses campos de discurso que posicionam o sujeito a partir de uma centralidade posta na deficiência, que define o parâmetro ético de envolvimento destes com o mundo que nos vemos desafiados a buscar, no diálogo com a arquitetônica bakhtiniana, outros campos de diálogo. Lembramos aqui que, ao definir em sua arquitetônica a indissociabilidade entre ética e estética, muitas reflexões poderão ser aprofundadas sobre esta temática que exige de cada um de nós a adoção de atitudes responsáveis, norteadas pela não indiferença “ao todo em sua singularidade”.
Finalizando nossas reflexões e, considerando a linguagem cinematográfica como um enunciado concreto, que mobiliza atitudes responsivas em seus espectadores, e a arte como elemento que ao lado da vida e da ciência, compõem os campos da cultura humana, na ótica bakhtiniana, nos questionamos: de que formas poderíamos, a partir dos sentidos éticos e estéticos formulados por Bakhtin pensar o cinema como elemento educativo no ambiente escolar? Poderão estes enunciados compor efetivamente elemento de diálogo que possibilite a análise e, em ultima instância, a reformulação de valores e de perspectivas de compreensão da deficiência em nossa sociedade?
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Toward a Philosophy or the Act. (tradução para uso didático e acadêmico de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza). Austin: University of Texas Press, 1993.
______. Estética da Criação Verbal. (tradução de Paulo Bezerra). São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. O Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC/SEESP, 1996.
______. Resolução CNE/CP 1/2006. Diário Oficial da União, Seção 1, p. 11. Brasília, 16 maio 2006
KUENZER, A. Z.; MORAES, M. C. M. Temas e tramas na pós-graduação em educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 93, p. 1341-1362, set./dez. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v26n93/27284.pdf>. Acesso em: 01 out. 2010.
SILVA. Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da UFSCar, professora da Universidade Federal de Roraima. msiems@uol.com.br
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