terça-feira, 12 de outubro de 2010

ÉTICA E ESTÉTICA NO PENSAMENTO DE MIKHAIL BAKHTIN



                                                                                João Vianney Cavalcanti Nuto
Professor Adjunto da Universidade de Brasília
Coordenador do Grupo de Estudos em Literatura e Cultura

Analisar as relações entre Ética e Estética em Mikhail Bakhtin requer o reconhecimento de que Bakhtin é, antes de tudo, como ele mesmo se define, um pensador, um filósofo. Como já aconteceu em outros momentos da recepção de sua obra, não se pode identificar, em Bakhtin, essa preocupação ética, quando, por meio de uma leitura parcial ou reducionista, seu pensamento é restrito ao âmbito da Teoria da Literatura, ou, o no âmbito da Linguística, principalmente em uma visão estrutural.
Reconhecendo-se Bakhtin como filósofo, o que requer uma leitura atenta de toda sua obra, a relação de suas reflexões estéticas com a Ética tornam-se bem mais explícitas. Convém observar que há formas diversas da presença das preocupações éticas do Círculo de Bakhtin (entidade a que recorremos para solucionar o intricado problema da autoria e também fazer justiça ao aspecto dialógico do seu pensamento). A Ética é tema central de um dos primeiros textos de Bakhtin, “Para uma filosofia do ato”, está muito presente em “O autor e o personagem na atividade estética”, e transparece de maneira mais ou menos explícita em sua teoria do romance e nas análises críticas de Dostoiévski e Rabelais. A questão ética quase não transparece nas obras sobre a linguagem, especialmente aquelas assinadas por Volochinov, mas cabe lembrar certa analogia entre suas concepções de linguagem e suas concepções éticas, mesmo quando a ética não é explicitada, pois todo o pensamento de Bakhtin desenvolve-se a partir de um eixo conceitual, que são as noções de dialogismo e de inacabamento (não-completude), que transcorrem as dimensões éticas, estéticas, culturais e lingüísticas do seu pensamento.
“Para uma filosofia do ato” é a única obra de Bakhtin cujo tema central é a Ética. Os estudiosos que só se aprofundam nos conceitos que abordam diretamente suas respectivas áreas certamente estranham esse primeiro Bakhtin, com temática, referências e estilo diferentes do que estão acostumados. No entanto, já nessa fase inicial, detectamos as raízes filosóficas que norteiam toda a obra subseqüente do pensador russo.
Em “Para uma filosofia do ato” Bakhtin defende um pensamento filosófico que valorize o caráter singular, irrepetível, da vida de cada indivíduo, enfatizando o caráter pessoal e intransferível da responsabilidade que decorre dessa posição singular, o que denomina “não-alibi” do ser. Esta ausência de álibi é parte essencial da vida humana, que, ao contrário da vida animal, consiste em uma sucessão de atos éticos. Tentar fugir da responsabilidade individual, atribuindo-lhe a qualquer entidade abstrata, corresponde a buscar esse álibi inexistente. Essa ênfase no caráter individual dos atos éticos recusa uma ética demasiadamente abstrata e universalizante, expressa por meio do imperativo categórico de Kant, e previne contra a potencial alienação provocada por um pensamento filosófico abstraído das condições concretas específicas.  Pressupõe também intenso envolvimento pessoal no exercício do pensamento, que, em si mesmo, é também um ato, com toda a responsabilidade decorrente. A esse tipo de envolvimento, Bakhtin denomina pensamento de participativo.
Outro aspecto importante de “Para uma filosofia do ato” é a importância da alteridade, que decorre do encontro de singularidades.  Essa alteridade nunca deve ser escamoteada nem diluída, por mais importante que seja também o momento de empatia. Como explica Bakhtin, ninguém pode (nem deve tentar) seguir literalmente o mandato bíblico de amar o próximo como a si mesmo, pelo simples fato de que, se isto fosse possível, amante e amado deixariam de ser quem realmente são. É claro que, neste caso, implicitamente, se distingue o ato afetivo-cognitivo de amar, que implica a preservação da diferença, da ação (também amorosa) do cuidado extremo com o outro, mesmo assim também questionável, pois, ao contrário do que parece ao senso comum, não seria difícil encontrar exemplos de quem cuide do outro melhor do que cuida de si mesmo, começando talvez pelo próprio Cristo...
 Aparentemente pouco relacionado com o pensamento ulterior de Bakhtin, essa primeira obra introduz concepções de grande importância para a abordagem dos campos estético, cultural e lingüístico, pois a ênfase na alteridade e na eventicidade, por oposição a um sistema filosófico cerrado e de validade universal e absoluta estão na raiz dos conceitos de dialogismo e inacabamento (termos ainda ausentes nessa obra). Também nessa obra já se encontra a primeira associação do ético com o estético, na análise do poema “Separação”, de Pushkin.
Fundamental para a devida compreensão da dimensão estética do pensamento ulterior de Bakhtin, em que a questão ética não é mais central, é a percepção da fusão do ético com o estético no pensamento bakhtiniano. Ao contrário de tantos pensadores, a partir de Platão, Bakhtin não tem a preocupação em prescrever uma função ética, extrínseca, para a Literatura. Esta não tem como escapar da ética, tornando-se “arte pela arte”, não por causa nem por reação a uma pressão exterior, mas porque o dado ético é parte integrante do que Bakhtin denomina “objeto estético” o conteúdo profundo de uma obra, que envolve, além dos elementos estéticos, também elementos éticos e cognitivos, todos, porém, com coeficiente estético.
Em “O autor e o herói na atividade estética”, as relações entre autor e personagem, não se reduzem a aspectos estruturais, como é o caso, por exemplo, das diversas teorias do foco narrativo. De fato, a exotopia, isto é, a posição de exterioridade do autor-criador em relação a seus personagens, que lhe permite dar-lhes acabamento, por meio de uma visão maior, que os próprios personagens não podem ter de si, envolve também aspectos éticos. Dependendo da avaliação ética do autor sobre seus personagens, o objeto estético de uma obra pode comportar caracterizações elevadas, irônicas ou satíricas, entre outras.
Embora o termo exotopia não volte a ser utilizado por Bakhtin, essa noção é importante para se compreender a polifonia do romance de Dostoiévski, que consiste, antes de tudo, em uma forma de relação entre autor-criador e personagens. No caso de Dostoiévski, o ato autoral de dar acabamento aos personagens destaca-se por ser menos autoritário, pois o autor abdica de sua última palavra sobre o personagem, dando-lhe mais liberdade, por meio de uma caracterização que envolve mesmo a polêmica do protagonista com outros personagens e a até mesmo com o próprio autor. Ou seja: no acabamento que dá a seus personagens, Dostoiévski dá-lhes também a liberdade de serem inacabados. Percebe-se também, nessa forma de acabamento/inacabamento, a importância do dialogismo, presente tanto nas reflexões mais teóricas sobre literatura quanto nas reflexões lingüísticas de Bakhtin.
No que diz respeito à Literatura, a oposição entre gêneros poéticos clássicos e gêneros romanescos também envolve aspectos, éticos, cognitivos, políticos e ideológicos, além de estéticos. Como exemplo, podemos citar a distinção entre epopéia e romance, aquela baseada na memória e nos valores absolutos; este baseado na experiência, na crítica, no questionamento, na relativização. Portanto, cada gênero caracteriza-se também por um ethos específico. 
O elemento ético também está presente na análise da obra de Rabelais por Bakhtin. Também neste caso pode-se distinguir a função ética como prescrição à Literatura do dado ético como parte da dimensão estética. Uma das grandes fontes de incompreensão da obra de Rabelais, segundo Bakhtin, é a redução do seu riso à função satírica. Em uma visão prescristiva e moralista da Literatura, muito enfatizada pelo pensamento oficial da Igreja, o riso só poderia ter sua presença limitada à função satírica, isto é, relacionada com a denúncia dos vícios e dos pecados. Mas não é isso exatamente o que acontece com Rabelais, em que a imagem do corpo grotesco, com todos os seus excessos e com sua ênfase no baixo material e corporal não têm função exclusivamente denegridora. Disso decorre, em um primeiro momento, a perseguição à obra de Rabelais pela Igreja e depois sua interpretação como criação de um autor de gênio, mas de gosto duvidoso...
Para Bakhtin, a principal característica do riso, na obra de Rabelais, é sua ambivalência, diretamente assimilada das festas populares de caráter carnavalesco. A ambivalência do riso do carnaval inclui também a sátira, mas abrange outros aspectos negados pela cultura oficial da Igreja: a celebração da alegria em si mesma, a renovação da vida pela fecundidade. Assim, a obra de Rabelais confronta dialogicamente os valores de duas culturas antagônicas: a cultura oficial, cujo principal representante, na Idade Média e início do Renascimento é a Igreja; e a cultura popular, marginal, expressa com mais liberdade nos festejos carnavalescos. Portanto, a obra de Rabelais, abundante em paródias, constrói-se pelo confronto de valores éticos em suas expressões estéticas. Entre esses valores encontra-se também a abolição da hierarquia, contrariando a visão oficial da Igreja, cuja hierarquia universal começava pelo mundo espiritual e descia até o reino mineral, incluindo os homens em suas diversas classes. A negação dessa hierarquia se expressa plasticamente pelo corpo grotesco, um corpo em comunhão com outros corpos e com o mundo, um corpo inacabado em sua relação com o mundo, entre a morte e a fecundidade.
Portanto, podemos observar que todos os valores estéticos defendidos por Bakhtin não podem ser desvinculados de uma dimensão ética, decorrente de sua concentração no campo da Ética, presente em seus primeiros escritos. Essa vinculação não é tão explicitada em seus trabalhos relacionados com o âmbito da linguagem. No entanto, também esses são norteados pelas noções de dialogismo e inacabamento, que têm as implicações éticas aqui demonstradas.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tr. Yara Frateschi. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Hucitec, 1993.
_________ . Estética da criação verbal. Tr. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_________ . Para uma filosofia do ato. Tr. Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza.
_________ . Problemas da poética de Dostoiévski. Tr. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. 
_________ . Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. Tr. Aurora Fornoni Bernardini et allii. São Paulo: Unesp/\hucitec, 1990.
BAKHTIN, M; DUVAKIN, V. Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Tr. Daniela Miotello Mondardo. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008.
BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
MIHAILOVIC, A. Corporeal words: Mikhail Bakhtin’s theology of discourse. Evanston, Illinois; Northwestern University Press, 1997.

2 comentários:

  1. Gostei muito do texto. Preciso conhecer mais e melhor o pensamento bahktiniano e textos como
    este nos instigam a aprofundar nossos estudos
    sobre o autor e sua obra.
    Jorge Leite

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