EX-VOTOS COMO OBJETO ESTÉTICO
Amanda Rodrigues Figueiredo (UFPa)
Auricélia Silva Monte (UFPa)
Maicon de Souza Tavares (UFPa)
Orientadora: Rosa Maria de Souza Brasil (UFPa)
Círio outra vez
Quando a vida faz nascer o mês de outubro
Eu descubro uma graça bem maior
Que me faz voltar no tempo e ser menino
E ao som do sino ver a vida amanhecer
Eu descubro uma graça bem maior
Que me faz voltar no tempo e ser menino
E ao som do sino ver a vida amanhecer
Ver o povo em procissão tomando as ruas
Anunciando que é Círio outra vez
Que a Rainha da Amazônia vem chegando
Vem navegando pelas ruas de Bélem
Anunciando que é Círio outra vez
Que a Rainha da Amazônia vem chegando
Vem navegando pelas ruas de Bélem
Corda que avança o corpo cansa
Só pra alma descansar
É o meu olhar chorando ao ver o teu olhar em mim
Tão pequenina na Berlinda segues a recolher
Flores e amores que o teu povo quer te dar
Só pra alma descansar
É o meu olhar chorando ao ver o teu olhar em mim
Tão pequenina na Berlinda segues a recolher
Flores e amores que o teu povo quer te dar
Ó Virgem Santa, teu povo canta
Senhora de Nazaré!
Tu és Rainha e tens no manto as cores do açaí
Soberana e tão humana tão mulher
Tão mãe de Deus
Nossa raça, nosso sangue
Descendência que acolheu
O mistério encarnado continuas revelando
E por isso hoje é Círio outra vez”.
Senhora de Nazaré!
Tu és Rainha e tens no manto as cores do açaí
Soberana e tão humana tão mulher
Tão mãe de Deus
Nossa raça, nosso sangue
Descendência que acolheu
O mistério encarnado continuas revelando
E por isso hoje é Círio outra vez”.
O presente trabalho visa fazer uma reflexão sobre os objetos carregados na religiosidade paraense, através de um olhar estético identitário da fé de um povo. Em Belém do Pará, o círio de Nazaré é muito mais que uma demonstração de fé é, também, uma exposição estética, através dos objetos levados pelos promesseiros, da identidade cultural do povo paraense. Os ex-votos como objeto estético vêm explorar os significados que os romeiros dão e a forma como eles conduzem em procissão os barquinhos, igrejas, tijolos, berlindas em miniatura, que são o símbolo da promessa feita, de uma graça alcançada. Esses símbolos se mostram em objetos cujos significados vão muito além do visual, do artístico. É o próprio corpo, é o centro das ações em outro corpo - o homem - oferecido à Senhora de Nazaré.
Esta arte construída pelo próprio promesseiro vem carregada da expressão de fé que ele evidência no momento da procissão como um devoto grato ou necessitado, numa longa caminhada de puro agradecimento à Virgem e, em seus braços, vai um boneco; em sua cabeça, uma casa, um tijolo, um barco; em suas mãos, uma foto, um terço, um pedaço da corda, um pedaço de madeira na altura da pessoa ou do comprimento de uma parte do corpo, a corda que desvela significados por si só; em seu corpo, uma cruz pesada, mas não mais pesada que os outros objetos, porque todos se traduzem em demonstrações de amor, de fé, gratidão à padroeira paraense.
Esta visão e emoção estética também se manifestam na ação do fotógrafo ao registrar as imagens nesse mar de romeiros que conduz a berlinda. A escolha por um tema, por traços identitários do povo paraense, o reflexo justaposto de imagens que buscam mostrar a diversidade da linguagem cultural – tudo revela que as imagens registradas no Círio pretendem ampliar um sentido que extrapola o individual. Aqui o dialogismo está associado ao olhar estético de reprodução velada, que não se assemelha ao simples ato de só registrar o momento:
A hipótese de que a fotografia reproduz a realidade como ela é [...] é insustentável [...] Também é insustentável que a objetiva seja um olho imparcial, e o olho humano um olho influenciado pelos sentimentos ou gostos da pessoa: o fotógrafo também manifesta suas inclinações estéticas e psicológicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos objetos, nos enquadramentos, no enfoque. (ARGAN, 2006, p. 79)
Ex-votos é uma abreviação da expressão latina ex-voto suscepto (“o voto realizado”). Pelo mundo inteiro, os povos utilizam objetos para agradecer e servir como oferendas para santos e divindades. Mas a forma particular como o paraense o faz adquire traços culturais característicos que marcam sua identidade. E é por isso que este trabalho vem refletir a formação de uma identidade paraense e como essas relações se estabelecem extrapolando da fé ao objeto estético dos ex-votos:
[...] é impossível ao homem construir valores para si unicamente a partir de si. O valor é o centro de acabamento da estética porque exprime significados que são construídos na unidade da cultura humana em que estão também as vivência. O estético - todo acabado – nasce da extrapolação. (SOBRAL, p. 143)
A professora Rosa Brasil, chama atenção para o fato de que tanto o objeto, quanto a forma com que os promesseiros o carregam compõem o objeto estético em foco. “Não nos interessa só o objeto deslocado do homem. O ex-voto não vem voando sozinho; é carregado pelas pessoas. Esse movimento do carregar é como se o homem estivesse envolvido no objeto, dando corpo único ao objeto estético, ao objeto já (re)configurado, (res)significado”, complementa a professora.
A pesquisa é desenvolvida juntamente com quinze estudantes da graduação de Letras que fazem a coleta de dados no Círio desde 2008 por meio de entrevistas, fotos e vídeos, no intuito de formar um “álbum cultural”, impresso, relativo às representações simbólicas que envolvem o ex-voto como objeto estético, popular, característico do evento cultural-religioso Círio de Nazaré. A partir da relação discurso e objeto representado intenciona-se “abrir o manto identitário” que cai sobre o povo paraense e se constrói a partir de sua cultura.
Uma obra estética existe quando há um acabamento, pois só há a contemplação estética através de uma visão holística – enxergar o todo. É por meio da unicidade do ato da contemplação que o sujeito vai estabelecendo sentidos, beleza e, desse olhar, constrói-se o objeto. É ao mesmo tempo a tentativa de lançar-se no não ser numa percepção filosófica em que o caráter do ser unitário se exprima em sua eventividade e, por isso, sujeita a abstração da parte isolada e do real como todo.
Deste modo, o objeto do devoto desloca para dentro do Eu a contemplação. Haja vista, que para Bakhtin, é na compreensão do objeto que se dá o meu dever em relação a ele, ou seja, passa-se a ter responsabilidade para com o conteúdo da contemplação que é dado pela cultura do povo. Dar sentido ao objeto é de tal modo o lugar de deslocamento que proporciona um conhecimento do antes não conhecido, ao passo que se engendra no ser da contemplação estética um eu que não sou eu e, deste modo, compreende-se a relação entre objeto e o ser dentro de um evento único. Assim no observador da procissão paraense, cria-se uma empatia estética, em que o sujeito que está fora do eu observa quem está fora dele.
O que mais chama atenção é o fato de os objetos conterem toda a gama de fé, superação, sentimento, dor, graça, luz divina, ascensão espiritual. Cada romeiro traz consigo uma história ímpar de realização que no objeto se faz. A linguagem fala no romeiro e principalmente no objeto, e esse diálogo que encontramos diz e nos questiona quando nos deparamos com o ex-voto. Interpretações diversas dessa coisa, desse real que está pautada na linguagem do objeto, enriquecem ainda mais nosso estudo. Como toda obra de arte, o ex-voto desvela-se se velando, ao mesmo tempo em que se mostra se esconde e nos instiga a querer saber mais. Faz a construção do sentido do real aos romeiros. Esse real está na esfera do sagrado porque representa a dádiva alcançada. Neste evento, aquilo que é sublime, que é dado, acolhido e é retribuído através do ato/atividade do romeiro:
Em Bakhtin ato/atividade e evento não se confundem com a ação física per si, ainda que englobem, sendo sempre entendidos como agir humano, ou seja, ação física praticada por sujeitos humanos, ação situada a que é atribuído ativamente um sentido no momento mesmo em que é realizada. [...]. (SOBRAL, p.13)
“O sagrado não está na esfera da vontade ou controle de um fazer humano. O sagrado é a presentificação de uma dádiva”, é por isso que o romeiro agradece através do ex-voto para retribuir a graça alcançada.
O Círio de Nazaré, a maior concentração religiosa do mundo, comemorada há quase um século, é uma vitrine impressionante de demonstrações de fé, devoção, sacrifício, emoção, identidade. A celebração ocorre em Belém do Pará, sempre no mês de outubro, quando a Virgem de Nazaré, em sua majestosa berlinda, faz uma série de percursos pelas ruas e até mesmo rios da cidade, acompanhada por mais de 1 milhão de fiéis, todos os anos.
Os fiéis do Círio, à primeira vista, podem facilmente assemelhar-se com qualquer devoto, em qualquer lugar do Brasil ou do mundo – pessoas que se emocionam, seguem, amam e acima de tudo crêem. Mas é justamente essa fé que os diferencia dos demais. É essa fé que os impulsiona a aguardar horas a fio, sob o sol belenense escaldante, para ter o privilégio de, pelo menos, avistar a berlinda e estender as mãos para ela. É essa fé que os sustenta por quilômetros de caminhada – não uma caminhada simples, mas uma verdadeira jornada, na qual enfrentam o calor, o cansaço, a distância, o sufoco em meio a multidão – a fim de se aproximar da imagem, a fim de pedir, de agradecer. Por fé, amor, devoção ou, em muitos casos, apenas por uma intrigante curiosidade.
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Quem já participou do Círio de alguma forma, quer presencialmente ou por visualização de imagens das procissões, certamente já notou pessoas que, durante o percurso que faz a berlinda, caminham de joelhos ou carregam uma cruz ou algum objeto sobre a cabeça ou ombros. Notar tais pessoas é um tanto fácil, uma vez que se destacam no meio da multidão. A arte reside em resgatar a estética entranhada nesses objetos, no objeto e no homem que o carrega.
Os ex-votos são utilizados no Brasil não só no Círio de Nazaré, mas em outros Estados, como Pernambuco, Ceará, Salvador, Rio Grande do Norte, São Paulo (Aparecida do Norte). Trata-se de uma tradição que remonta ao século XVIII, no Brasil. Esses objetos constituem uma manifestação artístico-religiosa que se liga diretamente à arte popular, aos aspectos culturais e representam, para os promesseiros, a graça alcançada. Eles intencionam, em forma de objetos expostos ao público, manifestar coletivamente suas gratidões, assim como evidenciar quão milagreira é a Virgem de Nazaré.
Embora seja comum a existência de ex-votos em outros lugares que não Belém, é aqui que eles adquirem traços culturais característicos que marcam a identidade do paraense, inebriada pela forma com que se identifica com os objetos e por como as relações objeto-graça são estabelecidas.
O dialogismo bakhtiniano estabelece a interação verbal no centro das relações sociais: toda a parte verbal de nosso comportamento (quer se trate de linguagem exterior ou interior) não pode, em nenhum caso, ser atribuída a um sujeito individual considerado isoladamente. (BRAIT, p. 59).
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O objeto estético, portanto, não consiste apenas no “objeto ex-voto” em si, mas na forma com que ele é carregado pelo promesseiro. Quando se trata desse tipo de observação, não se pode dissociar objeto de homem – o objeto estático, exposto em um museu, impossivelmente será o mesmo daquele que está nas mãos de quem recebeu ou pretende alcançar alguma graça da virgem. É através de um processo subjetivo, que só pode ser desvendado por narrativas das pessoas que tiveram sua(s) graça(s) alcançada(s), que o objeto será ressignificado.
A concepção bakhtiniana do estético não se baseia no sublime de Kant, nem nas estéticas impressionistas ou expressionistas, mas resulta de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do autor, que está fundada no social e no histórico, nas relações sociais de que participa o autor. (BRAIT, p. 108).
É esse um grande fator de reconhecimento da identidade de um povo. Por meio do ex-voto como objeto estético, percebemos traços da identidade do paraense e até mesmo de fiéis advindos de outros lugares, que igualmente se utilizam dos ex-votos para “se comunicar” com a Virgem e com o povo.
REFERÊNCIAS:
ARGAN, G.C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das letras, 2006. p. 79.
BRAIT, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. São Paulo: Editora da Unicamp, 1997. p. 59.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In.: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005. p. 13; 108; 143.
VICTOR, Furtado; LAÍS, Teixeira. Da redação. Comentário disponível em: <http://www.orm.com.br/plantao/noticia/default.asp?id_noticia=494451>. Acesso em 11 de out. 2010.Figura 1: disponível em http://cirio.diarioonline.com.br/fotos-interna.php?idgal=277#undefined
Figura 2: disponível em http://cirio.diarioonline.com.br/fotos-interna.php?idgal=277#undefined
Figura 5: disponível em http://blogdoespacoaberto.blogspot.com/2009/10/cirio-2009-os-promesseiros.html
Figura 6: disponível em http://antoniopinheiro-apphoto.blogspot.com/2009/10/cirio-de-nazare-belem-pa.html
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