domingo, 17 de outubro de 2010

Concepções linguísticas no ensino de língua portuguesa, a partir do pensamento de João Wanderley Geraldi



                                                           Luzia de Fátima Paula
No final da década de 1970 e início da década de 1980, quando, no ensino de língua portuguesa no Brasil, apresentavam-se problemas com relação à repetência e evasão, no âmbito linguístico, diversas concepções eram contrapostas à advinda da Linguística Descritiva, em voga até aquele momento. No Brasil, as concepções advindas da Linguística Descritiva, da Gramática Gerativa, da Sociolinguística, da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso participavam de uma “formação discursiva” no âmbito da linguística.
No momento de sua formação, quando novas concepções linguísticas estavam sendo discutidas no interior do IEL/UNICAMP, João Wanderley Geraldi participava dessas reflexões, e a constituição de seu pensamento aconteceu em meio aos embates entre essas concepções, inicialmente em instituições de seu estado de origem, e, posteriormente, no IEL/UNICAMP.
Seus primeiros textos publicados abordam as questões descritivas da linguagem, tendo por fundamentação teórica a Linguística Descritiva.  No entanto, para abordar o ensino de língua portuguesa, Geraldi se apoia, teoricamente, sobretudo, em concepções advindas da Gramática Gerativa, da Sociolinguística, da Teoria da Enunciação e da Análise do Discurso. Em seu pensamento, são perceptíveis esses embates teóricos, como “choques”, já que o conhecimento não acontece de forma retilínea, mas a partir de descontinuidades.
Dessa forma, a partir do que se estuda, do que se conhece, novas concepções vão se constituindo. Essas descontinuidades são perceptíveis e se definem aos olhos do leitor, especialmente a partir dos textos citados por Geraldi, que se apresentam, ora de forma mais recorrente, ora deixando de ser citados. Essa descontinuidade pode ser constatada a partir da análise da trajetória de publicação de seus textos.
Assim como afirma Geraldi (2004a), os estudantes da pós-graduação estavam lendo, naquela época, na área da linguística, o que “estava no ar”. No entanto, nesse sentido, o seu diferencial foi pensar do interior da linguística o ensino de língua portuguesa, tendo escolhido o professor por seu interlocutor. Do interior da universidade, ele pensou em cursos para o professor, por considerar a necessidade dessa ação em conjunto com o professor no espaço da sala de aula, o que lhe permitiu pensar a linguística vinculada ao ensino de língua portuguesa.
A partir dos embates teóricos na área da Linguística, entre estruturalistas, gerativistas, sociolinguistas, linguistas pautados na enunciação, filósofos da linguagem e analistas do discurso, os “choques” foram ocorrendo, solidificando os conceitos-chave de sua proposta. Perdura em seus textos a discussão sobre “linguagem”, “sujeito” e “discurso/texto”.
Aproveitando o pensamento de Kuhn (1982) sobre a ideia de “crise”, é possível compreender que o pensamento geraldiano se constituiu na Linguística, contribuindo para o ensino de língua portuguesa, no momento em que uma “crise” se instaurava nesse ensino e no qual eram necessários outros paradigmas para que houvesse um novo sentido: “O significado das crises consiste exatamente no fato de que indicam que é chegada a ocasião para renovar os instrumentos” (p. 105).
Nesse sentido, segundo Kuhn (1982), quando necessárias para a sociedade, há “revoluções científicas”. Usando seu termo, é possível afirmar que o pensamento de Geraldi sobre o ensino de língua portuguesa, ainda atual nos dias de hoje, participou/participa de uma “revolução científica”, na medida em que propôs/propõe um “deslocamento” das ideias linguísticas para o ensino de língua portuguesa. Dessa forma, em um momento em que ocorria a busca por transformações político-sociais em nosso país, “olhares diferenciados” eram lançados também à linguagem, a fim de se buscar nela respostas a diferentes áreas. Com relação à abordagem da linguagem como resposta a várias questões, Kristeva (1969) menciona o olhar diretamente voltado ao sujeito, ocasionado por essa perspectiva.
Sobre o lugar de Geraldi como autor, segundo Bakhtin (2003), o autor se complementa no excedente de visão possível somente ao leitor, que é quem consegue visualizar o todo. Para ele, apesar de o autor ser conhecedor do todo, que é capaz de dar acabamento a uma obra, ele não deve viver do seu “[...] acabamento e do acabamento do acontecimento, nem agir”, pois, ele precisa “[...] ser inacabado, aberto [...] ao menos em todos os momentos essenciais  [...].” (BAKHTIN, 2003, p. 11)
A partir das ideias de Bakhtin, é possível compreender que o texto se complementa na interação do autor com o leitor, no excedente de visão próprio do leitor. Também nas palavras de Bakhtin (2002), “[...] a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema: [...].” (p. 14, grifos do autor). Nesse lugar de embates se constituiu a tríade “linguagem, sujeito e discurso/texto”, no movimento característico do conhecimento, com cada elemento se complementando a partir das proposições de Geraldi, para pensar o ensino. 
Assim, considero que, em meio a deslocamentos e rearranjos, tendo o texto como objeto de ensino, na mediação entre sujeito e linguagem, conjuntamente com o pensamento de outros autores, o pensamento geraldiano se digladiou e também se somou a outros pensamentos em sua constituição, refletindo sobre questões ligadas à educação, e, mais especificamente, sobre o ensino.  E, com relação ao que representou a proposta de Geraldi para o ensino de língua portuguesa, caracterizo-a como uma transformação no ensino da língua, em um momento de embates na área linguística que proporcionou pioneiramente o “deslocamento” das concepções linguísticas para o ensino de nossa língua.


Referências bibliográficas:

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara F. Vieira. 10. ed. São Paulo: HUCITEC, 2002.

______. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

GERALDI, João Wanderley. Entrevista [24/06/2004]. Entrevistadora: Luzia de Fátima Paula. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2004. 1 fita cassete (30 min). Não-publicada.

KHUN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982.

KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Tradução de Maria Margarida Barahona. Lisboa: Edições 70, 1969.

Um comentário:

  1. Considero Geraldi uma das nossas maiores refrências intelectuais (não intelectualizada). Isso, não só por sua ousadia ao discutir a importância de um trabalho (efetivo) de linguagem como interação, mas, sobretudo por sua permanente luta por/pela educação como direito humano. João Wanderley Geraldi: um educador popular que nos ensina, sempre.
    Forte abraço!
    Almeri Freitas.

    ResponderExcluir