Adriane Menezes Sales
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da representação que terei de mim mesmo.[1]
A efervescência e os acalorados debates atuais sobre as questões e entraves ligados a da Educação Especial e Inclusão vivenciados, principalmente, nos últimos 20 anos, em muitos aspectos desviam as atenções e reflexões apenas para o cenário atual, como se esta problemática fosse fruto da sociedade moderna. No entanto, vários autores mostram que, na realidade, são séculos de história, marcados pelo alijamento, pela segregação e desresponsabilização diante das necessidades especiais dos indivíduos com deficiência, em todos os aspectos: sociais, psicoemocionais e educacionais (MAZZOTA, 2001; MENDES, 2006; SASSAKI, 1997).
A partir da década de 1970, é possível observar um momento de mudança, demandado pela intensificação e fortalecimento de uma série de movimentos sociais mundiais em prol dos direitos humanos e de acesso à educação para pessoas com deficiências, que incide em um processo de mudança nos paradigmas educacionais, em busca de uma transformação, “garantidora” de respostas eficazes aos desafios postos pelas necessidades especiais que cada “aluno deficiente” apresenta as escolas e as sociedades (BUENO, 1993).
Para Veríssimo (2001), o paradigma da inclusão coloca-se como um processo de adaptação social para incluir as pessoas com necessidades especiais em seus sistemas gerais, e, ainda, dar-lhes o preparo e a oportunidade de assumirem seus papéis na sociedade. Porém os avanços e conquistas legalmente consolidadas, não tornam menos complexas à realidade e as necessidades demandadas no processo de inclusão dos deficientes, seja no âmbito educacional e/ou social, nem tão pouco, suas imposições, por si só, irão transformar em práticas reais seus dispositivos legais. É necessário transpor as dificuldades de implementação efetiva, do que já está posto, dentro e fora das escolas.
Neste sentido e, em decorrência das grandes mudanças ocorridas na área educacional em geral, dentre as quais, a inserção de uma nova modalidade de ensino especificamente direcionada a educação especial na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (1996), e todos os entraves de sua implantação nos Sistemas de Ensino, o cenário atual abriga a coexistência de dois enfoques identificáveis nas práticas educacionais: um deles baseado nos déficits e o outro num perfil cultural-integrador que, implica na atual perspectiva de inclusão, conforme aborda Costas e Pacheco (2006, s/n).
[...] embora ainda não esteja totalmente superada a proposição que entende que a falha está no aluno devido a suas deficiências, questiona-se, cada vez mais, o papel da instituição de ensino, e até que ponto ela falha ao não ser capaz de dar resposta às demandas de seus alunos.
Neste contexto, nossa discussão é voltada a maneira como o processo de “inclusão” educacional de crianças surdas vem acontecendo e, principalmente, ao papel do intérprete de língua de sinais/português diante do processo pedagógico desenvolvido nas escolas. Lacerda (2000) aborda que a problemática da escolarização do surdo tem um histórico de muitos comprometimentos, desde a educação básica. Segundo a autora, parte significativa deste problema dá-se em função das limitações dos surdos na área da linguagem, que acarretam intensas dificuldades de leitura e escrita.
Esta problemática pode ser observada nos resultados acadêmicos, tanto dos que viveram processos de escolarização especial, quanto dos que estudaram nas redes regulares de ensino. Após vários movimentos importantes que marcam a evolução dos processos de comunicação entre os surdos e deles com a sociedade, academicamente, hoje, a proposta de educação bilíngüe configura-se como um processo alternativo e mais apropriado a um atendimento educacional de qualidade (LACERDA, 1998).
De acordo com estudos desenvolvidos por Bouvet (apud LACERDA, 1998, p.72) a linguagem de sinais torna possível "[...] uma comunicação eficiente e completa como aquela desenvolvida por sujeitos ouvintes. Isso também permitiria ao surdo um desenvolvimento cognitivo, social etc. muito mais adequado, compatível com sua faixa etária". No entanto, a autora pontua que, a inserção de alunos surdos no sistema regular de ensino não se fará sem o "reconhecimento de que os alunos necessitam de apoio específico, de forma permanente ou temporária, para alcançar os objetivos finais da educação e, então, devem ser oferecidos, por exemplo, apoios tecnológicos e humanos. Um desses apoios humanos é o intérprete de língua de sinais" (LACERDA, 2000).
A presença, na sala de aula, do Intérprete de Língua de Sinail (ILS) pode viabilizar um processo de ensino e aprendizagem mais eficaz, visto que o surdo pode contar com a interlocução feita pelo intérprete. Neste processo o aluno,
[...] recebe a informação escolar na língua de sinais, que é sua língua de domínio, de uma pessoa com competência nessa língua. Ao mesmo tempo, o professor ouvinte ministra suas aulas sem se preocupar em como passar esta ou aquela informação em sinais, atuando em uma língua que domina (LACERDA, 2000, p. 74-5).
Esta alternativa apresenta implicações diretas na prática pedagógica a ser desenvolvida nas salas de aula, dentre elas a preparação do ambiente escolar para abrigar outra forma de linguagem, "dando a essa língua um status social de pertinência" e, ainda, o "acesso aos conhecimentos da cultura à qual pertence por intermédio de uma língua que ele domina" (LACERDA, 2000, p. 75). A autora aponta ainda que o papel do intérprete não se reduz a interlocução, nem mesmo a “simples” tradução.
[...] o tradutor-intérprete atua na fronteira entre os sentidos da língua de origem e da língua alvo, com os processos de interpretação relacionando-se com o contexto no qual o signo é formado. O sentido do enunciado é construído na interação verbal, e é atualizado no contato com outros sentidos, na relação estabelecida entre interlocutores. A interpretação é um processo ativo, que procede de sentidos que se encontram, existindo, apenas, na relação entre sentidos, como um elo numa cadeia de sentidos. Pode-se dizer assim que a interpretação se revela na multiplicidade de sentidos existentes (LACERDA, 2000, p. 6).
Dada esta complexidade, buscamos, apoiados nas concepções bakhtinianas, refletir sobre as implicações ética e estéticas do ato tradutório e suas repercussões nas (inter)ações e (inter)relações entre surdos e ouvintes, as quais pretendemos partilhar e no exercício de diálogos, ampliar, com autores do circulo e participantes das Rodas de Conversa 2010.
E tendo em vista, nosso interesse em compreender a forma como essas crianças se incluem e/ou são incluídas, academicamente e socialmente, dentro das salas de aula, nas relações e interlocuções, do cotidiano escolar, faz-se necessário discutir algo que encontra-se nebuloso, em processo de construção/(in)definição, o papel do intérprete de língua de sinais no espaço escolar ou intérprete educacional. Contudo, do que estamos falando quando nos referimos à interpretação/tradução??
O papel do intérprete e as implicações, ética e estética, do ato tradutório...
O ato da tradução envolve uma escala multidimensional de significantes e significados que desvelam as dimensões, a profundidade e a alta complexidade da sua atuação.
Segundo Sobral (2008, p. 7-8),
Todo ato de tradução envolve uma atividade de leitura de um texto numa dada língua que difere da leitura em geral porque é feita do ponto de vista de um profissional que,em vez de apenas entender o que lê ou responder / reagir ao que lê,deve enunciá-lo para outros interlocutores, tem de reconstituir / reconstruir / restituir o que lê em outra língua,e que, portanto, tem de penetrar em dois universos de discurso e colocá-los numa relação de interlocução,constituindo-se num mediador entre o autor do texto,que se dirige a um dado público que conhece,e o público do texto traduzido,ao qual o autor não pode dirigir-se diretamente.
Nesta perspectiva, nossa preocupação está centrada nas práticas de interpretação entre Libras e a língua portuguesa, tendo em vista que os intérpretes de língua de sinais (ILS) são partícipes fundamentais na participação, envolvimento destes alunos com a comunidade escolar e para o acesso destes aos conhecimentos e informações acadêmicas e sociais, que constituem os processos de construção de conhecimentos.
Dentro de uma perspectiva estética, fundamentada na concepção bakhtiniana, o papel do tradutor é, primeiramente de aproximação, de conhecimento do e sobre o outro com quem irá (inter)agir, no caso dos intérpretes educacionais, professores e alunos surdos e ouvintes...
O primeiro momento da minha atividade estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar – ver e conhecer – o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele (...) Devo assumir o horizonte concreto desse outro, tal como ele o vive. (BAKHTIN, 1992, p. 45).
Destacamos a questão, não apenas para definir nosso ponto de partida sobre a atividade estética, mas para, neste ensejo, dar ênfase a questões como...
Cabe ao intérprete conhecer a situação do conjunto de surdos no âmbito da cultura brasileira. Isso apresenta dois aspectos: de um lado, trata-se de uma língua não oral, de uma maneira não oral de perceber, de pensar e de se exprimir, no interior de uma cultura oral e em contato com uma língua oral dominante; de outra, o surdo tem uma dada imagem do interior dessa cultura que nem sempre o respeita [...] A situação do surdo não é a mesma do ouvinte; não se trata apenas de ter outra língua, mas ter uma língua não oral num ambiente sociocultural oral e de coexistir como surdos num território de ouvintes (SOBRAL, 2008, p. 132)
Além destas singularidades, pensar sobre a tradução/interpretação, mediando situações didático-pedagógicas em ambientes educacionais, nos quais circulam informações e conhecimentos das mais diversas naturezas e especificidades, exige do ILS diferentes saberes e condições de atuação, tais como; domínio profundo dos conteúdos escolares em uso, conhecimentos sociais, políticos e culturais, além das idiossincrasias do grupo de alunos e professores com os quais atuará. E, a posição a ser ocupada por eles (ILS’s) não pode se distanciar desta situação concreta - realidade social e histórica.
Apoiados, novamente, em Sobral e seus apontamentos sobre Bakhtin, acreditamos na necessidade de dar acabamento[2] a nossa discussão, adentrarmos, também, no que tange a tradução como ato ético.
]Segundo Sobral (2008, p. 224), a filosofia bakhtiniana do ato ético refere-se a
[...] responsividade ética aos outros sujeitos. Para Bakhtin, “não há álibi na existência”, e os atos do sujeito, sejam ou não voluntários, são responsabilidade sua, ou melhor, “responsibilidade” sua, isto é, responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos (SOBRAL, 2008, p.224).
Nestes aspectos, refletir sobre (inter)ações e (inter)relações entre o ILS, professores, alunos surdos e ouvintes, incide em pensar sobre as necessidades e escolhas que permeiam estas ações/relações. Trata-se de pensar sobre as condições e reações diante dos textos e contextos do trabalho pedagógico em curso, que dentre os aspectos técnicos da tradução, as demandas operacionais e relacionais, encontram-se centradas no processo de produção de enunciados/enunciações e construção de significados, fundamentais aos propósitos de desenvolvimento e escolarização em jogo.
Como um, dos inúmeros exemplos possíveis, vê-se que, diante do enunciado do professor, que escolhe “o que, como e a quem dizem” (cada turma ou grupo para os qual direciona seu enunciado), cabe ao ILS, em atividade estética (criadora) e ética (responsável/responsiva), garantir a realização do ‘projeto-de-dizer’ do professor para os alunos e vice-versa.
Esta e as demais situações a que se refere este ato tradutório é, em essência, muito mais do que “transcrição” ou mera escolha de palavras equivalentes, refere-se a um processo de construção de sentido, de negociação de significados. Vale ressaltar que, as palavras se materializam na atividade de interação verbal, como signos ideológicos, transformando-se e assumem os mais variados significados de acordo com o contexto no qual está inserida, o que implica na situação social e no lugar ocupado pelos falantes.
A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma pessoa do mesmo grupo social ou não, se esta for inferior ou superior na hierarquia social, se estiver ligada ao locutor por laços sociais mais ou menos estreitos (pai, mãe, marido, etc.). Não pode haver interlocutor abstrato; não teríamos linguagem comum com tal interlocutor, nem no sentido próprio nem no figurado (BAKHTIN, 2006, p.116)
E sem encerrar as questões deste breve ‘pensar’ sobre estas inquietações relacionadas a complexidade do ato tradutório, suas implicações ética e estéticas, nas (inter)ações e (inter)relações entre surdos e ouvintes, finalizamos essas colocações iniciais – que certamente terão seus significados atualizados após as Rodas de Conversa, com um último apontamento: a demanda por um Intérprete de Língua de Sinais/Português, qualificado profissionalmente para atuar em espaços educacionais e formativos - explícita ou, em alguns casos, implícita, a toda legislação que pontua questões relativas a acesso, permanência e sucesso acadêmico de pessoas surdas - configura-se como uma necessidade contemporânea.
Neste sentido, tanto o papel deste profissional nos processos de formação, quanto a sua própria formação e a construção identitária profissional desta nova categoria de trabalho precisam ser pensadas, pesquisadas e discutidas para um avanço positivo, tanto da educação de alunos surdos, quanto da profissionalização do ILS. Além do que, acreditamos na importância de direcionar uma atenção especial a forma como os ILS ‘são vistos, compreendidos e falados’ no espaço escolar?!, e, ainda qual o significado desta forma de ver – se ver e ser visto – nas comunidades surdas e nas instituições para a formação de (auto)conceitos/posturas, sobre o fazer do intérpretes e sobre si mesmos??
São pontos e contrapontos, indagações, vistas como primeiros passos para avançar no pensar do ato tradutório, suas singularidades, suas generalidades...
... [como] uma mediação que depende da apropriação específica que cada sujeito, singular que é, faz pessoalmente da “interpretação” (objetivação) coletiva do mundo dado.
Adail Sobral[3]
Referências
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. 203 p.
BUENO, J. G. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. São Paulo: Educ, 1993.
COSTAS, F. T.;PACHECO, R. O processo de inclusão de acadêmicos com necessidades educacionais especiais na Universidade Federal de Santa Maria. In: VI Congresso Internacional para Educação Popular e XV Seminário Internacional de Educação Popular, 2005, Santa Maria, RS. Anais. Santa Maria, RS : Pallotti, 2005. p.89.
LACERDA, C.B.F. Um pouco da história das diferentes abordagens na educação dos surdos. Cad. CEDES [online]. 1998, v. 19, n. 46, p. 68-80. ISSN 0101-3262.
________. A prática pedagógica mediada (também) pela língua de sinais: trabalhando com sujeitos surdos. Cad. CEDES [online]. 2000, v. 20, n. 50, pp. 70-83. ISSN 0101-3262.
LOPES, Ana Elisabete. Ato fotográfico e processos de inclusão: análise dos resultados de uma pesquisa-intervenção. In: LENZI, Lucia Helena Correa; DA ROS, Silvia Zanatta; Souza, Ana Maria Alves de; GONÇALVES, Marise Matos. Imagem: intervenção e pesquisa. (orgs.). Florianópolis: Editora da UFSC: NUP, CED, UFSC, 2006.
MAZZOTTA, M. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo: Cortez, 2001.
MENDES, E. G.. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, Dec. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782006000300002&lng=en&nrm=ISO->. Acessado: 02 de maio de 2010
SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de janeiro: WVA, 1997.
SOBRAL, A. O Ato “Responsável”, ou Ato Ético, em Bakhtin, e a Centralidade do Agente. Signum: Estudos Linguisticos, Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.
VERÍSSIMO, H. Inclusão: a educação da pessoa com necessidades educativas especiais - velhos e novos paradigmas. In: Benjamin Constant, n. 18, p.6-10. Rio de Janeiro, 2001.
[1] (BAKHTIN, 1992, p.126)
[2] Noção de acabamento, também centrada em Bakhtin, na qual “só um outro pode nos dar acabamento e somente nós poderemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós se situa num determinado horizonte e necessita do outro para completar o que falta ao nosso horizonte de visão.” (LOPES, 2005)
[3] Sobral (2008, p. 232)
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