Nelita Bortolotto**
1 Introdução
Neste ensaio, tomo como base dois pilares importantes das teses de Bakhtin e seu Círculo, quais sejam, os conceitos de universalidade e singularidade, buscando pensar o ato pedagógico na prática social. Bakhtin, especialmente em Para uma filosofia do ato ([1920-1924] s.d.), posicionado-se de modo crítico quanto ao pensamento racionalista que à sua época era acolhido com dominância – e em cujos princípios teóricos não se reconhecia o singular (o irrepetível) –, não concordava com as teses desse movimento.
Em sua crítica ao racionalismo, Bakhtin registra tratar-se de um equívoco dessa corrente entender que a verdade só pode ser composta de momentos universais, isto é, que numa dada situação a verdade é o que é repetível e constante nessa situação. Para ele, o que constitui a verdade da situação é a inclusão responsável do Ser-evento; sua singularidade (a unicidade do Ser presente) é obrigatória, pois é nessa singularidade, no evento único do Ser que a verdade se institui. Interessava, para Bakhtin, portanto, a existência de um ser concreto, situado, algo não dimensionado na especificidade da teoria positivista (racionalismo). Dessa forma, tudo o que é universal adquire importância real na correlação com essa unicidade.
Todavia, essa singularidade tão marcadamente expressa em Bakhtin, essa consciência encarnada não pode isolar-se, exaurir-se em estreita subjetividade; sublinha, então, que para viver de dentro de si mesmo não significa viver para si, mas viver participativamente:
“[...] eu, o único eu, devo assumir uma atitude emocional-volitiva particular com relação a toda a humanidade histórica: eu devo afirmá-la como realmente válida para mim e, quando faço isso, tudo que é válido para a humanidade histórica será válido igualmente para mim” (BAKHTIN, s.d., p. 49).
Sendo a singularidade expressa em tons fortes, a afirmação dessa singularidade não apagaria a importância da verdade teórica universal? Não é o que vamos encontrar se formos atentos à leitura da obra em questão. O que podemos sentir é a estreita relação entre o universal e o singular, categorias que, numa dialética constante, Bakhtin procura conciliar. [1] Num dado contexto, por exemplo, o autor afirma que o conhecimento teórico da humanidade, ou seja, a ciência, deve tornar-se responsavelmente conhecida pelo Ser como único participante, mas que isso em nada diminui ou distorce a verdade dessa ciência, pelo contrário, contribui para torná-la válida.
Numa outra situação, ainda referindo-se à falta de conexão entre o teórico, o estético e o ato realmente realizado, afirma que a própria ação, tendo libertado a teoria de si, começa a se deteriorar. Por outro lado, a abstração do Ser de um ponto concreto e único (de sua participação num tempo e espaço historicamente dados) redundará na decomposição da realidade do mundo, na sua desintegração em momentos e relações abstratamente universais. Em suma, o que se depreende dessas proposições é a interdependência constitutiva das categorias, ou a interconstituição dialógica na representação arquitetônica real, concreta do evento único do Ser ou da estrutura arquitetônica do mundo-evento real.
Para Bakhtin e seu Círculo, compreender como dissociados o “mundo da cultura” (teoria) e o “mundo da vida” (singularidade) acarreta consequências que repercutem negativamente em todas as esferas da atividade humana. O campo da educação, por conseguinte, não sai impune quando suas práticas se realizam sob essa dissociação.
Dessa forma, compreender, com profundidade os sentidos trazidos por Bakhtin, em torno da articulação universalidade e singularidade, nos responsabiliza a trazer indagações quanto ao ato pedagógico: como articular o universal e o singular, a teoria e a prática, isto é, o conteúdo do ato (o comum, universal) com sua concretude (sua ocorrência única)?
Fazendo uma aproximação das proposições com que se ocupou Bakhtin – e sem entrar nos detalhes das discussões (muitas) que se concretizam, na atualidade, no que diz respeito às ações pedagógicas em sua postura quanto a teoria e prática, especialmente na formação de professores –, importa observar como se situam ou vivenciam essas distinções ou mesmo relações entre esses dois mundos, o “mundo da cultura” e o “da vida”, na condição dos sujeitos historicamente situados, profissionais da educação. Enfim, o que desejo expressar é que é necessário buscar uma compreensão mais profunda do que aquela que circula atualmente em nosso meio, pela aceitação de que para o “bom andamento” da educação basta ou ter acesso à teoria para – como consequência – realizar um bom ensino, ou que se trata meramente de adequar teorias científicas (conhecimento) ao ensino escolar para que a concretização de conhecimentos se efetive. A teoria da Bakhtin sobre mundo da cultura e da vida nos faz compreender, por um lado, que é uma questão complexa e, por outro, que está em jogo o que acontece no ato, seja em âmbito individual ou coletivo. Segundo Bakhtin, todas as normas, todas as verdades/proposições, mesmo aquelas provadas pela ciência, são relativizadas ao serem confrontadas com o dever. Em outras palavras, entende Bakhtin que não é suficiente que uma proposição seja válida em si e que tenhamos habilidade para entendê-la: “é necessário acrescentar alguma coisa saída de dentro de mim mesmo; a saber, a atitude moral de dever-ser da minha consciência com relação à proposição teoricamente válida em si” (BAKHTIN, [1919-1921] s.d., p. 25).
Eu diria então que, quando falamos hoje da importância de o profissional da educação munir-se de um aporte teórico-metodológico para o eficaz desempenho de sua função, deveríamos acrescentar um componente relativo à ética, mais especificamente, um aporte teórico-metodológico-ético. Isso porque, para Bakhtin, não há sentido em falar de dever teórico: “enquanto eu estou pensando, eu devo pensar veridicamente” (BAKHTIN, [1919-1921] s.d., p. 5), o que pressupõe a situação de quem pensa, a unicidade desse pensar, sua historicidade, seu compromisso ético. Pressupõe ainda, como avalia Bakhtin, levar em conta todos os fatores: “sua validade teórica, sua fatualidade histórica e seu tom emocional-volitivo’. [2] Permeando tudo o que é experimentado, o tom emocional-volitivo reflete a plena unicidade individual, a responsabilidade e a verdade do Ser, enfim, relaciona-o à “última, unitária e única unidade” (p. 39).
Historicamente, parece haver persistência entre os especialistas das ciências da educação em apontar o descompasso entre teoria e prática na esfera pedagógica. Compreender essa realidade é compreender, como diz Bakhtin, o dever de cada um em relação a ela.
Como um agente responsável por seus atos, um docente, em sua singularidade única, é constituído pelo outro e constituinte do outro. Então, ao lado de sua postura ética, é por sua entoação avaliativa que ele se posicionará profissionalmente, isto é, elaborará, por meio de categorias organizadoras de seu pensamento, a síntese de seu mundo particular (a experiência vivida) e do mundo social/profissional (o mundo da cultura), de que extrairá elementos para seu trabalho. Concordo com o pressuposto de Bakhtin segundo o qual as categorias de apreensão do mundo inexistem fora de uma situação concreta, numa tensão constante entre a unidade objetiva da cultura e a singularidade irrepetível da experiência. É com base nesse pressuposto que lanço o seguinte questionamento: imerso num “teoreticismo fatal” que pode levar à perda do singular, do concreto, ou, ao contrário, num pragmatismo extremo, que pode levar à perda do universal, do teórico, não pode o professor perder a noção de valor? Argumento, respaldada em Bakhtin: Ser ativo é figurar como centro de significância e de valor. Diz ainda ele que o ato separado da teoria se deteriora e se traduz num ato biológico ou instrumental. Por outro lado, se ocorre a abstração do Ser, a sua não-participação como evento único, a realidade do mundo se decomporá, tornando-se vazia, abstratamente universal. Elaborando uma síntese, diz o autor que uma ação responsável não deve opor-se à teoria e ao pensamento, e sim incorporá-los, mas é apenas em correlação com o Ser que essa teoria, essa verdade adquire sua eficácia, sua validade. Acredito, então, que numa análise dessa natureza não se pode perder de vista as relações constitutivas entre o singular e o universal.
A ideologia do cotidiano, no contexto da psicologia social – discutida em Bakhtin/Volochínov (1990) – e que focaliza o que estaria prevalecendo, afinal – uma consciência individual ou uma consciência coletiva? –, ajuda a entender a papel da teoria no conhecimento do professor em sua prática de ensino, em sua formação docente. Na transposição/reformulação/reelaboração da teoria para a prática, na esfera escolar, há uma orientação relativa à finalidade do trabalho de cunho teórico e outra para o trabalho prático. Tal ótica na economia social dessa esfera reforça a conservação dos conhecimentos humanos, estruturados pelo poder social, histórico e ideológico que os institui e atravessa. Os professores não se apropriariam do conhecimento ultrapassando, para determinados objetivos, a ideologia do cotidiano, rompendo com ela para alcançar novo patamar de conhecimento (dos sistemas ideológicos constituídos: da moral social, da ciência, da arte etc.); pelo contrário, é dela que a atividade mental se nutre, pois é dela o “caráter de responsabilidade e de criatividade”, a capacidade de “repercutir mudanças da infra-estrutura socioeconômica mais rápida e distintamente”; é nela que “se acumulam as energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas ideológicos.” (BAKHTIN (VOLOCHÍNOV), 1990, p.120).
Se professores, nas ações pedagógicas, assumem uma posição individual (eu), lidando com conteúdos e atividades nos limites da pessoalidade, negando o tratamento objetivo da ciência frente ao real, tal situação provocará consequências nesse cotidiano. Por outro lado, como diz Bakhtin, eles não poderão se deixar determinar pelas categorias da consciência teórica não participativa, pois como diz Bakhtin, “Toda a razão teórica em sua totalidade é apenas um momento da razão prática, isto é, a razão da orientação moral única do sujeito, no interior do evento do Ser único (BAKHTIN [1919-1921] s.d., p.14).
Isso, no entanto, não significa que, ao assumirem determinados conhecimentos (teorias, concepções, juízos etc.) e considerá-los como unidade de comunicação individual, os professores possam reafirmá-los sem crítica, insensíveis aos questionamentos da esfera científica. Professores com tal posicionamento estão reforçando certa concepção de cognição do mundo teórico, segundo a qual o conhecimento origina-se da consciência do sujeito, sem intermediação do social e da vida. A dicotomização teoria/prática social vai se formando nas esferas da comunicação social e requer, nesse espaço, a observação da tensão que aí se instala. Requer que a individualidade (singularidade) seja compreendida na complexidade das vinculações com a universalidade. Parece ser comum, no entanto, no contexto da esfera educativa, professores viverem a ilusão de que o conhecimento pessoal não tem determinações do plano da universalidade (plano da cultura).
A arquitetônica[3] do eu e do outro, do que é individual e social, da singularidade e da universalidade é constituinte do ato humano e este tem de ser observado tanto em seu conteúdo como em seu processo; sem cisão entre “o conteúdo ou sentido de um dado ato-atividade e da realidade histórica do seu ser, a real e única experiência dele” (BAKHTIN [1919-1921] s.d., p. 2).
O movimento tenso entre um fenômeno de ordem individual e a universalidade do agir do ser também é notado pelo sistema axiológico dos valores que resultam do ato pedagógico. A responsabilidade que o professor atribui para-si do ato do ensino e a tudo que decorre do conjunto de suas ações (inclui-se aí o projeto da formação humana) nem sempre é aquela que um exame da realidade objetiva mostra.
O agir individual implica a comunicação social mais ampla (das organizações sociais, de suas estruturas) e necessita ser compreendido e avaliado no nível da grande temporalidade do agir humano em geral, ou seja, dos atos humanos e das estruturas sociais constituindo-se mutuamente naquilo que produzem e reproduzem. Importa, então, observar os efeitos dos atos humanos, a finalidade das ações do trabalho especializado da pedagogia. A avaliação passa pelas condições desse ativismo: o porquê desse agir e não de um outro e de tal modo, enfim, o sentido social do trabalho educacional no conjunto dos horizontes possíveis.
Na concepção de Bakhtin, um todo arquitetônico presume uma unidade com sentido, em que suas partes estão harmoniosamente articuladas, e em que o geral – a universalidade – se complementa com o particular. O agir situado de um sujeito responsivo na sua relação com os outros implica o reconhecimento dessa relação.
Dessa forma, explicar o estatuto do conhecimento do professor particularizando-o com base no domínio dos conhecimentos científicos seria um equívoco; um profissional com uma “boa memória”, um bom cabedal intelectual seria um excelente professor. Atualmente, o professor se ocupa mais da transmissão do conhecimento produzido (da sua área científica e da área didático-pedagógica – conteúdos para ensino), já que o conhecimento do que ensina e aquele para efetuar o ensino chegam-lhe em princípio como produto de um processo no qual o docente teve pouca ou nenhuma participação no nível da produção. Desse modo, a tendência é que veja esse conhecimento como algo que sempre existiu, sempre esteve lá, para ser apenas reconhecido. A produção do conhecimento (de como se conhece, se conheceu, e o por vir – o que vai sofrer inovações) vai tomando a dimensão de produto para uso, obscurecendo a historicidade do conhecimento e dos objetos, a herança cultural (do vivido) e as atitudes investigativas como a realidade de um “por vir”. O discurso da esfera escolar se sustenta então, comumente, da opinião, do ponto de vista de outrem, de juízos de valor, porque é desencadeado um movimento de interpretação da palavra do outro (do discurso das ciências) que rompe a índole real do diálogo.
Isso de certo modo, porque, em sua atividade laboral, o docente, como trabalhador, nem sempre percebe que vive a condição discursiva de terceiro (de um ele distante) nas relações dialógicas dos diferentes campos culturais. Ali, o ele não se refere à pessoa, por exemplo, “João”, “Maria” ou “Lúcia”, mas é simplesmente “o docente”, “o professor”, “a professora” (despersonalizado(a), fragmentado(a) em sua pessoalidade) ou outra denominação que sintetize essa prática social (mestre, doutor etc.) na situação pedagógica. Há, então, uma lida entre a consciência teórica do professor na posição de ele (terceiro) e a consciência teórica de professor/professora de Geografia, Letras, Matemática etc., do ser-evento. No ato do ensino cria-se um desajuste temporal entre essa posição social de ele com a posição do ser-em-evento, entre aquilo que é dado e aquilo que é criado nesse espaço da esfera social escolar, em sala de aula. O espaço escolar sala-de-aula, como elemento fixo, dá forma com seus ritos e gêneros, e o tempo em sua mobilidade observada é medido através do primeiro.
Os eventos, como diz Bakhtin em Para uma filosofia do ato, querem a eternidade-evento. Ao assumir a posição de especialista, o professor/a professora, na figura do ele, já conta com as experiências da participação de outros profissionais marcadas na historicidade desse espaço do especialista-professor/professora. Todavia, como participação afirmativa no ser-evento-único, afirmativa fundada na valoração, os eventos do passado e seus valores afirmados (memória/lembrança) são transpostos para o presente através de ações pedagógicas desvinculadas do compromisso entre o universal e o singular: um presente de ações direcionadas a um futuro (horizonte de possibilidades) sem ser completado pela afirmação na experiência da minha participação no evento presente, apenas fundado no valor que é atribuído a essa memória. Enfim, na esfera escolar esse elemento é dissimulado e confundido com a posição de voz individual, a-cronotópica, sem encontro com a herança cultural e com o “por vir”.
Entender a posição do ele, do terceiro no trabalho teórico de Bakhtin só é possível assumindo-a como constitutiva nas relações dialógicas. Quando um docente diz que “a minha concepção de X é Y”, há mais que a palavra do docente expressando um conceito em termos absolutos (“isso é”), há que ser considerada a posição do terceiro nem sempre evidente nas circunstâncias da relação dialógica entre eu e tu. Da mesma forma, ao não estabelecer as inter-relações eu, tu, ele pode ocorrer o distanciamento do eu (singularidade). Nessa posição, professores reenunciam conceitos do discurso científico, em esfera escolar, neutralizando a historicidade desse conhecimento (o contexto da compreensão ativa), ao serem repetidos ou reproduzidos sem a reavalição de um enunciado situado no tempo e no espaço. Decorre dessa situação a naturalização da passagem do discurso produzido na esfera científica para a produção do discurso do ensino e para a aprendizagem na esfera escolar.
A primeira consequência dessa naturalização é notada quando professores envolvem alunos, em uma formação cidadã (processo humano de formação e educação) mediante conhecimentos didático-pedagógicos e objetos (temas) nos quais esses professores não têm uma participação responsável real relativa à veridicidade, com o reconhecimento da unicidade (dever-ser) – ou seja, em que os atos realizados na posição de terceiro (o professor, a professora, mestre...) não coincidem com a posição de eu-professor, consigo mesmo, com um evento-em-processo.
E então, o conjunto harmonioso entre verdade-pravda e verdade-ístina [4] não se desenha. A verdade universal é, pois, o juiz supremo, aquela que se pronuncia como “a verdade” da ideia (teoria) e do ato. Não há, pelo menos, espaço para o confronto dos múltiplos discursos que aí emergem ou deveriam emergir. O espaço social de força da verdade-istina (teoria) se forma com o peso de verdade inquestionável e não com peso relativo de uma teoria sobre outra ou demais teorias: uma acaba sobrepondo-se a outra ou sobre todas as outras, ainda que em convívio cronotópico.[5] Nesse universo as individualidades teóricas se extinguem e a fatuidade teórica é seu próprio revés.
A compreensão simplificada da realidade encaminha para a crença do conhecimento como uma composição de verdades indiscutíveis, e vai transformando o professor em simples transmissor de conhecimentos, porque faz desaparecer o modo histórico de sua produção. Dessa forma, traz uma verdade-pedagógica de conhecimentos transformados em conhecimentos-escolarizados (conteúdos-instrumentos) pela posição que “o professor, o mestre, o doutor” assumem no conjunto das representações discursivas criadas através da história da formação das esferas e seu funcionamento, a pretexto de ações com fins legítimos. Uma compreensão mais profunda levaria a observar a complexidade da esfera científica e da esfera escolar, em seus vínculos, no que produzem como ciência. [6] Nesse contexto, tem-se observado uma forte tendência, na análise dos conhecimentos científicos na esfera educacional, em centralizar o que é objeto (do ensino e da ciência), e em desconsiderar os papéis singulares, na socialização dos conhecimentos (pelo evento do Ser em sua singularidade, no viver para si, mas participativamente; na existência da pessoa real que vive a socialização dos conhecimentos, vive o processo dialógico entre o verbal e a realidade objetiva). Entretanto, é preciso observar a influência do destinatário (e seus enunciados – presentes e antecipáveis), que é inequívoca tanto sobre a construção como sobre o estilo dos enunciados. O destinatário é elemento constitutivo do sentido do objeto no processo do conhecimento desse mesmo objeto. Afinal, falamos algo para alguém de algum lugar e de certo modo – uma questão de gênero do discurso.
Por tradição, na esfera escolar, conhecimentos científicos são introduzidos a partir de seleção e organização baseada em critérios da própria esfera escolar, ou seja, do seu funcionamento (conforme o que determina o currículo), e como tal aparecem. Professores, muitas vezes, os recebem como produtos da comunidade científica e os identificam como legítimos para o uso na sistematização e organização do conhecimento na escola. Na comunicação social entre essas esferas, os limites mútuos nem sempre são evidentes, porque há um rito que, de certa forma, não estimula a responsividade. Embora, como disse Bakhtin (2003, p. 391), o cotidiano humano seja sempre enformado e essa enformação seja sempre ritual, o modo como a comunicação social vem se estabelecendo ali, com a força social do rito (das ações enformadas), e a passividade decorrente da não-visão de outras relações possíveis vêm limitando o indivíduo (eu) em sua visão, vêm limitando o exercício da exotopia, pelo que os outros espelham desse indivíduo e para si; vêm impedindo que esse “eu” seja o outro dele, o “eu” de ver a possibilidade de ser diferente.
Com isso não estou dizendo que a possibilidade de transformação se daria pelo lugar da individualidade (uma condição da subjetividade); qualquer transformação, como nos alerta Bakhtin/Volochínov (1990), passa ao largo dos limites de uma consciência individual, singularizada. Para compreender essa questão da comunicação social, é preciso relacionar o discurso verbal e a situação extraverbal (contextual, social, histórica etc.). Bakhtin e seu Círculo integravam um compromisso com o processo social, histórico e dialógico da construção da consciência, do conhecimento e dos valores éticos e estéticos. [7]
Dimensionar o discurso da ciência com base num processo real de dialogia significa entender, como alerta Bakhtin (2003), que além do eu e do tu há o terceiro que figura na relação da dialogicidade como exterior, como ponto de vista (a posição), opinião (a verdade impessoal e objetiva etc.) nem sempre evidente, mas que, numa análise mais profunda, pode ser descoberto. Ao afirmarmos certos atos do passado (de uma tradição) por convicção ou imposição de forças históricas, políticas ou ideológicas, atualizamos um ato (verdade pravda) que não aparece como responsabilidade de realização única do mundo provocando uma “consciência destacada, não-participante”, portanto “uma consciência impessoal”. Dessa forma, a palavra da herança no domínio objetivo-científico, fundamentada em teorias avaliadas positivamente por grupos sociais legítimos, nem sempre é percebida como participante de um grande diálogo, da “índole inacabável do diálogo polifônico”.
Para o que me interessa aqui, é na fronteira (nas margens) das esferas científica e educativa que há uma aproximação e ao mesmo tempo uma distância que determina o reconhecimento de uma e outra e o reconhecimento de possível integração. O discurso retórico [8] da esfera educacional argumenta do ponto de vista do terceiro: aí não participamos como indivíduos, é a palavra do mestre (o docente). No entanto, sabemos que o ato individual só se torna ato pedagógico (responsável) se reconhecido no contexto da produção da comunidade à qual alguém pertence em um momento da história.
Por outro lado, a teoria de Bakhtin/Volochínov também permite explicar a manifestação dos enunciados quando assumimos uma verdade teórica como sendo “a nossa verdade de teoria”, “a nossa verdade de prática do ensino”, reduzindo teorias (quaisquer) ao limite da pessoalidade.
Bakhtin explica que “a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros”, de tal forma que esse processo pode ser caracterizado como uma assimilação mais ou menos criadora. Isso significa que, ao sermos legitimados como “transmissores” de conhecimento, nós, professores, assumimos “verdades” alheias como nossas.
Em uma perspectiva de grande temporalidade, o que fazemos a partir dos conceitos científicos basilares na esfera da atividade laboral e o que deles afeta o nosso agir na escola (conteúdo e modo de realização) tanto poderá provocar um choque entre as concepções assumidas (reafirmadas) por professores (o dado) e aquelas da ciência – ecoando como obra da cultura humana (o novo) – como produzir uma dialética constante entre esses dois sentidos, num ininterrupto equilíbrio entre a ética e a estética.
3 Singularidade e ética
O que podemos depreender do que até aqui foi exposto: ausência de articulação entre teoria e ética? Para Bakhtin ([1919-1921] s.d.), há essa articulação quando o Ser, numa posição singular e concreta, assume um posicionamento teórico, um pensamento, isto é, quando, por sua assinatura, se torna responsável, torna o pensamento um ato. É a compreensão emocional-volitiva de que fala Bakhtin que se revela por um pensamento que age, um pensamento participativo (não-indiferente).
No entanto, na memória social se inscrevem acentos apreciativos referentes ao que é teoria e prática social, de tal modo que na esfera escolar ocorre uma objetivação social calcada nas interações sociais e discursivas, constituindo sentidos definidos e estabilizados (que parecem ter estado sempre lá) para o ato pedagógico na sua generalidade.
É preciso aqui retomar a questão da ética para avançar um pouco mais nesse raciocínio. Em Para uma filosofia do ato, é possível entender o conceito de ética inserido no projeto maior dessa obra, que consiste em ressaltar a inter-relação constitutiva do mundo da teoria e do mundo da vida. Nesse caso, é impossível, para Bakhtin, por uma abordagem puramente teórica, apreender as singularidades, o único, o irrepetível, próprio de cada ato humano, como é impossível deduzir ética diretamente da teoria.
Para ele, uma ética pura, absoluta e autossuficiente, ou seja, o domínio absoluto da ética como tal, é apenas uma ilusão, tanto no que diz respeito à ética material (conteudística) como à ética formal. A ética não decorre diretamente das proposições, dos “conteúdos-sentidos”; “o dever ético é captado de fora” (s.d., p. 24); a essas proposições ou conteúdos é preciso acrescentar alguma coisa que sai de dentro de mim: a atitude moral de “dever-ser” da minha consciência com relação a alguma proposição teoricamente válida. Para o autor, é justamente essa “atitude moral da consciência” que a ética material desconhece. Seria então o posicionamento moral do ser, o dever, que fundam a ética, dos quais esta é dependente.
Deduz-se daí que o agir concreto do ser no mundo, imerso num tempo e espaço dados, portanto social e historicamente situado, implica assumir responsabilidade, o que se traduz num ato ético, não entendido como um conjunto de regras formais, mas de obrigações, deveres e compromissos.
Em Bakhtin há estreita relação entre ética e responsividade. Esta, como uma categoria da consciência assim como o dever, não pode ser categoria da teoria, pois assim deixaria de ser um valor interno, um valor da consciência. É por isso que a ciência moderna, diz Bakhtin, afastou a ética: ela (a ciência) não parte da concretude de um ato, mas de uma abstração, ou seja, de um conjunto de princípios e valores universais.
Isso permite entender que uma atitude ética depende da posição avaliativa de um sujeito situado, não-transcendental, e não pode impor-se de fora, de modo abstrato, originada de valores universais, genericamente aplicados.
O ato responsável considerado na relação eu/outro envolve o conteúdo do ato, o processo desse ato e a posição valorativa do Ser-evento diante do agir concreto. Mediante tal concepção de Bakhtin, a moral ganha concretude e desbanca a crença em uma moral idealizada apenas refletida na mente humana.
Se estamos entendendo que a ética em Bakhtin está estabelecida como ética não idealizada; como estando na realidade social concreta, no lugar da unidade-do-ser, entenderemos também que, como pensador de uma filosofia moral, Bakhtin fundou-a como moral de homens reais em desenvolvimento social e histórico, cronotopicamente situados no mundo.
Cabe então perguntar: seria a moral que acompanha a atividade do professor-indivíduo em sua singularidade correspondente ao quadro teórico da moral delineada como humanista, abstrata (idealizada)? Ou, dado que o conhecimento dos professores está ligado fundamentalmente a situações de experiência prática, estaria a ética associada mais ao conhecimento das situações práticas, acronotópicas, do que da teoria? Ou, ainda, estaria ela diluída nos mecanismos de uma responsabilidade também diluída ao assumir, o professor, uma posição de terceiro?
Creio que a resposta ante tão complexa questão não possa ser dada aqui. O desafio está lançado e cabe a nós, como profissionais responsáveis, aprofundar conhecimentos na busca de soluções. Por ora, cabem algumas considerações: o descompasso entre o mundo da cognição e o ato real da vida vivida parece provocar pressão entre o que professores ensinam, pensam que ensinam, entre aquilo por que os professores são responsáveis e assumem que são responsáveis: pressão da veridicidade do dever do pensamento. Se assim for, no contexto de seus atos, os professores respondem afirmativamente sobre um dever-ser que não responde afirmativamente a um dever-ser na veridicidade do mundo da cultura e da vida, ou seja, não se verifica o encontro entre a dimensão epistemológica e a dimensão moral. Contudo, isso nem sempre é aparente e por isso não se dá a tomada de consciência do descompasso.
Na esfera escolar, um dado histórico e paradoxal reforça ainda mais esse desencontro: nas ações pedagógicas assume-se um compromisso para com o tempo futuro (um presente visando o futuro). Nessas condições, o objetivo das ações é um e o resultado é outro, muito embora o presente nem sempre deixe tão evidente o acabamento de tais ações (sua estética); é no horizonte da grande temporalidade, aquele sobre o qual a ação educativa costuma ser projetada, que se observa a defasagem entre ato realizado e o produto dele.
Como teoria, o horizonte de possibilidades está voltado para a unicidade deles. O mundo da teoria e o do evento-do-ser precisam ser conciliados[9] para que ocorra a união entre universal e singular como Bakhtin preconiza. A fragmentação não é desejável, ou seja, o mundo da teoria seguir um curso e o mundo do evento-do-ser seguir outro, em movimentos distintos e desencontrados.
Referências
AMORIM, Marília. Ato versus objetivação e outras oposições fundamentais no pensamento bakhtiniano. In: FARACO, C.A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Orgs.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis: Vozes, 2006b. p. 17-24.
BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. 5 ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza da edição americana Toward a phylosophy of the act. Austin : University of Texas , 1993. S.d.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução (do russo) de Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FIAD, Raquel Salek. Revendo a alfabetização. MOARA, v. 25, p.136-148, 2006.
ROJO, Roxane Helena Rodrigues. Alfabetização e letramento: sedimentação de práticas e (des)articulação de objetos de ensino. Perspectiva, Florianópolis, v. 24, n. 2, p. 569-596, jul./dez. 2006.
* O que apresento neste ensaio é parte do que desenvolvi na tese de doutorado “O sentido da ciência no ato pedagógico: conhecimento teórico na prática social”, defendida na UFSC em dezembro de 2007.
** Professora no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] Segundo interpretação de Clark e Holquist (2004), com a qual ajusto o meu pensamento, Bakhtin confere “atenção à diferença, variedade e alteridade, porque deseja detectar conexões que permanecem ocultas aos olhos menos acostumados a graus tão extremos de pluralidade e outridade.” (p.37). As relações, “as zonas limítrofes”, como ele mesmo fala, delineiam-se em locus da sua exotopia; a ênfase na simultaneidade e no compartilhar caracteriza a obra inteira de Bakhtin (p.101).
[2] Para Bakhtin, o “emocional-volitivo” designa o momento constituído pela minha autoatividade numa experiência vivida “– a experimentação de uma experiência como minha: eu penso – realizo uma ação por pensamento” (p. 37).
[3] Bakhtin chama arquitetônica “a atividade de formar conexões entre materiais díspares.” (CLARK; HOLQUIST, 2004, p.107).
[4] Segundo Bakhtin, Pravda, no ato realizado em sua responsabilidade, é a verdade única (momentos singulares) e Istina é a verdade válida em si (momentos universais). (Cf. AMORIM, 2006, p. 19)
[5] Cf. Fiad (2006) e Rojo (2006).
[6] Aqui, não refletirei sobre as diferenças entre ciências humanas e naturais – primeiro, pela impossibilidade de fazê-lo; segundo, porque busco particularmente estabelecer o que é determinativo nas relações sociais com respeito ao ensino e à formação de educadores.
[7] Não desenvolvo fundamentos e características da ética e da estética, apenas chamo a atenção para a força desses elementos também no contexto das discussões sobre linguagem.
[8] “O discurso retórico é o discurso do próprio homem atuante ou dirigido aos homens atuantes.” (BAKHTIN, 2003, p. 389).
[9] Algo a lembrar, aqui, é o que expressa Bakhtin (2003, p. 361) ao falar da importância de não ignorar “as questões da relação mútua e da interdependência entre os diversos campos da cultura”.
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