Maria Leda Pinto
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS
Neste artigo, procuramos estabelecer uma conversa com Fiorin, em seu artigo Interdiscursividade e intertextualidade[1] a partir do discurso estético de Manoel de Barros em seu Poema nº 13.
O que diz Fiorin
Em seu artigo Interdiscursividade e intertextualidade[2] Fiorin aborda a noção de interdiscurso em Bakhtin, partindo de dois objetivos — verificar se, sob outro nome , a questão do interdiscurso está presente na obra de Bakhtin e examinar se é possível distinguir , com base nas idéias bakhtinianas, interdiscursividade e intertextualidade.
Para refletir sobre os objetivos estabelecidos em seu artigo, Fiorin traça inicialmente um histórico do aparecimento do termo intertextualidade afirmando que essa palavra foi uma das primeiras atribuídas a Bakhtin que ganhou prestígio no Ocidente , por meio da obra de Julia Kristeva. Segundo o autor , a palavra intertextualidade obteve cidadania acadêmica antes de o termo dialogismo alcançar notoriedade. Ressaltou ainda a contribuição de Roland Barthes em relação ao termo e finalizou pontuando que , ao longo do tempo , esse termo passou a ser utilizado de maneira frouxa .
Considerando o que efetivamente é dialogismo em Bakhtin, Fiorin destaca dois sentidos que lhe interessam para a concretização dos objetivos traçados na discussão sobre a interdiscursividade e intertextualidade. Primeiramente , concebe o dialogismo como o modo de funcionamento real da linguagem e, portanto , seu princípio constitutivo. Em segundo lugar , dialogismo é uma forma particular de composição do discurso [3].
Pontuando que os homens não têm acesso direto à realidade , tendo em vista que nossa relação com essa realidade é sempre mediada pela linguagem e destacando a afirmação de Bakhtin de que não é possível ter-se a experiência do dado puro , o autor mostra que o real se apresenta para nós semioticamente em uma evidência de que o nosso discurso não faz uma relação direta com as coisas e sim com outros discursos . “Essa relação entre os discursos é o dialogismo”. Dessa maneira , se não temos relação com as coisas e sim com os discursos que lhes dão sentido , “dialogismo é o modo de funcionamento real da linguagem ” (p. 167).
No entender do autor , Bakhtin não nega a existência do sistema da língua , já que “por trás de todo texto , encontra-se o sistema da língua ” (Bakhtin, 1992, p. 331), o qual , para o teórico russo, é necessário para o estudo das unidades da língua , mas que , no entanto , não dá conta do modo de funcionamento real da linguagem . Em razão disso, Bakhtin propõe uma outra disciplina que nomeia de metalingüística[4] (p. 320). Essa disciplina tem por objeto “o exame das relações dialógicas entre os enunciados , seu modo de constituição real ” (Fiorin, 2006, p. 168).
Pautado no texto de Bakhtin O Problema do texto [5], Fiorin vai tratar do enunciado e das unidades da língua , mostrando as características próprias destas e daquele e, conseqüentemente , as diferenças que se evidenciam. Dentre essas características , destacamos aquela que evidencia que as unidades da língua compreendem as palavras e as orações , enquanto os enunciados são as unidades reais de comunicação . “As primeiras são repetíveis, os segundos , irrepetíveis, são sempre acontecimentos únicos ” (p.168).
Fiorin observa que não é a dimensão que define o que é um enunciado , já que este pode ser tanto uma resposta de uma palavra quanto um romance de vários volumes . O que delimita a fronteira do enunciado “é a alternância dos sujeitos falantes . Isso significa que o enunciado é uma réplica de um diálogo que se estabelece entre todos eles ” (p. 168). Dessa forma , o dialogismo é constitutivo do enunciado e este não tem existência fora daquele. “A relação dialógica é uma relação (de sentido ) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal ” (p. 169).
Neste sentido , vejamos o que diz Bakhtin (1992, p. 316):
As várias características do enunciado e das unidades da língua são pontuadas por Fiorin com exemplificações de vários textos , bem como a distinção entre texto e enunciado . Diante das considerações : se um texto tem um autor , é irrepetível e só ganha sentido na relação dialógica , não é então sinônimo de enunciado ? o autor afirma que é preciso ler cuidadosamente o que o teórico russo coloca acerca do assunto ao longo de suas obras [6]. Nesse sentido, vejamos o que afirma Bakhtin (1992, p. 330-351):
O texto enquanto enunciado . (...) Dois fatores determinam um texto e o tornam um enunciado : seu projeto (a intenção ) e a execução desse projeto . (...) Fora dessa relação (a relação dialógica ), o enunciado não tem realidade (a não ser como texto ).
[...] se o texto é distinto do enunciado e este é um todo de sentido marcado pelo acabamento (a obra ), dado pela possibilidade de admitir uma réplica , cuja natureza específica é dialógica , o texto é a manifestação do enunciado , que é uma ‘postura de sentido ’.
O autor conclui afirmando que : se Bakhtin estabelece uma diferença entre texto e enunciado ; se o enunciado pode ser aproximado ao que se compreende por interdiscurso — tendo em vista que se constitui nas relações dialógicas, enquanto o texto é a manifestação desse enunciado — é possível estabelecer uma diferença entre interdiscursividade e intertextualidade: “aquela é qualquer relação dialógica entre enunciados ; esta é um tipo particular de interdiscursividade, aquela em que se encontram num texto duas materialidades textuais [7] distintas” (p. 191).
A historicidade do discurso , em Bakhtin, é apreendida no movimento, lingüístico da constituição da noção de dialogismo. Segundo Fiorin (p. 191-192): “É na relação com o discurso do Outro , que se apreende a história que perpassa o discurso . (...), em Bakhtin, a História não é algo exterior ao discurso , mas interior a ele , pois o sentido é histórico ”.
A Interdiscursividade no discurso estético de Manoel de Barros – Poema nº 13
Poema Nº 13
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os pés de seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
(BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 61.)
Considerando que para Bakhtin o interdiscurso se constitui nas relações dialógicas, a construção de sentidos do poema nº13 se constitui na interdiscursividade do discurso estético de Manoel de Barros com outros discursos, já que o autor vai buscar nesses discursos, podemos dizer que uma sustentação/justificativa para o seu discurso. Quando cita Cristo, São Francisco e Vieira está se respaldando nos grandes feitos de alguns sujeitos que fizeram a história do discurso religioso. Quando cita Shakespeare e Chaplin, nomes do teatro e do cinema, se respalda na história do discurso artístico. Além desses discursos, outras vozes atravessam o poema: a vida dos nobres, seus fracassos e sua soberbia, explicitada no texto como uma doença.
Dessa maneira, o poema apresenta algumas possibilidades de interpretação/efeito de sentido, nessa tessitura polifônica de “vozes”. Numa perspectiva polifônica da ironia, podemos entender que o poeta adota uma posição crítica em relação ao discurso religioso e artístico que não pode assumir socialmente, tendo em vista que os feitos já são consagrados no contexto histórico e social da humanidade. Coloca, então, esses feitos no mesmo patamar de uma das piores características humanas: a soberba, que qualifica como doentia, valendo-se do discurso citado para refutá-lo.
A outra possibilidade de efeito de sentido tem relação com o discurso do poeta no seu desejo de ser “coisa”, “outro ser”. Se o poeta quer ter “...o condão de sê-las”( as coisas), que é preciso transfazer a sua realidade (o Pantanal), embora isso possa parecer ao outro uma “soberbia”, uma “doença”, ele equipara todo o destaque reservado à “Humildade”, às “aves”,aos “peixes”, ao “amor”, aos “tolos”, aos “vagabundos” também ao que para ele tem essa mesma importância: “...as pobres coisas do chão mijadas de orvalho”, a quem sente-se capaz de monumentar.
No verso “Hei de monumentar os insetos!” é possível construirmos o sentido de que se outros monumentaram coisas que são já agora monumentos; o poeta monumenta o que ninguém quis considerar: os insetos, as coisas, o desprezível, o sobejo (mijo). Nesse sentido, existe também aí um interdiscurso com a confissão: ele está confessando sua soberba de querer monumentar, como outros, que em outros momentos da história, monumentaram.
Considerações Finais
Essa é uma primeira conversa, que está aberta a outras conversas com outros discursos, em outros momentos históricos. Vale ressaltar também que no momento em que adentramos o discurso estético de Manoel de Barros — por meio do Poema nº 13 — para com ele dialogarmos com o discurso de Fiorin, posicionando-nos como sujeito/leitor, a construção de sentido foi gradativamente construída, fazendo-nos interagir com o poema e o texto, num processo de escolhas e de mobilização do universo de conhecimentos que já tínhamos e de outros que tivemos de ir buscar — por meio de outras leituras — a fim de chegarmos aos efeitos de sentido possíveis para nós neste momento e que constituem a conversa realizada.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Tradução do francês por Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BAKHTIN, M. M. Estética da Criação Verbal. Introdução e Tradução do russo Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARROS, Diana L. P. de. & FIORIN, J. Luiz (Orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. Ensaios de Cultura, n. 7. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994.
BARROS, Manoel. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996.
BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto , 2006.
FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto , 2006, p. 161-193.
[1] FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto , 2006, p. 161-193.
[2] FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo-SP: Contexto , 2006, p. 161-193.
[3] Em nota, Fiorin destaca um terceiro sentido que registramos aqui: visto de uma forma mais geral, dialogismo “é o princípio de constituição dos seres humanos; é o modo de agir e de estar no mundo” (FIORIN, 2006, p.192).
[4] Fiorin chama esta disciplina de Translingüística e justifica sua escolha, à maneira dos franceses, em razão dos valores semânticos que cercam a palavra metalingüística. “Esse problema de denominação é uma prova da correção das teses bakhtinianas sobre o problema da distinção entre as unidades potenciais do sistema (objeto da Lingüística) e as unidades reais de comunicação (objeto da translingüística). Do ponto de vista do sistema, meta (prefixo grego) e trans (prefixo latino) são equivalentes: no entanto, eles são completamente distintos no funcionamento discursivo”. O autor coloca que o objetivo de Bakhtin era instituir uma ciência que fosse além da Lingüística, que pudesse analisar o funcionamento real da linguagem e não só o sistema virtual que permite esse funcionamento (p.162).
[5] Esse texto faz parte da Obra Estética da criação verbal que tem hoje, no Brasil, duas traduções. Na tradução do francês, feita por Maria Ermantina Galvão G. Pereira, o referido texto se encontra às páginas 327- 58 e na tradução do russo, elaborada por Paulo Bezerra, às páginas 307- 35. A obra utilizada por Fiorin é a tradução do francês e datada de 1992.
[6] O leitor encontrará, principalmente, na obra Estética da criação verbal maiores informações e aprofundamento em relação às idéias de Bakhtin sobre enunciado, texto e gêneros do discurso.
[7] Para o autor, materialidade textual compreende um texto em sentido estrito ou um conjunto de fatos lingüísticos, que configura um estilo, um jargão, uma variante lingüística, etc. (p.191).
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