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Ivanda Alexandre Pereira[1]
Cada vez que tenho a “tarefa” da escritura de um texto, me dou conta da divisão social do trabalho, enquanto têm aqueles que pensam o meu trabalho e no exercício da escritura vão se constituindo escritores, fico no espaço da minha atuação docente, e mesmo com a reflexão não há a exigência do registro, a professora não precisa escrever sobre seu próprio trabalho, e quando tenho que escrever sobre os incômodos vividos no cotidiano da escola, sou assaltado pelo desejo de permanecer dentro deste lugar e refletir sobre o meu ofício com meus pares, mas sei que fui capturada pela questão do acabamento estético, e provavelmente, morrerei buscando-o.
E depois, pareceu-me arriscado, e por que não dizer, ingênuo, dialogar com o texto de Bakhtin que conheço “Estética da Criação Verbal”, e que poderia ser a base para uma produção escrita, considerando o eixo teórico central da discussão do Círculo 2010, Bakhtin e a atividade estética – novos caminhos para a ética, pelo fato de ter conhecimento de que há problemas em sua tradução, “problemas que vão desde a desmedida alteração vocabular até os desvios sintáticos e semânticos, que transformam não só o estilo bakhtiniano como o próprio sentido das teorias que Bakhtin cria a respeito do eu em relação ao espaço que ocupa”. (LIMA, 2005, p. 353).
Foi com ele que encerrei a produção do texto da dissertação de mestrado (2003), escrevendo que tentei fazer algo comigo, durante o processo da pesquisa, que eu sabia que não poderia ser feito, o acabamento estético. E porque eu sabia que esse acabamento não poderia ser feito, naquele momento, era necessário um fim ético, uma forma acabada, muito embora, soubesse que aquele acabamento não era o que sou, não dissesse tudo que queria dizer, mas que dizia algumas coisas que em princípio considerei importante outros que estão envolvidos com o processo educativo saberem. Nos dizeres deste pesquisador, para o sujeito viver, ele precisa estar inacabado, aberto, pelo menos no que constitui o essencial da sua existência, “devo ser para mim mesmo um valor ainda por vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.” (BAKHTIN, 2000, p. 33).
Naquele momento, meu esforço foi delinear os vestígios das marcas que o movimento social e educativo do qual fiz(faço) parte tentou imprimir na minha trajetória pessoal e profissional, o que provocou um certo desconforto e mobilizou-me a ressignificar a minha própria prática. Para tanto, foi necessário compreender-me como sujeito histórico, entender que ao longo da minha existência vivi distintos papéis e lugares sociais, carregados de significação que me chegaram através do outro.
Alertou-me Bakhtin, naquele momento, neste mesmo texto, que somos os menos aptos para perceber o todo da nossa existência, a vigilância epistemológica que me auxiliou na compreensão do que vira, ouvira e sentira, veio com a colaboração do orientador da pesquisa[2]. Ele assumiu o meu outro num diálogo, ocupando uma posição específica para que eu pudesse organizar minha reflexão. O horizonte concreto que ele possuía, permitiu-me ver e saber coisas que somente ele, pela posição que ocupava poderia ver e saber. Confesso que esse movimento não foi linear e harmônico, mas cheio de contradições e rupturas; vivi momentos de amor e ódio.
Outro movimento que ocorreu e que revela um excedente de visão, aconteceu com o meu desdobramento em dois papéis, o de pesquisadora e o de sujeito da pesquisa. Argumenta Bakhtin (2000) que o acontecimento estético pressupõe duas consciências que não se coincidem.
Quando contemplo um homem situado fora de mim e à minha frente, nossos horizontes concretos, tais como são efetivamente vividos por nós dois, não se coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele próprio, na posição que ocupa, e que situa fora de mim e à minha frente, não pode ver... (BAKHTIN, 2000, p. 43).
Como pesquisadora, ocupava um lugar que sou a única a ocupar no mundo, os outros se situam fora de mim, eu olhava para a professora que é um outro para mim. O excedente de visão, com relação ao outro, instaura um conjunto de atos internos ou externos que só eu posso pré-formar a respeito desse outro e que o completam justamente onde não pode completar-se. Isso, no entanto, não se opõe necessariamente ao horizonte de visão do outro, uma vez que devo me identificar com o outro, colocar-me em seu lugar e ver o mundo através de seus sistemas de valores e assim criar-lhe um ambiente que o acabe, ainda que seja impossível concluí-lo no mundo ético. (BAKHTIN, 2000).
Como pesquisadora, ocupei um lugar distinto do lugar de professora e figurei como o outro que ajudou a enxergar os erros e acertos e avaliava minhas intervenções. A tarefa de tornar sistemático o registro da minha atuação exigia que a professora desenvolvesse um olhar crítico para o trabalho na sala de aula e buscasse alternativas, de modo a atender as exigências da turma com a qual atuava.
Foi com o texto com tradução para o português, que olhei para a professora e vi um sujeito marcado ideologicamente pelas histórias vividas e lugares percorridos e tentei compreender os efeitos que a linguagem em funcionamento produziu nos momentos de não coincidência entre os sentidos pretendidos e os sentidos assumidos entre o sujeito e seus interlocutores.
Se o texto de Bakhtin apresenta problemas em sua tradução, pergunto: Até que ponto a falta de cuidados com a tradução, se é que há, deste texto prejudica a compreensão da essência do pensamento de Bakhtin no que diz respeito à atividade estética? É possível usar o texto como referência, mesmo sabendo que apresenta problemas de tradução?
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
LIMA, Sheila. Tradução: Um diálogo às avessas. In.: BRAIT, B. (org.) Bakhtin, dialogismo e construção de sentidos. Campinas. Editora da Unicamp, 1997.
PEREIRA, I. A. A (Des)Constituição, de uma professora a partir da reflexão do próprio trabalho pedagógico. Ou, da provisoriedade das certezas pedagógicas. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2003.
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