domingo, 26 de setembro de 2010

Apontamentos sobre o uso de conceitos bakhtinianos na análise de dados de aquisição da escrita

Apontamentos sobre o uso de conceitos bakhtinianos na análise de dados de aquisição da escrita
Adriana de Paula – IEL/UNICAMP – paula-ad@uol.com.br
Introdução
Procuramos, no presente trabalho, traçar considerações sobre o modo como os conceitos definidos por Bakhtin podem ser produtivos na análise de dados de aquisição da escrita. Para tanto, faremos um breve percurso pela teoria desse autor a respeito dos gêneros do discurso e da noção de polifonia e apresentaremos a análise de dois dados.

Os gêneros do discurso
Ao tratar da interação verbal, no capítulo 5 da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov (1929), aponta o papel do social na constituição da estrutura da enunciação, que estaria sujeita à situação e ao meio social em que é proferida por seu locutor. Desse modo, já nessa época, o círculo bakhtiniano ressaltava o fato de que a língua é fundada por interações sociais e essas interações serão fundamentais para a definição dos gêneros do discurso.
Bakhtin (1953/1979: 261) inicia o artigo Os gêneros do discurso afirmando que o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados, que serão proferidos de acordo com as condições e finalidades de cada campo da atividade humana. Assim, conforme o campo em que é realizado, o enunciado terá uma forma composicional, temática e estilística diversa e é exatamente cada tipo relativamente estável de enunciado, proferido em cada campo de utilização da língua, que Bakhtin definirá como gênero do discurso.
Considerando as inumeráveis formas de atividade humana, o autor afirma que a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são inesgotáveis. Desse modo, os gêneros serão modificados toda vez que um determinado campo de atividade humana sofrer alterações. A partir dessa observação de Bakhtin, torna-se evidente que elaborar uma tipologia exaustiva dos gêneros do discurso é uma tarefa insana, já que os gêneros evoluem e se ampliam à medida que evoluem as sociedades que os utilizam.
Bakhtin lembra, ainda, que todo enunciado, seja ele oral ou escrito, é individual e, por isso, carrega marcas individuais de quem o profere, apresentando, portanto, um estilo individual. Contudo, nem todos os gêneros são propícios à manifestação dessas marcas individuais; principalmente naqueles gêneros mais padronizados, como ofícios, atas, requerimentos etc, torna-se difícil encontrar espaço para manifestar qualquer individualidade na linguagem.
Além do estilo individual, entendido aqui como as marcas individuais do sujeito na linguagem, cada esfera de atividade humana e de comunicação vai determinar o estilo do gênero, ou seja, traços estilísticos relativamente estáveis que irão caracterizar o próprio gênero, variando de acordo com o tempo e espaço em que esses gêneros são produzidos.
Na segunda parte de seu texto, Bakhtin discorre sobre a dialogicidade da linguagem, mostrando que um falante é sempre um respondente em maior ou menor grau, ou seja, todo enunciado proferido por um falante pressupõe enunciados anteriores e posteriores com os quais esse enunciado entra em relação. Nas palavras de Bakhtin (1953/1979: 272): cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. 
A concepção bakhtiniana de linguagem como um processo dialógico será fundamental para o que se pretende discutir neste trabalho, uma vez que, ao analisar dados de aquisição de escrita, torna-se fundamental considerar que, conforme Bakhtin/Volochínov, ao enunciar, o falante (escrevente) não parte do nada, mas considera os enunciados anteriores com que se relaciona. Um enunciado, o discurso de alguém, não surge no vazio, mas se relaciona, dialoga, com enunciados (discursos) precedentes. Nas palavras do autor: a compreensão é uma forma de diálogo, ela está para a enunciação assim como uma réplica está para o diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra (Bakhtin/Volochínov, 2006 [1929]: 132).    
Considerando esse caráter dialógico da linguagem, segundo o qual todo discurso é construído a partir do discurso do outro, a noção de polifonia (cf. Bakhtin, 1963) também nos parece importante para analisar o trabalho realizado por um sujeito durante seu processo de aquisição da escrita.
Desenvolvido por Bakhtin a partir da análise do romance de Dostoiévski, o conceito de polifonia é retomado por diferentes autores em diferentes áreas do conhecimento, sendo a nosso ver, um conceito bastante fecundo para a análise de dados de aquisição da escrita, como mostram os dados apresentados abaixo:
 (1) Quadrinhos da história Destino. 1985. 3ª série. Produzido em ambiente doméstico[1].
Nessa produção, M.L. recorre a uma história em quadrinhos para explorar uma temática político-social que, a partir da terceira série, passa a ser uma constante em suas produções. Nesse trecho, a polifonia faz-se presente através do entrecruzamento da voz de M.L., que denuncia o preconceito contra uma variedade estigmatizada, e da voz da personagem-urso que representa justamente essa variedade. De acordo com J. Barros (2004: 187), uma das características de M.L. é “dar voz ao outro” em suas produções e, desse modo, falar em nome desse outro. É exatamente isso que podemos observar aqui. Ao “dar voz” ao ursinho pobre que é discriminado na escola por causa da variedade lingüística que utiliza, M.L. registra sua crítica a esse tipo de situação.
Ao optar por um gênero em que texto e imagem são constitutivos de sua forma composicional, M.L. articula esses dois recursos para expressar aquilo que pretende dizer.
(2) A vida... e daí. 1989.  7ª série. Produção escolar
            Em Nossa Senhora de Pirapora do Agreste, no ano de 1964, nasceu um garotinho, 11º filho de uma mãe cansada, João cresceu sem atenção da mãe, que morreu 2 anos depois do seu nascimento. Não tinha identidade, pois era o 5º João de sua família, não tinha nada que o diferenciasse ... parecia um boi num rebanho, que já nasce encaminhado pro matadouro.
            Quando completou 19 anos, já havia aprendido “algumas letras” e procurou um emprego, pois a seca naquele ano era brava, já havia matado 3 irmãos seus, e seu pai, velho e bêbado, já não botava um centavo em casa... Então João sentou-se à sombra de uma árvore e pensou – Vou pro sul, lá eles tem dinheiro, tem comida, e tem emprego! – então João fez uma trouxa com algumas roupas e pegou o 1º pau de arara que passou.
            Depois de uma viagem muito desconfortável João chegou à terra prometida, lá havia o mar, lá não havia a seca – aqui sim vou ser feliz! pensou João. A primeira coisa que João fez ao chegar foi procurar emprego, não achou! Foi procurar casa, não achou! Foi procurar comida, não achou! Achou fome, miséria, favelas e desemprego... Quando João começou a trabalhar como feirante foi apelidado João gostoso, pois sempre trazia frutas gostosas e fresquinhas para as bocas das madames. Depois de 1 ano ele se casou, teve 5 filhos, e não mudou de emprego, morava numa favela e o salário não dava nem para o começo... Mas João não desistia, nunca parava pra pensar na vida, apenas acreditava em 2 coisas, em Deus e no futuro. Até que um dia, ele voltava pra casa quando passou na frente de um bar. Entrou, sentou-se ao lado de meretrizes e ladrões, parou, bebeu. Foi aí que ele escutou uma voz que vinha de dentro do seu coração, do seu íntimo mais profundo, essa voz dizia – João, o que a vida te retribui? Você não tem passado nem presente, muito menos futuro, o que você está fazendo nesse mundo cão? Qual seu papel na vida? Porque? Nessa hora passa um rapaz rico no seu carro conversível... foi nessa hora que João ficou com mais raiva ainda, então falou para si mesmo, a minha única esperança de uma vida melhor... é a morte! Então João dançou com a mais depravada das prostitutas, cantou música brega como se fosse hino, bebeu cachaça como se fosse o mais fino dos licores... e finalmente se entregou à vida de prazeres, se entregou à morte! Se atirou na lagoa e finalmente encontrou... a vida!  
No dado (2), produzido num momento em que o sujeito já tinha um maior domínio da escrita, encontramos uma reflexão sobre os problemas enfrentados pelos migrantes no Brasil, e vemos a polifonia emergir não só através da intertextualidade com o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, como também através da multiplicidade de vozes (cf. Bakhtin, 1981 [1963]) que emergem da narrativa.
            A partir do título “A vida... e daí?”, M.L.  já dá indícios do tipo de reflexão que fará ao longo do texto. As reticências convocam o leitor a refletir sobre o significado da vida e a pergunta “e daí?” faz com que percebamos que, nesse caso, a vida é percebida como algo sem muita importância. 
            A partir de uma relação intertextual com o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de Manuel Bandeira, M.L. constrói um texto em que, mais do que relatar a trajetória de vida da personagem João Gostoso, nos conduz a refletir sobre a migração no Brasil,  mostrando o destino dos muitos “Joãos” que deixam sua terra natal em busca de uma vida melhor e que, na maioria das vezes, encontram ainda mais miséria ao chegarem nos grandes centros urbanos do sul e do sudeste.
            Se na história em quadrinhos (dado (1)) a reflexão sobre as dificuldades do migrante era apenas sugerida, no texto narrativo (dado (2)), M.L. deixa marcada sua posição. Logo no início, ao apresentar a personagem, ela já mostra o tipo de vida que esses migrantes levavam em sua terra natal: “Não tinha identidade, pois era o 5º João de sua família, não tinha nada que o diferenciasse ... parecia um boi num rebanho, que já nasce encaminhado pro matadouro”. Através da repetição do nome[2] e da comparação com um boi num rebanho, M.L. deixa claro que o destino dessa personagem já tinha sido traçado desde o dia de seu nascimento.
            Diante de uma vida tão difícil, João Gostoso segue a trajetória de muitos de seus conterrâneos: “Vou pro sul, lá eles tem dinheiro, tem comida, e tem emprego!” e assim como eles, o que encontra é uma vida bem diferente daquela sonhada durante a viagem: “A primeira coisa que João fez ao chegar foi procurar emprego, não achou! Foi procurar casa, não achou! Foi procurar comida, não achou! Achou fome, miséria, favelas e desemprego...”. Nesse trecho vale destacar o recurso usado por M.L. para mostrar o fracasso da viagem de João. Ao conduzir o fluxo da narrativa através de uma seqüência de gradações, M.L. mostra como, aos poucos, tudo aquilo que havia sido sonhado vai se desmanchando ao chegar à “terra prometida”.
            O desfecho da narrativa é aquele traçado desde o início: “João, o que a vida te retribui? Você não tem passado nem presente, muito menos futuro, o que você está fazendo nesse mundo cão? Qual seu papel na vida? Porque? Nessa hora passa um rapaz rico no seu carro conversível... foi nessa hora que João ficou com mais raiva ainda, então falou para si mesmo, a minha única esperança de uma vida melhor... é a morte!”. É o momento em que João, ao contrário do personagem-urso de Destino, que volta para sua terra natal, se dá conta de que sua vida não tem significado algum. Assim, sua única saída é: “Se atirar  na lagoa e finalmente encontrar... a vida!”, lembrando a idéia discutida em João Cabral de Melo Neto de que a vida do retirante nordestino começa com sua morte.
            Em (2), vemos emergir novamente a polifonia através das diferentes vozes que ecoam da narrativa: a voz da personagem, a voz do narrador, a voz da “consciência” de João Gostoso (uma voz que vinha de dentro do seu coração) e a própria voz de M.L. que faz-se presente através dos recursos que ela usa para compor seu texto. Explorando recursos da escrita – escolha lexical, organização sintática, desenvolvimento da estrutura da narrativa – M.L.  reflete sobre o tema em questão e conduz seu leitor a acompanhá-la nessa reflexão.  É importante lembrar, ainda, que o texto foi produzido quatro anos depois da história em quadrinhos, sendo natural que M.L. demonstre mais maturidade na discussão do tema, bem como um domínio maior na manipulação da escrita. 

Bibliografia
BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV, V.N. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2006.
_____________. (1952/1953). Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____________. (1963). Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.



[1] Os dados analisados foram retirados do Banco de Dados do Projeto “A relevância teórica dos dados singulares no processo de aquisição da linguagem escrita”, desenvolvido no IEL/Unicamp de 1992 a 2005, e compõe o corpus de M.L. Analisado em minha dissertação de Mestrado “Considerações sobre o desenho e a escrita no processo de aquisição da escrita: uma análise de dados longitudinais”, esse corpus será retomado em minha tese de Doutorado, justamente para discutir a questão da polifonia e metaenunciação.

[2] A questão dos nomes que se repetem foi muito bem explorada em Morte e vida Severina de João Cabral de Melo Neto, texto a que M.L. já teve acesso como mostra uma de suas produções da 4ª série. 

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