Cíntia Kamila De Bona Ribeiro
Francismar Formentão
Para pensarmos o processo social de educação, aquela em que estudantes e professores em um ambiente escolar se relacionam, temos como condição importante na filosofia da linguagem proposta por Mikhail Bakhtin o entendimento da alteridade. Que não pode ser compreendida apenas como diferença ou como par antagônico do sujeito. Não estabelece também ordenação, combinação de ordem normativa ou transcendente. O significado da alteridade ocorre entre um sujeito e outro como interação em que ambos se incluem mutuamente. As relações recíprocas se definem na tríade eu-para-mim, no outro-para-mim e no eu-para-o outro, como ação concreta, ato em realização que requer compreensão responsiva e assunção responsável (responsabilidade) de ordem ética e cognitiva. Nesse processo os sujeitos participam ativamente da interação, experenciam o mundo em ação situada e avaliativa, valorada na cultura.
A linguagem torna-se na fundamentação de Bakhtin uma área abrangente de estudos na sua variação lingüística, na expressividade discursiva, na construção de imagens e dos simulacros existentes na cultura, na competência dada a determinados sujeitos da comunicação para a diversidade que ela institui. Esta pluralidade – de vozes, de línguas, de discursos – surge em decorrência da
[...] coexistência de contradições sócio-ideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas do passado, entre diversos grupos sócio-ideológicos, entre correntes, escolas, círculos etc. Estes ‘falares’ do pluringüismo entrecruzam-se de maneira multiforme, formando novos ‘falares’ socialmente típicos (BAKHTIN, 1998, p. 98).
Unindo o plano sensível e o inteligível, conteúdo e forma, a objetividade e a subjetividade existentes em uma dada cultura, as categorias/movimentos da dialética da filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin, permitem identificar cadeias de significação que em um mundo plural de signos produz simulacros. Redimensiona-se nos discursos conteúdo e forma para a perpetrar mediações que condizem com as aparências fenomênica da realidade. (KOSÍK, 1976).
Metodologicamente Mikhail Bakhtin propõe a análise da interatividade da comunicação em unidades dialéticas/dialógicas como conteúdo-forma, processo-resultado, material-organização, individualidade-interação, cognição-vida prática, universalidade – singularidade, objetividade – objetivação, estética / ética / cognição (conhecimento). (SOBRAL. In: BRAIT, 2005-b, p. 137).
A educação situa-se como um espaço de produção de discursos que se instaura no dialogismo. “o princípio constitutivo da linguagem e a condição do sentido do discurso” (BARROS. In: FARACO et al., 2001, p. 33). Como interação entre sujeitos, estabelece esferas / campos de circulação e significação que em situação de comunicação permitem descortinar na teoria do conhecimento de Mikhail Bakhtin os seguintes aspectos metodológicos:
· a materialidade sígnica histórica, social, cultural da interação comunicativa, e nela na importância da alteridade como elemento constitutivo dessa interação, ampliando-se o campo comunicação para as questões cognitivas, axiológicas em suas diretrizes que instauram o dialogismo nos saberes de comunidades semióticas (teorias, culturas, conhecimentos, fatos, eventos sociais) em diferentes discursos produzidos e em circulação;
· a detecção da articulação sígnica funcional existente nessas comunidades em sua operacionalidade e compartilhamento, semântico, lexical, polissêmico.
· o esclarecimento do processo de comunicação/interação como ato/atividade/evento em que as técnicas e as tecnologias, o meio e a sociedade são necessárias ao aluno, integrando-se à teoria do conhecimento e à “ação concreta (ou seja, inserida no mundo vivido) intencional (...) praticada por alguém situado, não transcendente” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005-a, p. 20). O sujeito age no mundo em atos sucessivos de modo participativo e responsável, respondendo a situações reais, nelas se incluindo. “Dessa forma, o ato responsável envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unindo-os a valoração/avaliação do agente com respeito ao seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo” (SOBRAL, In: BRAIT, 2005-a, p. 21).
No processo de contínua interação professor-aluno, esse caráter relacional se enriquece na objetificação de atos perpetrados por sujeitos habilitados à apreensão inteligível de uma realidade dotada de valor, de sentido que deles exige comprometimento ético e estético, assumindo o plano de uma aplicabilidade concreta pelo evento que ocorre em tempo e espaço definidos e “que inclui os vários atos da atividade do homem ao longo desse diálogo permanente que é a vida” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005-a, p. 27). O ato ou “ocorrência de uma data atividade” na comunicação é processo de realizar-se, de vir-a-ser, processo de forma e conteúdo (SOBRAL. In: BRAIT, 2005-a, p. 27).
Todo o processo de ensinar-aprender ou comunicar-se está conectado às condições assinaladas, consequentemente conteúdos, experiências ou outras informações, são discursos e enunciados circunscritos à mesma condição ética/estética de responsabilidade e de responsividade dialogizadas;
· as esferas/campos discursivos abrigam sujeitos que partilham um horizonte social, uma compreensão, um conhecimento, e de uma avaliação comum de uma situação. As inúmeras esferas ideológicas que transitam, refratam a realidade sócio-histórica concreta em discursos dotados de valor. Nesses campos, diálogos enunciam o plurilingüismo e a bivocalidade. O plurilinguismo
[...] é o discurso de outrem na linguagem de outrem, que serve para refratar a expressão das intenções do autor. A palavra desse discurso é uma palavra bivocal especial. Ela serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor. Nesse discurso há duas vozes, dois sentidos, duas expressões. Ademais, essas duas vozes estão dialogicamente correlacionadas, como que se se conhecessem uma à outra (como se duas réplicas de um diálogo se conhecessem e fossem construídas sobre esse conhecimento mútuo), como se conversassem entre si (BAKHTIN, 1998, p. 127).
Bakhtin esclarece ainda que o “discurso bivocal sempre é internamente dialogizado. Assim é o discurso humorístico, irônico, paródico, assim é o discurso refratante do narrador, o discurso refratante nas falas dos personagens, finalmente, assim é o discurso do gênero intercalado: todos são bivocais e internamente dialogizados” (BAKHTIN, 1998, p. 127-128);
· a arena discursiva das práticas utilizadas no uso da imagem e da escrita, o enriquecimento do aprendiz nos processos de concordância, de negação, de réplica, de persuasão, de apoio restrito condicionado, de confronto – entre outros – de caráter ideológico. Nesse processo o dialogismo estabelece a impossibilidade das reduções simplistas e empobrecedoras, da técnica pela técnica, dos dados às relações mecânicas, lógico-formais ou naturalizadas;
· a reflexão contida na categoria/conceito de polifonia, as múltiplas vozes presentes no discurso. Oposto à polifonia o discurso que enuncia uma única voz, autoritário, monológico
[...] não admite a existência da consciência responsiva e isonômica do outro; [...] O outro nunca é outra consciência, é mero objeto da consciência de um ‘eu’ que tudo enforma e comanda. O monólogo é algo concluído e surdo à resposta do outro, não reconhece nele força decisória. Descarta o outro como entidade viva, falante e veiculadora das múltiplas facetas da realidade social e, assim procedendo, coisifica em certa medida a realidade e cria um modelo monológico de um universo mudo, inerte (BEZERRA. In: BRAIT, 2005, p. 192).
Na multiplicidade de vozes e consciências eqüipolentes, vivas presenças sígnicas discursivas, a possibilidade é de uma construção crítica a modelos abstratos, acabados, estruturalmente e analiticamente representados em uma ordem sistêmica, concluída, de verdades cristalizadas;
· a posição do sujeito produtor do discurso, no universo dinâmico da contradição social a sua capacitação para a detecção de dogmas dos discursos monológicos, para o estabelecimento da relação teoria-prática na cronotopia e na exotopia.
[...] o conceito de exotopia designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro. [...] implica sempre um movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridade para fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dado contexto e os valores que ali afirma (AMORIM. In: BRAIT, 2006, p. 102);
O sujeito, no evento de ser, processo de devir existencial, se constitui como tal na cultura polifônica em tempo e espaço dinâmicos que entrelaçam passado, presente compartilhados pelos demais sujeitos sociais. A cronotopia
designa um lugar coletivo, espécie de matriz espaço-temporal de onde as várias histórias se contam ou se escrevem. Está ligado aos gêneros e a sua trajetória. [...] Bakhtin mostra que à visão do sujeito individual e privado corresponde um tempo individualizado e desdobrado em múltiplas esferas: o tempo de cada um dos sujeitos, em função de suas múltiplas vivências (AMORIM. In: BRAIT, 2006, p. 105).
Define-se desse modo o produtor do discurso, todo e qualquer sujeito, as criações artísticas e culturais, o tempo homogêneo/heterogêneo nas esferas da comunicação;
A importância da filosofia da linguagem para a educação está no entendimento da alteridade de sujeitos na promoção/circulação de discursos que compreendem seu dialogismo e na valoração de conteúdos e formas destes conhecimentos. Na educação existe uma produção de conhecimento a partir da interação comunicativa, com o relacionamento ético/estético do ato em atividade humana no ambiente escolar.
Referências
AMORIM, Marilia. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.
BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP, 1998.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. In: FARACO, Carlos Alberto et al. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001.
BEZZERA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
KOSÍK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005-a.
SOBRAL, Adail. Filosofias (e filosofia) em Bakhtin. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005-b.
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