domingo, 26 de setembro de 2010

A PERSPECTIVA ENUNCIATIVO-DISCURSIVA DE BAKHTIN E OS GÊNEROS DO DISCURSO




VANESSA ALVES DO PRADO
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - FFC

De acordo com Bakhtin (2003), o uso e as finalidades da linguagem originaram os gêneros do discurso, que são enunciados dos diferentes campos da atividade humana, constituídos em diferentes situações sociais e proferidos a determinado auditório social. Os gêneros orais e escritos refletem as finalidades de cada campo e de cada situação imediata, e são compostos por três elementos: o conteúdo ou unidade temática, o estilo ou recursos específicos que constituem a significação, e a construção composicional ou estrutura.
A unidade temática caracteriza o enunciado como concreto e único. O enunciado é considerado concreto porque apresenta um conteúdo em uma situação histórica particular e irrepetível, o que permite a variada significação da linguagem dentro de um tema. O estilo expressa a individualidade do falante ou do escritor, quando eles produzem gêneros discursivos. No entanto, há gêneros mais e menos propícios ao reflexo do estilo individual, o que depende do objetivo de cada enunciado: o estilo como plano do enunciado ou o estilo apenas como um resultante complementar do enunciado. O estilo de linguagem é um elemento do gênero do discurso e é indissociável do conteúdo e da construção composicional porque, segundo Bakhtin (2003, p. 371 – grifo do autor), “Por trás do estilo está um ponto de vista integral de uma personalidade integral. O código pressupõe certa disposição do conteúdo e exeqüibilidade da escolha entre dados códigos.”
Os gêneros discursivos podem ser primários e secundários, orais e escritos, e pertencerem a distintos campos da linguagem com a mesma natureza verbal. Os gêneros primários são enunciados, orais e escritos, mais simples e formados na situação imediata; já os gêneros secundários são enunciados mais complexos (predominantemente o escrito) que surgem das relações sociais e culturais mais elaboradas. Essa aparente fronteira que separa os gêneros primários dos secundários não impede a incorporação dos primários pelos secundários, quando aqueles “perdem o vínculo com a realidade concreta e os enunciados reais alheios”. (BAKHTIN, 2003, p. 263) Desse modo, a natureza do enunciado está pautada na relação entre a linguagem e a ideologia e é compreendida pela diversidade dos gêneros discursivos, produzidos nas relações da vida com a língua.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              
De acordo com Bakhtin (2003), o tema da enunciação é determinado pela situação histórica concreta e é constituído pelas formas linguísticas e pelos elementos não verbais, que garantem a unicidade. No interior do tema, a enunciação é composta por uma significação repetível e idêntica em situações diversas de comunicação. O tema não existe sem a significação e essa não existe sem o tema. O tema tem valor sígnico e a significação é apenas uma forma que ajusta o tema; sem o tema, a significação seria apenas sinal, um elemento isolado e congelado de toda a situação social, e não se constituiria como uma palavra, uma enunciação ou um signo ideológico. O tema sem a significação não seria nem mesmo uma ideia, porque faltaria o aparato técnico estável que ajusta aquilo que quero dizer ao que digo. Tema e significação são capacidades mútuas e é nessa reciprocidade que a língua se constitui para o falante: como um processo histórico que permite cada interlocução ser única e, ao mesmo tempo, repetível, o que somente é possível dentro da perspectiva da real comunicação discursiva por meio dos gêneros do discurso.
De acordo com os preceitos da linguística geral de Saussure, para compreender o uso da língua é preciso entender a representação dos dois parceiros que participam da comunicação: o locutor, aquele que fala e domina a palavra, e o receptor, o que ouve passivamente o discurso do outro. Essa concepção instaura um único fluxo da fala que elimina a dinâmica discursiva existente na unidade real da comunicação e a ativa posição responsiva como processo permanente da comunicação discursiva. Segundo Bakhtin (2003), o processo de audição e compreensão do discurso do falante promove, no ouvinte, uma posição responsiva simultânea em relação ao enunciado do falante, e torna uma abstração o momento do domínio da palavra por aquele que fala.
As enunciações são diversificadas pelo conteúdo e pela construção composicional, no entanto, elas possuem limites que são peculiares a todo enunciado. São esses limites que definem, por assim dizer, o princípio e o término do discurso de cada interlocutor e concedem ao outro, a ativa posição responsiva. Esse fenômeno da linguagem é definido por Bakhtin (2003, p. 275) como alternância dos sujeitos do discurso, e é uma réplica com caráter conclusivo, que exprime a compreensão do discurso alheio. A réplica só pode ser compreendida nas enunciações plenas, nas quais a alternância do discurso dos diferentes sujeitos está presente e que, no gênero primário, é o limite da fala de cada interlocutor e, no gênero secundário, é a representação do limite criado pelo falante e escrevente que são os participantes da comunicação.
As peculiaridades do enunciado, tais como a compreensão responsiva e a alternância dos sujeitos do discurso, não são possíveis no interior do sistema da língua. Isso ocorre porque a oração se relaciona somente com o contexto que a rodeia e é incapaz de considerar a posição responsiva do outro, como no enunciado. A oração carece da dinâmica enunciativa e dos elementos da unidade da comunicação discursiva: o contexto extraverbal, as enunciações alheias, a resposta do outro e os limites do discurso dos interlocutores. De acordo com Bakhtin (2003, p. 278), “o enunciado pode ser construído a partir de uma oração, de uma palavra, por assim dizer, de uma unidade do discurso [...] mas isso não leva uma unidade da língua a transformar-se em unidade da comunicação discursiva”, porque o enunciado se diferencia da oração em dois aspectos: preserva a alternância dos sujeitos do discurso e a conclusibilidade. A conclusibilidade vive no interior da alternância do discurso dos sujeitos e supõe um discurso exaurível do falante, quando esse já disse tudo o que havia para dizer e passa a palavra ao outro, alterando o interlocutor.
A perspectiva de conclusibilidade do enunciado presume um esgotamento do tema e de seus objetivos, apresentados pelo falante ou escrevente ao seu interlocutor. Desse modo, medimos a intenção discursiva do falante (o que ele quer dizer) e a conclusibilidade do seu discurso (se disse tudo o que queria) por meio da escolha do objeto de sua fala e da forma adequada do gênero que atenda as particularidades do discurso pretendido. A escolha do gênero é o elemento do enunciado que expressa a vontade ou intenção do autor, pois esse escolhe um gênero, relativamente estável e de determinado campo da atividade humana, e adequa o tema do seu discurso às condições de comunicação e aos participantes. Os gêneros, mesmo sendo enunciados relativamente estáveis, podem ser flexíveis ou padronizados, e adquirir o caráter da individualidade por meio da entonação expressiva.
Os gêneros mais flexíveis e livres se prestam à criatividade daqueles que os usam, pois quanto mais o falante conhece o gênero, mais livremente o usa na elaboração do seu discurso e mais o discurso adquire o caráter da individualidade e do estilo do falante ou daquele que escreve. Já os gêneros menos flexíveis (no caso dos padronizados) refletem a flexibilidade apenas na escolha do gênero e na entonação expressiva que o autor pode dar ao seu discurso. A diversidade dos gêneros é explicada pela diversidade de suas funções, por isso, um gênero mais padronizado, ao depender da entonação expressiva individual, pode adquirir um novo sentido e servir a outras relações concretas.
Diante do exposto, tomar a oração, a palavra isolada ou a frase como eixo central para a análise da língua, deforma os elementos substanciais da unidade da comunicação discursiva, tais como a alternância dos sujeitos do discurso, a ativa posição responsiva e a conclusibilidade. Entretanto, se a oração ou a palavra se configurarem como enunciado pleno, a incapacidade da unidade da língua de significar e responder ao outro, adquire um autor que exprime a palavra numa situação concreta de comunicação e estabelece relação com os demais participantes que emitem uma posição responsiva.
A oração e a palavra, enquanto unidades da língua, apresentam neutralidade, porque apenas no interior do enunciado é que o autor escolhe a maneira como vai dizer o seu conteúdo, escolhe um gênero para materializar o seu projeto discursivo e utiliza de recursos linguísticas expressivos, que determinam o seu estilo e a sua real intenção. Cada palavra expressa com entonação expressiva tem carga ideológica e uma significação cambiante dentro do tema, o que a caracteriza como um enunciado porque “só o contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato da língua com a realidade, o qual se dá no enunciado, gera a centelha da expressão: esta não existe nem no sistema da língua nem na realidade objetiva existente fora de nós.” (BAKHTIN, 2003, p. 292)
No momento da produção do enunciado real escolhemos a palavra para dar ao discurso não somente a significação pretendida, mas a expressividade pretendida pode vir de uma palavra ecoada do discurso alheio, compenetrada da expressão individual, quando apropriada pelo falante ou escrevente ou como palavra criada com chances de futuros elos discursivos no discurso dos outros. O enunciado é sempre criado a partir de algo dado, não apenas como reflexo de algo dado e acabado, mas inaugura algo novo, cria algo que não existia antes. “É como se todo o dado se recriasse no criado, sofresse transformação em seu interior.” (BAKHTIN, 2003, p. 326) Com isso, a palavra alheia, partida do outro enquanto algo dado, pode ser para o autor palavra própria sem aspas (criada) ou outras distintas formas de discurso alheio latente.
Face aos apontamentos apresentados, a produção dialógica do enunciado, gerada no contato com a realidade concreta em situações reais de comunicação, somente é constituída porque há os participantes e, na memória como palavra alheia-própria ou palavra própria, os discursos de determinados falantes. Esse processo dialógico não ocorre na oração enquanto unidade da língua, porque a neutralidade da palavra e da oração fora do enunciado transforma a palavra em palavra de ninguém. A palavra e a oração ganham expressividade e juízo de valor somente no interior do enunciado e, somente no interior do enunciado, a palavra suscita a resposta do outro e a formação de novas ideias nascidas do embate dos diferentes pensamentos.
O outro exerce um papel fundamental na unidade da comunicação discursiva. O autor produz o enunciado endereçado, como afirma Bakhtin (2003), a alguém, o seu destinatário, que pode ser qualquer sujeito participante das situações reais de comunicação, orais ou escritas, face a face ou por meio da materialização da escrita. O gênero é produzido ao considerar as particularidades do seu destinatário. A forma, o tema e o estilo do enunciado são definidos pelo autor para atenderem as expectativas do outro, para o qual o enunciado foi criado ou reacentuado. Nessa perspectiva, Bakhtin (2003, p. 302) esclarece o papel do autor ao ter em mente o seu destinatário:

Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.). Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário [...] a concepção do destinatário (e do seu fundo aperceptível) e a sua influência sobre a construção do enunciado são muito simples. Tudo se resume ao volume dos seus conhecimentos especiais.


O direcionamento é um dos elementos constitutivos do enunciado e determina as nuanças de estilo, de acordo com as relações estabelecidas entre os sujeitos e refletidas no enunciado pelos recursos linguísticos. A posição dialógica dos participantes do discurso instaura a compreensão responsável por modificar o sentido total do enunciado.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


2 comentários:

  1. Gostei muito desse texto, é exatamente isso que estou trabalhando com meus alunos. Muito bom!

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  2. Estou trabalhando com a teoria do enunciado e seu texto me ajudou a esclarecer algumas dúvidas. Muito obrigado.

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