Maria Aparecida MUCCILO
Ivanete Bellucci ALMEIDA
Na escola eu vi...
Manifestar a força do Amor.
Revelar para reconhecer,
Defender para acolher,
integrar para conviver.
Na escola eu vi...
Preocupar com os males da alma,
Preconceitos,
discriminações.
Na escola eu vi...
relações de ternura e respeito mútuo,
pequenos gestos de delicadeza,
apoio nas dificuldades.
Na escola eu vi...
Promover a generosidade,
Despertar solidariedade,
Cooperação de uns com os outros,
assumir e repartir responsabilidades.
Na escola eu vi...
O amor mostrar-se na doação,
no desprendimento em prol de outros.
MUCCILO, M.A.
A memória de uma cultura já não cabe apenas no conto: ela é constituída de documentos, vestígios, registros históricos, datas e arquivos. Tudo passa a estar inscrito numa cronologia. À lógica da justaposição, própria da oralidade, contrapõe-se a lógica do encadeamento. À autoridade do autor sem a obra material (narrador) contrapõe-se a autoridade da obra sem necessidade da presença do autor: o texto fala por si mesmo. O distanciamento possibilitado pela grafia permite o registro das experiências e das hipóteses, o conhecimento especulativo, o documentário de comprovações, a compilação de teorias e paradigmas.
Passamos da revelação à decifração, como se o mundo fosse um livro a ser lido e interpretado. O saber está distanciado, disponível e maleável para a leitura, o estudo e a avaliação de outros sujeitos. É uma espécie de memória impessoal que traz com ela uma preocupação certamente não muito nova, mas que vai ganhar ênfase no imaginário dos especialistas: a de conseguir produzir, registrar ou estabelecer verdades que sejam definitivamente independentes dos sujeitos que as produziram e dos contextos em que foram geradas - portanto, permanentes, absolutas e universais.
A ambição teórica será a construção de enunciados que falem por si mesmos, sem a necessidade de mediadores ou intérpretes. A escola se entende a partir das categorias próprias da cultura escrita: sua organização se faz sobre o conhecimento objetivo dos fatos, seu currículo se estrutura em função de saberes que pretendem funcionar como verdades permanentes, absolutas e universais, independentemente do contexto. Nessa escola, ler equivale a compreender o que foi expressado, como buscando acesso a uma lei universal. O texto é retirado de sua função social viva, seu contexto, suas raízes e sua história. Ele existe objetivamente, externo ao leitor e, portanto, é a ele estranho. O aluno não tem controle sobre ele - ao contrário, é o texto que, de certa forma, exerce o controle, uma vez que o estudante, sem possuí-lo, nada vale. O texto surge, assim, como fator de alienação escolar.
O conhecimento escolar da cultura letrada se estruturou como as páginas de um livro: linear, encadeado e segmentado. Num livro é difícil, mesmo incômodo, consultar dois trechos de páginas diferentes ao mesmo tempo: na escola também. É preciso passar primeiro pelo pré-requisito, e só depois ver o seguinte.
Apesar de tê-lo objetivado no papel, a escola não prescindiu do conhecimento memorizado, como se não confiasse no novo auxiliar cognitivo. Com uma diferença, porém: para os narradores, a história relatada fazia sentido porque era parte de suas vidas; na escola, isso quase nunca ocorreu: justamente se memoriza o que não faz sentido, o que não tem relação com a realidade, o que só serve para depois, para Bakhtin,
Pode-se dizer que, por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para que a palavra deve ser superada por via imanente como palavra, deve tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação do autor com esse mundo. (Bakhtin, 2003, p. 180)
A escola costuma limitar a possibilidade de penetrar na experiência do outro; com seus currículos rígidos, fundamentados sobre uma concepção racionalista e linear, a educação escolar muitas vezes se constitui como dominação da razão sobre outras competências e saberes humanos, mais ligados ao espírito, à afetividade, ao emocional
A relação com textos não se dá tanto pela narrativa e pela criação como pela interpretação e análise morfológica, abrindo-se mão da memória e da experiência pessoal, em nome da centralidade do intelecto, imposta pela busca prioritária de uma compreensão teórica do real e da linguagem.
A escola como a conhecemos até agora, enfim, tem muito mais de monologismo do que de polifonia - estou me apropriando de conceitos do lingüista russo Mikhail Bakhtin. Uma escola monológica é aquela em que um único sentido sobressai, impedindo os demais de virem à tona. Esse tipo de trabalho com a linguagem exclui a dimensão criadora; a língua passa a servir, numa análise mais ampla, até mesmo como um instrumento de reprodução do sistema. A polifonia, para Bakhtin, é um jogo dramático de vozes,
[...] que torna multidimensional a representação e que, sem buscar uma síntese de conjunto, cria uma tensão dialética que configura a arquitetura própria de todo o discurso (2003, p.18).
Anular a possibilidade da polifonia é anular o diálogo e a reconstrução possível de sentidos, fechando o acesso ao que só poderia ser completado pelo leitor. Clarice Lispector (1980) escreveu: "ao prender o que me aconteceu usando palavras estarei destruindo um pouco o que senti - mas é fatal". Talvez não seja: quem lê reconstrói.
Cecília Meireles já havia dito que “a vida só é possível reinventada”. Esforcei-me em compreender esse mistério da permanência da Escola que, apesar de tudo, consegue recriar-se, reinventar-se e se ornar de beleza, como a vida, a cada novo dia. Contudo, inspirado por Clarice, faz-se mister que diga de antemão que o melhor ainda não foi escrito e que ainda há muito para ser desvendado.
Percebi assim que, embora a Escola esteja mergulhada e dominada pelo turbilhão que a consome e faz sofrer, ela também abriga vitalismos e forças poderosas que concorrem para sua permanência. Percebi que uma dessas forças origina-se na estética que o estar juntos proporciona.
Por promover a agregação e possibilitar a convivência prazerosa, a Escola traz consigo essa potência que se manifesta na sua recriação diária, por força dos sujeitos que nela encontram um espaço de estético conviver. Desse aluvião inesgotável brotam as éticas que qualificam as relações e ornam ambiente que a distinguem, para Bakhtin,
A contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência. (Bakhtin, 2003, p. 22).
Desta forma, percebi que a Escola se constitui também como um espaço de magia e de criação, decorrentes do Encontro e do Prazer da Convivência. Nela, cada um, e todos juntos, podem usar o seu condão pessoal para doar-se por inteiro à tarefa de criar e recriar as circunstâncias de suas vidas. Quando se descobre esse poder mágico da criação, que às vezes encontra-se adormecido, e quando ele é exercido de forma coletiva, a vida deixa de ser um enfadonho vale de lágrimas, para dar lugar à busca incansável de realização dos desejos, individuais e coletivos. Quando se descobre que, como afirma Maturana, nada do que se faz, pensa e diz é trivial ou irrelevante, que toda ação tem conseqüências no domínio das mudanças estruturais a que pertencemos, então a vida ganha um outro sentido.
Aprende-se a dar um toque de magia em tudo o que configura o contexto da vida; aprende-se a assumir e viver a vida na perspectiva da ética do cuidado que faz cada um sentir-se, como diz Morin, “cem por cento responsável” por tudo o que faz, pensa e diz. Quando isso começa a acontecer, emerge em cada um a sua dimensão poética, adormecida e subjugada, que enche a vida de prazer e sentido. O que vem depois é aquilo que faz da vida uma obra de arte, bela, prazerosa e digna de ser vivida, mesmo que em situações adversas, como a de ser educadores em tempos difíceis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da Poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
_________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999.
_________. Estética da criação verbal. 4ª ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A Árvore do Conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Palas Athena, 2001b.
______. De Máquinas e Seres Vivos –Autopoiese: A organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 3ª edição,1997.
MATURANA, Humberto e REZEPKA, Sima Nisis. Formação Humana e Capacitação. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. 2ª ed. São Paulo: Editora Cortez; Brasília: UNESCO, 2000a.
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