domingo, 19 de setembro de 2010

RAPiando com Bakhtin



                                                
Geyza Rosa Oliveira Novais Vidon
(Doutoranda em Educação/UFES)

O Rap e a cultura Hip-hop vêm se estabelecendo no Brasil desde, pelo menos, a década de 80 do século passado, ou seja, aproximadamente há uns 30 anos atrás esses movimentos culturais surgiram por aqui. Desde então, eles vêm se constituindo como um elemento de criação estético-verbal que apresenta múltiplas faces e infinitas formas de análises, que passam desde as mais tópicas às mais profundas e complexas.
Neste ensaio, pretendo discutir algumas questões que observei ao fazer a minha leitura do rap “Vida loka II”, do grupo Racionais MC’s, e que pretendo compartilhá-las com os que, assim como eu, se interessam por esse movimento, por essa cultura, por essa produção artístico-verbal e, sobretudo, por esses sujeitos que produzem o rap.
Como foi dito, o rap instiga infinitas questões e possibilidades analíticas. Algumas delas já tentei, em outros momentos, em artigos (VIDON, 2010a; VIDON, 2010b) e, também, em minha dissertação de mestrado (VIDON, 2007),  explicitar e discutir sob as perspectivas dos estudos discursivos e culturais (BHABHA, 1998; LACLAU, 2001). Mas aqui minha escolha teórica se limitará a uma análise bakhtiniana de leitura de mundo e de homem (a partir, principalmente, de “Questões de literatura e estética” e “Problemas da poética de Dostoievsky”).
Isto posto, percebe-se que o que, para efeito teórico-metodológico, chamo de limite ou recorte, na verdade, é um universo de possibilidades, pois Bakhtin é uma fonte inesgotável de caminhos. Assim, estradas, janelas e portas quânticas são abertas e apresentadas aos que buscam dialogar com as suas teorias.

Para começo de conversa, gostaria de estabelecer algumas relações possíveis entre o rap e os conceitos bakhtinianos de linguagem e de sujeito, indissociáveis de outros conceitos como os de polifonia, de consciências múltiplas, hibridização, e que articulam, na teoria, uma certa relação entre ética e estética.
Dentro dessa perspectiva, dialogando com os conceitos bakhtinianos de linguagem e de sujeito, o rap será discutido como uma espécie de híbrido explícito do gênero literário prosaístico e do gênero musical.
Hoje em dia, com tantos aparatos tecnológicos, temos não apenas a possibilidade de ouvir uma canção, mas também de assistir o seu videoclipe, o qual, se bem produzido, pode provocar um efeito mimético no fruidor. Este é o caso do videoclipe de “Vida loka II”, dos Racionais MC’s, produzido em 2003 (http://www.youtube.com/watch?v=b7OXqKbjhTA). O grupo faz um trabalho cuidadoso de uso das linguagens verbal e visual. As imagens vão sendo apresentadas, dinamicamente orquestradas ao contexto da periferia, mostrando-a na década de oitenta, com suas precárias condições sociais, com toda a sua pobreza material, seus problemas, suas angústias, e como, na atualidade, esses problemas ainda não foram superados, aumentando, ao contrário, a cada dia, maximizando-os em todos os aspectos e sentidos. Porém, paradoxalmente, essa pobreza física, que é narrada (aos moldes polifônicos) e apresentada aos interlocutores, é, de alguma forma, “superada” pela riqueza estilística do uso e do tratamento da linguagem pelos locutores-narradores. Mais do que minhas palavras possam tentar representar, o rap e o vídeo enunciam esse lugar de constituições discursivas e de sujeitos em tempos e lugares mais pontuais coexistindo com tempos e lugares múltipos, envolvidos numa cadeia de relações conturbadas e contraditórias: Deveres (obediências, trabalho, sobrevivência) X Direitos (sonho, esperança, desesperança, revolta) se misturam em um complexo universo de valores.
Em todo o enredo da letra e do vídeo, o jogo de vozes, explícitas e implícitas, é percebido. O diálogo externo e interno é estabelecido, tensões dialogadas são travadas, as fronteiras do eu e do outro, dos eus e dos outros são abaladas, se chocam, se misturam, se confundem, se aproximam e se distanciam, provocando um movimento de forças centrípetas e centrífugas.

“Trata-se da língua do dia, da época, de um grupo social, de um gênero, de uma tendência, etc. É possível dar uma análise concreta e detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal. O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilingüismo dialogizado, anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como enunciação individual.” (BAKHTIN, 1993, p. 82)

Nestas tensões entre lugares de onde se enuncia ou se narra, lugares que constituem o eu físico, social e psicológico dos sujeitos – entendendo o psicológico como o espaço concretamente desenvolvido pelo universo sociológico do sujeito – vários conflitos vão sendo expostos, especialmente conflitos identitários (ora o desejo de poder também usufruir dos privilégios das classes mais abastadas; ora o desejo de se manter ‘puro’ – mesmo que isto signifique continuar na miséria física). Trata-se, assim, de conflitos entre os lugares de constituição dos sujeitos (periferia, favela X zona sul, área nobre):

“Firmeza Total, mais um ano se passando ae
graças a Deus a gente tá com saúde aê, morô, com certeza
muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso, sem miséria
e é nóis, vamo brindar o dia de hoje, o amanhã só pertence a Deus
a VIDA É LOKA...”

“(...) Logo mais vamo arrebentar no mundão
De cordão de elite, 18 quilates”

“Nego,
O que é que tem,
O importante é nóis aqui,
Junto ano que vem,
E o caminho,
Da felicidade ainda existi,
É uma trilha estreita,
É em meio a selva triste”

“Ás vezes eu acho,
Que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato,
Só seu,
Sem luxo, descalço, nadar num riacho”

O próprio título do rap, “Vida loka”, já sinaliza que a vida cotidiana é muito mais complexa do que nos mostram os livros didáticos, os discursos devidamente organizados e estruturados, defendidos por muitos, dando-nos a ilusão de que a vida segue um fluxo contínuo, e devidamente organizado segundo certas escolhas e certas posições que se ocupam na sociedade. Os rappers, porta-vozes da periferia (ou o homem do subsolo), parecem romper com essa visão de mundo monológica, demonstrando, consciente ou inconscientemente, através da sua linguagem, a multiplicidade de planos, de mundos, assumindo uma visão que, em Bakhtiin, chamaríamos de cosmovisão. Em Bakhtin, a vida é concebida como força de criação. Portanto, mais complexa e dinâmica do que a própria concepção dialética de vida. Atrevo-me a dizer que a visão de mundo e de sujeitos inseridos no mundo, para Bakhtin, seria uma visão quântica, no sentido das múltiplas possibilidades, dos múltiplos planos,  consciências, que se intercruzam e se interrelacionam, existências que não apenas existem, mas coexistem, que se afetam, mútua e simultaneamente.
É assim que vejo o rap Vida loka II, um híbrido de gêneros que usam a linguagem para produzir efeitos de sentidos múltiplos, diversos, sentidos que encontramos nas nossas próprias angústias e desejos, nas nossas tensões pessoais e coletivas, nas nossas buscas infindas de satisfação e de insatisfação com o que queremos e o que não queremos, com o que podemos e o que não podemos.
Mano Brown diz:

“E eu que...E eu que...

Sempre quis um lugar,
Gramado e limpo, assim verde como o mar,
Cercas brancas, uma seringueira com balança,
Disbicando pipa cercado de criança...

A voz do parceiro entra em cena explicitamente:

“How...How Brow
Acorda sangue bom,
Aqui é Capão Redondo Tru,
Não Pokemon,
Zona Sul é invés, é Stress concentrado,
Um coração ferido, por metro quadrado...  

E, assim, as enunciações vão sendo apresentadas, em forma de língua(gem) viva, sem dar setas e, com um tom diferenciado da linguagem oficial, o rap vai fluindo, explicitando suas próprias éticas e estéticas.  Nossos eus e nossos outros, as vozes internas e externas se apresentam nesse caótico movimento (“movimento em turbilhão” [BAKHTIN, 2005, p. 29]):

“Aqui o dinamismo e a rapidez (como, aliás, em toda parte) na são um triunfo do tempo mas a sua superação, pois a rapidez é o único meio de superar o tempo no tempo”

Então, retomando a questão do tempo, analisada por Bakhtin na obra de Dostoievsky, busco uma aproximação dessa análise com a análise dos raps dos Racionais MC’s, em especial com a análise do rap “Vida loka II”. Nesse sentido, o narrador-locutor do rap assume uma visão de sujeito que se desdobra em vários tempos (e, também, espaços[1]), deixando explícito nos versos citados (“Ás vezes eu acho que todo preto como eu só quer um terreno no mato, só seu. Sem luxo, descalço, nadar no riacho, sem fome, pegando as frutas no cacho. Aí truta, é o que eu acho, quero também, mas em São Paulo, Deus é uma nota de 100. Vida loka!”).
Aquele tempo em que ele próprio não viveu fisicamente (“Dimas primeiro vida loka da história”), mas que, de alguma forma, foi experimentado através de outras vozes, outras narrativas. E este mesmo sujeito está coexistindo com o tempo presente, marcado pela sua contingência, suas necessidades mais visíveis. Portanto, o tempo cronológico não é o único tempo possível para o sujeito. Nós, seres humanos, atualizamos os tempos remotos e os que estão por acontecer em uma outra espécie de tempo. Poderíamos chamá-lo de tempo-ato. E nesse sentido não é proibido dizer que um instante pode carregar uma eternidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
____________ Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
LACLAU, E. Universalismo, Particularismo e a Questão da Identidade. IN: MENDES, C. (coord.) e SOARES, L. E. Pluralismo Cultural, identidade e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.
VIDON, G. R. O. N. Identidades discursivas no rap de MV BILL e RACIONAIS MC’S. Três Corações: Dissertação de Mestrado, 2007.
____________ Um tiro nos ouvidos. Vitória-ES: PPGE/UFES, 2010.
____________ A arte de narrar: resistências e identidade no Rap. Niterói-RJ: Grupalfa/UFF, 2010.




[1] Em VIDON (2010b), o conceito de espaço, como terceira dimensão, é aquele lugar forjado pelo jogo tensional entre os eus e os outros. Os espaços da interpenetração, do atravessamento das identidades, das vozes, dos discursos, enfim, dos planos e dos mundos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário