Licia Frezza Pisa
Estudando Bakhtin (2002) nos deparamos com um mundo diferente, pois olhamos para os acontecimentos da vida e nos posicionamos responsivamente. Bakhtin acredita que para o ser humano o fundamental é o ato de pensar, de se posicionar, pois no ato respondível, responsável, responsivo, nos faz refletir sobre os acontecimentos e essa reflexão lhes confere um acabamento (estético), por isso ser um ato ético. A ética ocupa um lugar no mundo, nas vivências, experiências e responde a esses acontecimentos, por isso cada um enxerga o mundo a partir do lugar que ocupa no mundo.
As relações nos colocam em diálogo e os diálogos circulam, refletem e refratam ideologias. “O discurso nasce no diálogo como sua réplica viva e forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem” (BAKHTIN, 1998, p. 88-89), por isso a concepção do discurso é dialógica.
Nos diálogos trazemos tensões, diferenças e transformações que na relação espaço-tempo podem mostrar ou trazer mudanças sociais e culturais e podem colocar a alteridade no lugar da identidade, sendo assim, “cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 2002, p. 33).
Dessa maneira este breve texto traz algumas inquietações acerca do papel ético e estético da sociedade em relação a duas peças publicitárias para discutirmos como a sociedade se posicionou, visto que as peças foram proibidas, para refletir o discurso das imagens contemporâneas.
A primeira imagem (Imagem 1) diz respeito a um anúncio de sorvete com uma freira grávida tomando sorvete dentro de uma Igreja que foi proibido no Reino Unido. Junto da imagem há os dizeres: “concebido imaculadamente” (em alusão ao dogma cristão da concepção de Jesus) e “sorvete é nossa religião”. A Advertising Standards Authority, por meio de reclamações proibiu o anúncio alegando que desrespeitava as crenças cristãs, principalmente de católicos.
A sociedade se posicionou, se fez ouvir, dando voz à proibição. Mas pensemos o que poderia ter motivado esse ato responsivo, no sentido de refletir sobre os discursos motivadores, os valores do homem e a alteridade fundadora: os discursos que circulam nas mídias com relação à Igreja Católica na atualidade são em grande parte sobre as proibições (camisinha, contraceptivos, células tronco, aborto, eutanásia, etc.) e a pedofilia de padres. Se pensarmos, porém, que a imagem da freira grávida é chocante, é chocante também padres abusando de menores e mantendo relações homossexuais, o que para a Igreja é uma doença, e, sendo assim, os padres estariam todos doentes, além de estarem cometendo um crime. Olhando a situação da freira grávida, ela se encontra em uma situação mais leve, pois apenas se rendeu às tentações da carne (e do sorvete?), podendo se confessar e se absolver do pecado. Acabou engravidando justamente porque seguiu as orientações da Igreja de não utilizar camisinha e nem contraceptivos, que são proibidos pela mesma e manteve uma relação heterossexual, estando saudável perante a Igreja Católica. Sendo assim, o que está em jogo? Por que foi proibida? Quais discursos motivaram a sociedade? Por que a sociedade não pede para proibir as reportagens com padres pedófilos? O discurso publicitário é mais grave do que os acontecimentos divulgados pelo jornalismo? Que ideologias e que discursos justificam a proibição? Se fossem dois homens tomando o sorvete concebido imaculadamente teria alguma diferença? Quais diferenças? Por outro lado a empresa não iria fazer uma campanha para falir, ela a fez por certas motivações, ela tinha um projeto de dizer.
Pensando em carnavalização (obscenidades, injúrias, louvores, grosserias, liberdade, inovações que rompem com a estratificação social), essa imagem é uma inversão, mas não é uma inversão por inversão, uma sátira por sátira, um desrespeito apenas. Ela traz um discurso de protesto e, para Bakhtin com relação às manifestações carnavalescas, nos diz que “é perfeitamente compreensível que essa linguagem livre e ousada tenha dado por sua vez o conteúdo positivo mais rico às novas concepções de mundo” (1987, p. 235).
Seria de se pensar que a alteridade da peça publicitária está sendo colocada em cheque por uma certa identidade esperada? Podemos pensar que são discursos latentes que começam a circular e, mesmo com proibições, atuam na possibilidade de trazer outras ideologias para dialogar com a sociedade?
A segunda imagem (imagem 2) faz parte da campanha de uma linha de maquiagem da marca Mac, que traz imagens de mulheres pálidas, com aspecto sonâmbulo ou de zumbi. A proibição teria sido motivada pela coleção fazer alusão à cidade de Juárez (México), sendo este o nome de um dos esmaltes.
A cidade de Juarez é conhecida por ser uma cidade extremamente violenta, com o maior número de homicídios e brutalidades seguidos de feminicídos (expressão utilizada por causa da enorme quantidade de mulheres que morrem da cidade). A cidade passou a receber holofotes a partir de 1993 em decorrência de uma série de assassinatos, torturas e agressões às mulheres da cidade. Os crimes acontecem e continuam acontecendo sem explicação, não estando ligados á milícias ou ao tráfico de drogas.
Os produtos da coleção recebem outros nomes que fazem lembrar a situação da cidade: sombra Border Town (cidade de fronteira), esmalte Factory (fábrica), esmalte Juárez (cidade), batom Ghost Town (cidade fantasma), baton Sleepless (sem dormir), blush Quinceãnera (menina de quinze anos), gloss Del Norte (antigo nome da cidade de Juarez).
A sociedade se posicionou responsivamente e a campanha foi proibida (uma campanha de alcance mundial) alegando que as mulheres pareciam mortas, sendo associadas às mulheres agredidas nos massacres na cidade de Juárez.
Sendo assim, quais discursos motivaram a sociedade a se manifestar contra a campanha? Que ideologias e que discursos justificam a proibição? Há um limite para a criação publicitária? Se a violência pode inspirar e estar presente em reportagens, diariamente em noticiários, jornais, filmes, documentários, músicas, romances, novelas, por que não pode aparecer na publicidade? A campanha teria desrespeitado as mulheres da cidade de Juarez? A campanha não seria uma maneira de chamar a atenção para esse problema social, visto que a publicidade tem força nos seus discursos? Não seria uma maneira de homenagear essas mulheres? Se as mulheres do anúncio estivessem coloridas e sorrindo seria menos chocante e não haveria proibição? Somente a beleza e a vida podem ser exaltadas? Não seria um discurso de protesto pelas várias mortes ocorridas? Não seria interessante pensar na alteridade do produto maquiagem ao propor uma campanha que não traz o discurso da beleza, da vaidade?
Essas são algumas das reflexões acerca da estética da sociedade com relação às campanhas publicitárias, visto que todo discurso é respondível, pois os diálogos são dialogados. Deste modo trata-se de discutir os discursos que permearam as proibições e pensar se, como coloca Ponzio (2010) a alteridade está sufocada pela identidade. Tentar compreender a natureza desses discursos (num momento em que há certas liberdades de expressão, de protesto, pelo menos no Ocidente) para não serem descartados por não encontrar lugar no leito de Procusto (BAKHTIN, 1998, p. 78).

Imagem 1 – fonte: www.oglobo.com


Imagem 2 – fonte: www.portaisdamoda.com.br
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 10. ed. São Paulo: Annablume, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Fraçois Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. Coord. Tradução Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
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