Profa.Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira (UFRN)
1.Introdução
Antes de tudo gostaríamos de esclarecer que esse texto é apenas uma colocação “em voz alta” de algumas reflexões preliminares e provisórias sobre a relação entre ética e estética nos escritos do Círculo. De nosso ponto de vista, essa relação exigiria ser tratado no âmbito da problemática da alteridade e é com o objetivo de trazer contribuições para a compreensão dessa temática e suas formas de manifestação nas práticas discursivas contemporâneas que elaboramos esse texto. Esclarecemos ainda que, enquanto texto, carece, em alguns momentos, das marcas formais do gênero acadêmico clássico, além de não se configurar como relato de resultados de pesquisas. A organização do texto obedece a uma ordem indicada nos subitens.
2. Revisão da noção de alteridade
Na contemporaneidade, no âmbito dos estudos culturais, a discussão sobre a alteridade ganha fôlego, na medida em que o sujeito, o ser humano passa a ser compreendido como um ser plural, não idêntico a si mesmo.
Contribuindo com a discussão, Nestor Canclini (2005) afirma que é necessário considerar a alteridade como uma construção imaginada, que ao mesmo tempo enraíza-se em divergências interculturais empiricamente observáveis”(Canclini, 2005:286). Ou seja, diz ele, em uma sociedade globalizada exige-se maior disponibilidade para conviver diariamente com os diferentes, aumentando os riscos de que essas diferenças se tornem conflituosas, de tal modo que em alguns momentos a tolerância humanística, como simples apelo ético, é insuficiente (Canclini, 2005:286).
Bauman (2001), por sua vez, entende que na “modernidade líquida”, a sociedade está sempre produzindo “outros” ininterruptamente, embora, essa super-oferta de “alteridades” não significa necessariamente liberdade nas escolhas do “outro” com os quais interagir, nem garante que a troca realize-se com interlocutores postados em um mesmo patamar. Em tal dinâmica, as relações com a alteridade assumem formas as mais diversas e nem sempre o respeito às diferenças significa sua marca registrada.
Ainda no âmbito dos estudos culturais, Duschatsky e Skliar(2001)consideram que as versões discursivas sobre a alteridade, na contemporaneidade, apontam para o outro visto como : a)- fonte de todo o mal , conforme análises de Hobsbawn, para quem o Sec .XX teria sido o mais mortífero da história da humanidade, indo desde a eliminação física, às regras de coerção, até as várias formas de demonização do outro; b) – sujeitos plenos de uma marca cultural, representando comunidades homogêneas de crenças e estilos de vida, à semelhança do que Canclini considera como multiculturalismo ingênuo; c)- e, finalmente, como alguém a tolerar.
Para os pensadores do Círculo de Bakhtin, a questão da alteridade é temática fundamental, abordada desde o primeiro texto, “ Para uma Filosofia do Ato”, assinado por M.Bakhtin. Nele, a relação com alteridade emerge no bojo de uma discussão sobre o que seria uma arquitetônica do mundo da vida, o mundo concreto, onde o sujeito realiza atos éticos, vivenciado a partir de uma tripla dimensão, qual seja, o eu para mim, o outro para mim e eu para o outro.
Essa relação de constituição do eu para o outro, explorada exaustivamente em “ Autor e Herói” ( Bakhtin, 2003), é a relação que torna possível a emergência dos valores, do eixo axiológico. Ou seja, são os centros de valores, que dizem respeito às possíveis relações entre o eu e o outro e deles com o mundo, relação esta da ordem do acontecimento que se institui como fonte para o princípio ético, para a manifestação do eixo axiológico.
Ou seja, de um lado temos o princípio de que o eu apenas se constitui na relação com o outro, embora preservada a não- identidade entre eles e, de outro, encontramos nessa formulação a noção de um princípio ético que se estabelece a partir das relações entre o eu e o outro.
Em “Reformulação do Livro de Dostoievsky” ( Bakhtin, 2003), reforça seu entendimento do ser humano como inacabado e incompleto, exatamente porque o mundo da vida não é um mundo fechado, um mundo concluso, reafirmando a necessária alteridade à constituição do ser humano, na medida em que ser para ele “significa conviver”. Textualmente diz Bakhtin, “...O homem não tem um território inteiro e soberano, está todo e sempre na fronteira, olhando para dentro de si, ele olha o outro nos olhos ou com os olhos do outro” ( 2003:341).
Em outras palavras, a questão da alteridade, da forma que está posta pelo Círculo, apresenta-se com sua dimensão dialógica, uma dimensão de interconstitutividade entre o eu e o outro, ao mesmo tempo em que incorpora a dimensão ética e política, na medida em que esse “eu” e esse “outro” configuram-se como sujeitos que não tem álibi para o ser, portanto não podem isentar-se de seus atos, éticos porque valorados, instaurando a responsabilidade dos agentes pelos seus atos e as conseqüências decorrentes.
Nesse contexto, é que para os pensadores do Círculo, é praticamente impossível ser indiferente. A indiferença, em si, já é uma atitude que revela valores, é um posicionamento. Não é pois coincidência a defesa de um “pensamento participativo, não –indiferente” que encontramos no texto Para uma filosofia do ato.
Em nossas leituras dos textos de Bakhtin, julgamos encontrar exemplos de relação com a alteridade nas análises que esse autor realizou sobre os romances de Dostoievsky e de Rabelais. Resumidamente diríamos que na obra de Dostoievsky, Bakhtin encontrou personagens que não são escravos, nem mudos em relação ao seu autor-criador. Ao contrário, são pessoas livres, capazes de colocar-se “... lado a lado com seu criador...” ( Bakhtin, 1997:4), para com ele concordar, discordar, rebelar-se até. Retrata, naqueles romances, um mundo no qual existem sujeitos, investidos de plenos direitos, diríamos um mundo de cidadãos, situados em um espaço civil ( Bauman, 2001). Diz Bakhtin (1977), que em Dostoievsky dialogam vozes sociais, convicções, pontos de vista sobre o mundo, sobre sistemas de referência (Bakhtin, 1997), em “pé de igualdade”, sobre temas/problemas, que não se colocam no eixo de uma temporalidade marcada. O essencial dessa relação com a alteridade é a garantia do espaço de dizer e de ser ouvido, é a presença de mais de uma consciência, de mais de um ponto de vista, onde as diferenças não signifiquem desigualdades sociais.
Outro exemplo clássico do modo de relacionar-se com a alteridade, encontramos nas práticas discursivas que se realizam pela transgressão. Este o exemplo presente na análise que este autor faz da obra de Rabelais (Bakhtin, 1985). Nesta obra, diz Bakhtin, as relações dialógicas com a alteridade travam-se em relação explícita de confrontação e discordância entre valores, entre culturas, no caso, a cultura popular e suas vozes em confronto com a cultura elitista e hegemônica da época. Em resumo, as relações com a alteridade, conforme Bakhtin relata na análise dessas duas obras, em Dostoievsky, espaço da liberdade, em Rabelais, transgressão e resistência, reforçam a afirmação recorrente e presente em vários de seus textos dos diferentes graus das relações dialógicas possíveis entre “eus e tus”.
É o próprio Bakhtin que em “Apontamentos”, sintetiza as possibilidades de relações dialógicas e dos graus de dialogia que as atravessam. Segundo ele, teríamos: a)- relações entre sujeitos, talvez um tipo dessas relações pudessem ser aquelas entendidas como as relações dialógicas polifônicas, mas também as relações que ele considera como “retórica superior” poderiam estar incluídas nesse campo; b)- relações que se travam entre sujeitos e objetos, no caso de submissão de vozes a uma consciência única, que podem se manifestar pelo apagamento do sujeito ou pelo seu assujeitamento, ou ainda, os casos da “retórica inferior”, ou os discursos da “exclusão” ; c)- e, finalmente, relações que podem configurar-se entre objetos, as relações causais, as matemáticas, aquelas da ordem da lógica, como por exemplo, as relações que se travam entre orações de uma língua, conforme aquelas relações presentes no modelo teórico do “objetivismo abstrato” ( Voloshinov, 1979).
Pensamos que esse esquema aponta para tipos de relações dialógicas entre o eu e o outro, contudo, o próprio texto de Bakhtin aponta para o fato de que essas relações não são fixas. Ou seja, elas não são de ordem da estrutura e sim, diríamos, que elas funcionam muito mais em “rede” para usar uma metalinguagem de hoje. Ou seja, essa sintetização, em nenhum momento significa uma classificação rígida, ainda mais porque, como diz aquele autor, as relações que se travam no mundo da vida são da ordem do acontecimento, do irrepetível, do singular.
3. O Ato ético
Os conceitos de ato ético, sujeito ético e a emergência do ato ético são tratados por Bakhtin em “ Para uma filosofia do Ato”, tendo como ponto de partida uma reflexão sobre o mundo da cultura de seu tempo e sua crítica às teorias produzidas naquele mundo, as quais postulam verdades universais e um dever ser absoluto, obrigatório para todos, exatamente por não levar em consideração os atos concretos, produzidos pelo ser humano, no mundo da vida.
O mundo da vida, um mundo de “nomes próprios”, é habitado por sujeitos éticos os quais, ao agirem, assumem posições, transformando os valores, construídos historicamente e circulantes no mundo da vida, em um dever ser para si, orientador do seu agir. Constituí-se ainda de eventos, em torno dos quais se organizam os centros valorativos do eu e do outro, já explicitados anteriormente.
O ato ético emerge como aquele ato resultante de ações realizadas pelos sujeitos, nesse mundo, portando um “tom emocional-volitivo”, uma posição axiológica, raiz da responsabilidade ativa do não álibi no ser. Resume esse seu pensamento, a afirmação contida em “Arte e Responsabilidade”, quando ele diz que o ser deve responder com sua própria vida aquilo que ele realizou e compreendeu na arte, postulado esse que pode ser estendido para os atos cognitivos e a produção do conhecimento.
Assim configurado, o ato ético é ponto de partida para qualquer investigação ou formulação teórica, que pretenda dar conta da existência do ser em sua complexidade, ao mesmo tempo em que é através dele que o ser se reconhece e pode ser reconhecido.
Surge, nesse cenário, a linguagem, enunciadora desse ato. Segundo ele, o ato para sua realização requer a linguagem, a inteira plenitude da palavra tanto em seu aspecto de conteúdo, tanto como imagem, como no que diz respeito ao seu aspecto valorativo, a palavra, diz ele, cresceu a serviço do pensamento participativo e dos atos realizados.
A partir dessas colocações, interpretamos que a compreensão de linguagem como uma prática social, no pensamento bakhtiniano, tem suas raízes no conceito de ato ético, aquele que se realiza no mundo da vida, formando uma unidade inseparável entre ação e linguagem, semiotizando-se no enunciado, a unidade concreta de comunicação verbal, desenvolvida mais tarde por Bakhtin no texto, talvez o mais conhecido ou pelo menos o mais citado deles, “ Os gêneros do discurso”.
3. A atividade estética
Passemos agora ao que entendo como ato estético, a partir do texto “Autor e herói”, no qual a relação do autor-criador com sua obra, seu herói, seus personagens é exaustivamente explorada. A nosso ver, assim como a noção de ato é basilar para a compreensão da relação com a ética e com o “ser” responsável e responsivo, a noção de distanciamento, possibilitada pelo excedente de visão, próprio da posição exotópica ocupada pelo autor, é a pedra angular para a realização da atividade estética, ou seja, para “dar acabamento” à obra artística.
Essa noção de acabamento, em Bakhtin, envolve aspectos desde os estilísticos, plásticos, pictóricos, rítmicos, até a articulação das vozes sociais e suas visões de mundo.
A atividade estética, a nosso ver, seria aquela na qual encontraríamos o predomínio da relação “ o outro para mim”, enquanto dimensão da alteridade. Ou seja, é a partir da idéia que tenho do outro, que lhe dou acabamento, ou seja, é a minha visão do outro, meu ponto de vista sobre ele que orienta a seleção dos elementos materiais que irão permitir construir a forma arquitetônica do enunciado sobre o outro( Bakhtin, 1991)
4.Problematizando
E aqui, começamos a refletir sobre o como essas duas atividades, a ética e a estética, poderiam caminhar juntas, trazendo para reflexão e discussão algumas colocações e questionamentos.
Perguntamos, pois, se na esfera da produção artística, o autor-criador, através de sua posição de distanciamento, realiza uma atividade estética, cujo diferencial é “dar acabamento” ao outro, no caso a obra, o herói, as personagens e suas vozes sociais, usando para tanto de recursos estilísticos, articulando as relações dialógicas que se travam entre as vozes sociais, será que essa atividade estética não poderia ser realizada em outras esferas da criatividade humana?
Uma possível objeção a essa questão seria o fato de que na atividade estética, a relação se processa entre um “eu” ( autor-criador) e um “outro” ( sua obra), enquanto que no mundo da vida o “eu” está rodeado de “outros” (iguais, diferentes, desiguais) que lhe dão “acabamento temporário”, porque para viver “...preciso ser inacabado, aberto...”(Bakhtin, 2003:11).
Contudo, entendemos que o inacabamento como marca do sujeito pós-cartesiano não anula os possíveis “acabamentos” que a esse “eu” seriam ou são atribuídos pelos “outros”, ao longo do decorrer de sua existência. Ou seja, no mundo da vida, os acabamentos que o outro “dá” ao eu são temporários e limitados a aspectos precisos do ser, em sua eventicidade.
Em outras palavras, nossa questão é, se o autor-criador é responsável pela realização de uma atividade estética, especificamente na esfera artística, sendo essa atividade da ordem do “criado” envolvendo aspectos múltiplos como nos referimos acima, que características poderiam assumir essa atividade estética no caminho de dar acabamento ao outro nas outras esferas onde a ordem é a do vivido, portanto da temporalidade finita, e onde se produzem atos éticos e não atos estéticos?
Nosso entendimento inicial sobre essa questão (reconhecemos a necessidade de muito mais leituras, discussões e reflexões) é que, se em Bakhtin não há atos éticos descolados de uma atividade estética, ou seja, se os atos éticos não são atos isolados, se eles emergem nas relações sociais intersubjetivas, as relações entre estética e ética apontam necessariamente para a natureza das relações dialógicas que se travam nas diversas dimensões da relação entre o eu e o outro e essa relação apenas pode ser pensada no quadro da problemática da alteridade, articulando a atividade estética com a categoria da responsabilidade ou responsividade do sujeito presente no ato ético.
E, retornando ao texto “Para uma filosofia do ato”, lembramos que o princípio ético lá posto organizado em torno dos eixos eu-para mim; o outro para mim ; o eu para o outro e que traduzidas para uma metalinguagem de hoje remete para as dimensões basilares da relação com a alteridade, ou seja, a relação “eu-para mim” remete para a construção da subjetividade do sujeito, através de seus posicionamentos; “ o outro para mim”, por sua vez, diz respeito à maneira como percebo e avalio o outro diferente e/ou desigual de mim; e, finalmente o “eu para o outro”que implica nos acabamentos temporários que o outro me atribui, bem poderia ser a relação “o outro para mim”, o ponto de partida para o estudo de como se processam as relações entre estética e ética nas práticas discursivas, de forma a possibilitar a compreensão de como o outro é semiotizado, se como sujeito ou se como objeto.
Para finalizar, dizemos que, de nossa parte muito ainda temos o que estudar e investigar o entendimento do que seja atividade estética para o Círculo e sua contribuição ao estudo da eticidade nas práticas discursivas.
Em todo caso, pensamos que essas questões não podem ser tratadas como diz Eagleton (2005), fora das relações com o político, aqui entendido como relações de poder, nem fora do eixo valorativo. O que em outras palavras significa dizer que o estudo da alteridade seja considerando o outro como semelhante ou diferente, como igual ou desigual, como excluído ou incluído não pode dispensar o questionamento político e ético.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DUSCHATZKY, S. e SKLIAR, C. (2001)O nome dos outros.Narrando a alteridade na cultura e na educação. In J.LAROSSA e C.SKLIAR (orgs) Habitantes de Babel. Belo Horizonte.Autêntica.
EAGLETON, T. (2005)Depois da teoria:um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro.Civilização Brasileira.
VOLOSHINOV, V/BAKHTIN.M Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo. Hucitec.1979
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