domingo, 19 de setembro de 2010

As cores da obra artística: olhar para além dos esquadros


Ana Paula Pontes de Castro

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome

Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!
(Esquadros, Adriana Calcanhoto)

Sempre gostei de prestar atenção nas cores do mundo. Algumas cores se destacam numa obra, chamando atenção para o artista enquadrado/esquadrado/encapsulado em si mesmo que transparece em sua obra de arte. Mas prestar atenção nas “cores” de uma obra, apenas, não mais me basta. Somente ouvir a música de Adriana Calcanhoto, olhar a pintura de Frida Kahlo, assistir ao filme de Almodóvar, não encerram em si a arte. Importa não só ver a obra em si, nem só compreender que uma obra se torna arte apenas a partir da visão do contemplador, ou apenas a expressão do artista. Uma obra se torna arte quando se relacionam, em uma tríade, autor, contemplador e obra (criador, contemplador e tópico). Ou nos dizeres de Bakhtin/Voloshinov (1976), “o artístico é uma forma especial de interrelação entre criador e contemplador fixada numa obra de arte”.
É, talvez, motivo de dor expressa no quadro de Frida Kahlo, o incômodo na canção de Adriana Calcanhoto com relação a esse enquadramento de tudo ao qual nos submetemos no nosso dia-a-dia: ver o mundo enquadrado, comandados por um remoto controle (a inversão do termo “controle remoto” mostra que nem sempre nós o comandamos). Bakhtin nos abre os olhos para ver a arte não como algo pronto em si mesmo. Mas como se pudéssemos reverter essa situação impressa em Kahlo e Calcanhoto. Como se pudéssemos agir sobre a obra de arte e com o nosso olhar, poder completá-la.
E podemos! A obra não está, em si, acabada. O acabamento só acontece quando o contemplador se une aos outros dois elementos do processo artístico, ou seja, quando ele se une ao criador e à obra. A união permite a interrelação dos três elementos, o que promove, então, o acabamento, passando a obra a ter um significado. No entanto o acabamento em Bakhtin nunca é uma constante. Outros contempladores, por exemplo, têm outros olhares diante da obra. Os múltiplos olhares enriquecem-na ainda mais, permitindo vários acabamentos e inacabamentos.
Amorim (2008) trata dos múltiplos olhares quando analisa a pintura do quadro “Dora Mäar” de Picasso e observa que o artista não vê apenas a própria mulher, mas vê o que ela vê. Picasso pinta a dor que vê de Dora Mäar ao olhar a guerra, pinta os múltiplos olhares. O olhar exotópico de Picasso é o mesmo olhar exotópico de Frida Kahlo em seus auto-retratos pintando o que vê de si mesma, mas quando se coloca numa posição exotópica do seu “eu”. É o mesmo olhar exotópico de Calcanhoto, ao olhar o mundo através de janelas, remotos-controles, esquadros. O olhar exotópico permite, portanto, uma multiplicidade de olhares para um mesmo objeto.
Compreendo que a arte, na visão bakhtiniana, nos permite enxergar, afinal, “quem é ela?” (ou quem sou eu, como se pode interpretar na música “Esquadros”) porque retira do aprisionamento do ser o próprio sujeito contemplador e o artista criador. Interagem a tríade criador, contemplador e tópico e só nessa relação pode-se dizer que há arte. Se o contemplador não pode ver/ouvir/assistir, não há arte. A obra, fechada em si mesma sem essa inter-relação, não passa de um aprisionamento, de um enquadramento do que o artista quis expressar.
O artista concretiza um enunciado em uma obra de arte, mas esse enunciado precisa acontecer na interação social. Só dessa forma se pode compreender a obra artística. Segundo Bakhtin/Voloshinov (1976), “quando nós cortamos o enunciado do solo real que o nutre, nós perdemos a chave tanto de sua forma quanto de seu conteúdo [...]”. Ainda para Bakhtin/Voloshinov (1976) o poeta seleciona as palavras não do dicionário, mas da vida. Assim também podemos compreender o que diz Calcanhoto: Frida Kahlo e Almodóvar selecionam as cores da vida.
Ver além dos esquadros; compreender a história e o meio cultural em que se inseria o artista e sua obra no momento de criação; abrir os olhos para a totalidade do artístico, compreender o presumido de uma obra de arte...
Podemos observar um quadro de Frida Kahlo sem saber dele sua história, o contexto em que se insere. Como o enxergaremos? Como passamos a compreendê-lo a partir do momento em que consideramos seu contexto histórico? Deixo estas questões como provocações iniciais para nossas Rodas de Conversa Bakhtiniana.

Referências:

AMORIM, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.

CALCANHOTO, Adriana. Esquadros. Perfil: Adriana Calcanhoto. Faixa 03, Som Livre, 2001. CD-ROM.

VOLOSHINOV, V.N. Discourse in life and discourse in art (concerning sociological poetics). In: ______. Freudianism. A marxist critique. New York Academic Press, 1976. (Trad. do russo de I.R.Titunik; trad. para português de Cristóvão Tezza - para uso didático).

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