Paôla Silva Gomes
pah.pedagogia@hotmail.com
Universidade Federal de Juiz de Fora
Diante do outro, estou fora dele. Não posso viver a vida dele. Da mesma forma que ele não pode viver a minha vida. Mesmo para compreender o outro, vou até ele, mas volto ao meu lugar. Apenas do meu lugar, único, singular, ocupado apenas por mim, é que posso compreender o outro e estabelecer com ele uma inter-ação.
GEge.
A partir da provocação da temática “A Estética Contemporânea sob o Signo das Imagens” me senti motivada a escrever sobre uma pequena experiência vivida por mim no Grupo de Pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento (LIC), no desenvolvimento da pesquisa “Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores”[1].
Como bolsista de Iniciação Científica da FAPEMIG[2], trabalho especificamente com o subprojeto V que, busca
compreender os modos pelos quais tem sido apropriadas e estudadas as relações entre o cinema e a educação no curso de Pedagogia e Licenciaturas da UFJF, construindo com seus alunos e professores uma experiência formativa com imagens fílmicas no ambiente educativo, visando compreender como se dá a fruição dessas peças fílmicas no processo de aprendizagem. (Freitas, 2010, p. 23)
Atuando diretamente com o coordenador desse subprojeto, Sérgio Augusto de Leal Medeiros[3] com a função de co-pesquisadora auxiliei na produção e concretização do Projeto-piloto com a exibição e discussão a partir de dois filmes: “Ensaio sobre a cegueira” e “Estômago”, que objetivava perceber o olhar dos alunos do curso de Pedagogia de uma universidade federal sobre o cinema.
Na exibição do primeiro filme, “Ensaio sobre a cegueira” do diretor Fernando Meirelles, baseado na obra de José Saramago a insegurança tomou conta de mim. Mil duvidas passavam por minha mente: será que os alunos virão? Será que eles vão gostar do filme? E a filmadora, será que funcionará direito já que era o primeiro uso dela? Escondidas em meu íntimo, as dúvidas permaneceram e cessadas ao longo da sessão de cinema. Observei que todos de fato mergulharam na história. Para cada momento de tensão no filme a platéia reagia de uma maneira, mostrando uma interação. Ora eram momentos de indignação com algumas atitudes dos personagens, ora momentos de compaixão, ora raiva, ora alegria. E as exclamações eram incríveis: “Ah não, não vai não!”, “Eu não acredito que ele fez isso”, dentre outras exclamações.
Gostaria de destacar o desabafo de uma aluna durante o momento de discussão do filme, que se emocionou ao se pronunciar, comparando o filme com a realidade acadêmica, dizendo que estamos tão cegos nas nossas obrigações, a procura de sucesso, que nos distanciamos uns dos outros e quando nos damos conta estamos guerreando por motivos pequenos. Acabamos por tratar uns aos outros com frieza e indiferença como se não nos conhecêssemos e fossemos estranhos, não dando nem sequer um bom dia ou um sorriso nos corredores: o amor está acabando. Naquele momento me vi naquela aluna, penso do mesmo modo, mas será porque é tão difícil mudar? Estamos tão acomodados em nossas posições sociais, em nossos lugares e não nos importamos com o outro. Por muitas vezes perdemos o respeito, a dignidade, o amor, e tudo pra que? Para conquistar objetos materiais, posições sociais? Em nome de que? Como nós vivemos uma vida tão acelerada e damos valor a coisas que não merecem tanto valor assim. É o mesmo pensamento que eu tive quando o filme terminou e uma atitude que tenho refletido desde então. Quais valores tenho preservado em minha vida? Quais eu tenho consciência de que são importantes e quais a sociedade colocou como importantes? Isso tudo se torna muito pequeno diante do que o filme nos trouxe. A sociedade nos cega e Saramago tenta resgatar nossa visão com a brilhante obra que baseou esse filme.
Naquele momento, por trás das lentes de uma filmadora, em uma posição exotópica me senti encantada com aquele universo em que eu estava adentrando. A apreciação estética da ocasião me fez vivenciar o cinema de outro modo, com outro olhar. Neste trabalho eu emprestei meu excedente de visão ao LIC através das observações e notas de campo que posteriormente eu redigi. Consegui ver além do olhar do pesquisador, além do olhar dos sujeitos pesquisados, além até mesmo do olhar que possuía antes em relação à imagem cinematográfica. O conceito de exotopia se fez presente e indica uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive e, do que está de fora e tenta mostrar o que vê do olhar do outro. Essa relação é a minha, do pesquisador e das notas de campo, que são o registro dos momentos vivenciados por nós dois. Nesta situação vivenciada por mim em minha curta caminhada como co-pesquisadora, sinto-me inteiramente exotópica.
Exotopia? O que quer dizer este conceito bakhtiniano que tanto me provocou? Exotopia é a distância que eu fico do outro, o excedente de visão. O que vejo do outro e o outro não vê, vai além do que o outro vê. E mesmo que nos olhemos no espelho, não sou exotópica, ainda estou me vendo, vejo meu reflexo e nada mais.
Meu olhar a respeito do cinema está sendo educado. Confesso que estamos impregnados de filmes comerciais, com modas cotidianas e às vezes de pouco valor cultural, de poucas informações que nos levam ao amadurecimento social e pessoal. Devemos repensar talvez na forma de explorar o cinema e valorizar o que de bom tem sido produzido.
O cinema enquanto arte possibilita um olhar diferente a cada vez que vemos um filme. Cada vez observamos um ângulo ainda não visto ou uma sensação ainda não desprendida daquele momento. Isso que considero interessante no cinema, as impressões que ele nos causa, os conflitos, os pensamentos, desejos, que percebemos durante o filme ou até dias depois dele.
A experiência como “cineasta” foi muito importante. Foi um olhar diferente que tive sobre o cinema, um olhar através de outras lentes, um olhar exotópico. Interessante a adrenalina de tentar captar todas as falas, os rostos e os olhares, as gargalhadas, os sustos, as indignações por um ângulo privilegiado: a câmera possibilita ver tudo isso ao mesmo tempo. E a exotopia nos permite isso. Permite olhar o outro da maneira que ele ainda não viu e nunca pensou em ver.
Referências bibliográficas
AMORIN, Marília. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT, Beth (org). Bakhtin: outros conceitos-chave – São Paulo: Contexto, 2008. p. 95-114.
FREITAS, M. T. A. Computador-internet e cinema como instrumentos culturais de aprendizagem na formação de professores. 2010-2014. 57 f . Projeto de pesquisa-Grupo de pesquisa Linguagem, Interação e Conhecimento, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2010.
Grupo de Estudos dos Gêneros do discurso – GEGe. Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009.
Nenhum comentário:
Postar um comentário