terça-feira, 21 de setembro de 2010

O TRATAMENTO LINGÜÍSTICO DA NOTÍCIA POLICIAL NA PERSPECTIVA BAKHTINIANA


                                                                                                    JHON MÜLLER N. MONTEIRO
                                                                                                   

Baseando-se no material do diálogo e das réplicas, devemos analisar o problema da oração entendida como uma unidade da língua e ver o que a distingue do enunciado entendido como uma unidade da comunicação verbal... A oração enquanto tal, em seu contexto, não tem capacidade de determinar uma resposta; adquire essa propriedade (mais exatamente: participa dela) apenas no todo de um enunciado... As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras... Trocam enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua – palavras, combinações de palavras, orações.
                                                                                                Mikhail Bakhtin
No momento em que pensei no que escrever, cheguei à conclusão de que deveria retomar o que já havia investigado, porém com um olhar diferente, um olhar estético, um olhar construído, integralmente, por meio da perspectiva bakhtiniana. No qual pude perceber que tudo se integrava nessa perspectiva. O gênero jornalístico é carregado de ideologias, é prenhe de dialogismo, por meio do qual se dá o embate de idéias e intenções.
Para Bakhtin a construção da consciência de cada indivíduo é formada de acordo com seu contexto social, de um grupo social. Assim,
"Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual... A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social... A consciência individual é um fato sócio-ideológico... A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais." (p. 35)
    "O ideológico não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem."     (p. 35)
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

O outro é determinante na constituição do self, para que haja sentido no texto jornalístico, o self passa a pensar como o outro, o self é o outro. Mas não é restrito apenas para o gênero jornalístico. Bakhtin afirma:
ENUNCIADO: o EU e os OUTROS
“Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém/ como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios/ e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade, mas esta expressividade, repetimos, não pertence à própria palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação real, que se atualiza através do enunciado individual. (...)  Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias), estão repletos de palavras dos outros... As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos.”
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 313-314.

Fundamentado nessa perspectiva, tendo em vista o estudo de textos do gênero jornalístico que agregam o verbal e o não-verbal, tratarei dos mecanismos de construção de sentidos no gênero notícia policial, no qual esse tipo de notícia é evidente a diferença de tratamento quando se trata de uma pessoa da periferia com a outra de classe mais privilegiada. Observa-se no tratamento dado ao evento, o sensacionalismo presente, a banalização da violência, tanto física, quanto moral, do homem, além de todo um tratamento do “pobre” – público focalizado pelas notícias policiais dos encartes de jornal – como um “ser desigual”, inferior, próximo ao animal irracional. Bakhtin afirma:
“O corpo é o centro das ações. Diante disso, é impossível ao homem construir valores para si unicamente a partir de si. O valor é o centro de acabamento da estética porque exprime significados que são construídos na unidade da cultura humana em que estão também as vivências. O estético - todo acabado - nasce da extraposição.”
 MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. P. 143.
Posto em foco o nível de linguagem usada, as classes de palavras que evidenciam um qualificativo do pobre, a linguagem carregada de gírias e ditos populares, o sentido das imagens (não-verbal) atrelado ao verbal, o foco no grotesco, o sangue exposto, a focalização do rosto da pessoa, o sujeito na situação que se encontra com a vestimenta suja, sem camisa, corpo machucado. Daí o ato se constitui – “Cada pensamento meu, junto com o seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo” (BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato. Austin: University of Texas Press, 1993), a forma de como o público acompanha, a repercussão desse tipo de notícia que atraem o público, principalmente a camada economicamente desprivilegiada. Enquanto tratando-se da classe economicamente privilegiada, percebe-se que a notícia é posta em série e em um caderno jornalístico diferenciado do exclusivamente policial, o nível de linguagem usada, diferente da linguagem usada para se referir ao “pobre”, é uma linguagem mais formalizada. 
“Nego foi morto com várias pauladas na cabeça.” (Diário do Pará, 06/07/2010)
“A mãe da vítima chorava a morte do filho enquanto os peritos trabalhavam.” (Diário do Pará, 02/07/2010


O VERBAL: O POBRE COMO “INFERIOR”
(MULHER ENCHE A CARA E FICA “BEBA DOIDA”)
Na manchete acima, publicada também no jornal Diário do Pará, no dia 02 de julho de 2010, o texto evidencia o ato de inferiorização da personagem na matéria jornalística que trata sobre a mulher que se envolve em uma confusão por estar alcoolizada. Trata-se de uma linguagem informal usada com objetivo de aproximação com o público das camadas populares. Observa-se a predominância de gírias, neste caso, uma expressão extraída de letra de música do ritmo “tecnobrega”, que nasceu na classe economicamente desprivilegiada e transformou-se em produto da indústria cultural. Além disso, observa-se que o tratamento dado à “mulher” na notícia demonstra uma intencionalidade de desqualificar, inferiorizar e ridicularizar o gênero feminino.  Abaixo estão alguns trechos:
-“Mulher não identificada estava em um bar...”
-“A bêbada tirou toda a roupa, ficando apenas de calcinha.”
    -“Devido à grande movimentação com a bêbada, ela acabou recuperando a lucidez...”
“Ela não quis se identificar e foi direto para o xadrez... se recuperar do porre...”
 A população acaba que, na maioria das vezes, tomando essa notícia como um espetáculo, mas isso se dá pela transformação dos aspectos da realidade. É a construção estética revelando-se, assim, como construção de um todo a partir de significados, visões determinadas do ato humano (Bakhtin, 1989, p. 32). Em outras palavras, por meio de um questionamento: por que o pobre é visto e “construído” imageticamente pelos textos das noticias policiais como um “sub-homem”? Esta é uma possível concepção do suporte jornal, ou é como a sociedade (o outro), de maneira geral, o percebe?


Referencias Bibliográficas
BAKHTIN, M.(VOLOCHINOV) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 1997 a.
BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997b.
BRAIT, B. & MELO, R. de. Enunciado/ enunciado concreto e enunciação. In: _______ BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005, p. 62-77.
CLARK, K. & HOLQUIST, Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 2004.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e o corpo do acabamento estético.
FIORIN, J. L. Polifonia textual e discursiva. In: FIORIN, J. L.; BARROS, D. L. de (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da USP, 2003, p. 29-36.MIOTELLO, V.; NAGAI, E.; COVRE, A. et al. Quimera e a peculiar atividade de formalizar a mistura do nosso café com o revigorante chá de Bakhtin. São Carlos (SP): Grupo de Estudos dos Gêneros do Discurso – GEGE, 2004. 

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