terça-feira, 21 de setembro de 2010

“Ui” - OS GÊNEROS E A PLASTICIDADE DOS CÓDIGOS Uma lucidez com as questões éticas


Nilton Gonçalves Gamba Junior


Embora o estudo sobre os ‘Gêneros do Discurso’ de Bakhtin tenha um foco claro na linguagem verbal, minha pesquisa pensa na sua implicação em relação aos discursos híbridos (construídos a partir de linguagens verbais e icônicas) que são caras à área do design. 
Essa abordagem tem sido foco de vários projetos de pesquisa meus que investigam a questão do Gênero Discursivo em sistemas híbridos como animações, quadrinhos e espetáculos teatrais. Um exemplo pode ser o projeto “Eta, Seu Bonequeiro!”, proposta inédita e premiada em 2007 pela montagem de dois espetáculos homônimos, um adulto e um infantil, que contavam a mesma história, mantendo todos os aspectos visuais (figurino, cenário, iluminação e projeção multimídia) e narrativos (trama, personagens desfecho), e mudando apenas alguns elementos textuais – evocando a construção cultural da noção de gênero infantil (e, por conseguinte, o adulto também). 
Assim também, um conto publicado no livro “   “ e apresentado abaixo, foi uma narrativa infantil proposta por mim dentro de uma disciplina de estudos sobre Bakhtin administrada pela Profa. Solange Jobim.
Em uma aula, a discussão sobre a melhor tradução para a noção de ‘Palavra Neutra’ de Bakhtin indicava uma polêmica insolúvel. E, talvez, melhor do que uma tradução apenas, fosse mais produtivo retirá-la do Gênero no qual se inseria para um novo, que expandisse sua leitura e sua interpretação.  Foi então que propus o conto infantil publicado no final desses comentários e intitulado “UI”.
Esses tipos de experimentos vão ao encontro de outra questão dessas pesquisas que é : a importância social da relativização de diversos aspectos da linguagem pelo indivíduo.  Enfim, a certeza de que a construção de um distanciamento crítico do uso do enunciado discursivo não deve ser acessível apenas àqueles que têm na linguagem seu ofício ou objeto de estudo acadêmico.  A proposta de minhas pesquisas e minhas criações ficcionais é fomentar uma lucidez quanto aos limites e plasticidades do código como forma de uma apropriação mais autônoma da linguagem.  Essa lucidez tem uma implicação ética direta à medida que o não reconhecimento desses aspectos pode levar a manipulações ideológicas, fundamentalismos de todo tipo (religiosos, políticos e acadêmicos) e gestos fascistas de comunicação. 
Assim, a vivência da plasticidade (ou neutralidade) do enunciado discursivo (seja ele verbal ou imagético) é um dos instrumentais para uma subjetividade mais crítica e, por tanto, mais ética.
Essa noção aparece com diferentes enfrentamentos na obra de vários autores com quem dialoga a minha pesquisa (Benjamin, Pasolini, Lyotard), no entanto, a definição de Gênero Discursivo de Bakhtin oferece um instrumental de intervenção metodologicamente eficaz para dar visibilidade a essa neutralidade do código – o oscilar de sentidos vividos no oscilar de gêneros, ou mesmo os sentidos mantidos apesar de algumas alterações de gêneros são motivações para se vivenciar a plasticidade do código – substrato conceitual para reler a linguagem de uma maneira mais ética.
Segue então o conto “Ui”, experimento e reflexão, ou seja, uma metalinguagem dessas questões.


 

‘Ui’

Um conto infanto-juvenil sobre o conceito de neutralidade da palavra de Mikhail Bakhtin


Há muito tempo, logo depois dos dinossauros, os homens ainda não haviam inventado a palavra e, sem ela, não havia as frases nem as histórias escritas como essa – era, portanto, a Pré-História.
Eles caçavam, comiam, viviam e morriam sem dar nomes às coisas, como faziam também os macacos e, antes deles, os tais dinossauros.
Um dia, porém, um homem (que não tinha nome porque ainda não existiam as palavras) vinha caminhando com seu filho (que também não tinha nome porque ainda não existiam as palavras) e deu uma topada em uma pedra.
Uma dor insuportável veio do seu dedão, subiu a perna, percorreu as costas, arrepiando todos os pelinhos – que eram muitos –, passou pelo pescoço, fazendo-o engasgar e chegou à boca através de um som jamais pronunciado antes:
– Ui!
Seu filho, vendo-o se contorcendo de dor e surpreso com o som que saíra, tentou repeti-lo:
– Ui?
O pai, recuperando-se e tentando explicar o quanto havia doído, concordou respondendo:
     Ui.
Naquele dia, os dois foram para a savana matar bisões, como sempre faziam. Mas, no meio da caça, um bisão atingiu pelas costas o pai, que caiu no chão desmaiado.
O filho, diante da cena, saiu correndo para chamar os outros humanos de sua tribo para ajudar. Quando chegou na caverna, desesperado em tentar explicar o acidente com gestos, quase sem querer, lembrou-se do estranho som que o pai usara para mostrar que estava com dor:
– Ui!
 Os outros da tribo estranharam e tentaram repetir:
     Ui?
O filho, então, repetiu várias vezes o som para tentar explicar o acontecido. 
     Ui. Ui! Ui!
Curiosos com o som e a aflição do menino, os outros resolveram segui-lo.  No caminho, todos repetiam o som tentando entendê-lo.
     Ui.
     Ui!
     Ui...
     Ui,ui,ui
     Ui!
Ao chegar à savana, todos puderam ver o pai do menino caído no chão e juntos pronunciaram o som como que finalmente entendendo.
– Ui!
            Todos carregaram o homem ferido até a caverna, lavaram-lhe o rosto com água fria e, depois aqueceram-no com peles quentes, mas nada adiantava, nada fazia com que o pai do menino acordasse.
            Todos já tinham desistido de tentar reanimar o pai, e o menino estava muito triste. 
Porém, no dia seguinte, toda tribo estava em volta de uma fogueira quando o pai saiu da caverna recuperado.  Todos ficaram tão felizes que gritaram o som que lembrava toda a história:
– Ui!
            Fizeram uma grande festa comendo e dançando em volta da fogueira repetindo a palavra “ui” para comemorar.
            Muitos anos se passaram e, naquela tribo, “ui” virou sinônimo de festa!  Festas que não eram poucas, tanto que outras tribos conheciam as mesmas por este som, “ui”.
            Um dia, este menino cresceu e se casou com uma menina de outra tribo, o que não era comum nessa época.  Nesta nova tribo, como ninguém o conhecia, começaram a chamá-lo pelo som que era o nome da tribo da qual ele vinha: Ui.
            Muitos dias se passaram depois deste e Ui, como ele passou a se chamar, estava uma tarde na caverna, lembrando de sua antiga tribo, do acidente com seu pai e do dia em que escutara, pela primeira vez, a palavra com a qual todos o conheciam hoje. Foi ficando com saudades e pegou distraidamente um pedaço de madeira queimada e começou a esfregá-lo na parede da caverna.  Qual não foi sua surpresa quando viu a pedra riscada de preto pelo galho queimado! Havia, sem querer, desenhado uma forma que parecia com um bisão.  Curioso começou a desenhar – coisa que ninguém jamais havia feito. Esfregava o toco de madeira na pedra cuidadosamente, tentando desenhar a cena em que o bisão machucara seu pai, e desta forma, foi matando suas saudades do passado distante.
            Quando sua mulher entrou na caverna e viu o desenho chamou toda a tribo que admirada gritava o nome do autor: UI!
            Em pouco tempo, toda tribo aprendeu a desenhar, e todos comemoravam com o som “ui”, que lembrava o descobridor da técnica. 
            Outros anos se passaram e esta tribo ficou conhecida por seus desenhos, e as outras tribos que desconheciam o porquê do som passaram a chamar todo desenho de “ui”.
            Ui morreu e a tribo logo se separou, mas ficou por toda região a noção de que “ui” era desenho.
            Muitas outras tribos surgiram nesta região, muitos outros desenhos foram feitos até que, um dia, um viajante que vinha de outra localidade, já usando um carro feito de rodas, surpreendeu-se com o desenho de uma flor muito bonita feito por uma menina. 
Em sua região já conheciam o desenho e até a roda, mas o que surpreendeu o viajante foi a delicadeza da flor que havia sido desenhada. Parado, admirando o traço da flor tão perfeita, foi surpreendido pela menina, que tentou explicar ao forasteiro do que se tratava com o som que conhecia: “ui.”
            Sem conhecer o som, por vir de outra região, o viajante deduziu ser “ui” a mesma coisa que flor. Embora apaixonado pela menina, teve que partir: afinal, ele era um viajante
Ele viajou para outros lugares e, toda vez que via uma flor, a recolhia emitindo o som que agora lhe lembrava tudo: a flor, o belo desenho e, especialmente, a menina.
     Ui...
O viajante acabou chegando em uma grande cidade com o carro repleto de flores .  Na praça central, quando os habitantes o viram com tantas flores, todos pediam uma.  Mas ele negava, pois elas lembravam a linda menina! 
No entanto, a longa viagem o deixara com fome e não tinha nada para comer. Foi assim, que, vendo uma mulher que queria uma flor com um enorme pedaço de pão, propôs uma troca apontando para seu pão e depois para as flores, repetindo o som que aprendera a usar para denominá-las:
     Ui?
A mulher, entendendo o viajante e satisfeita com a troca, entregou-lhe o pão e pegou um ramo de flores.  Na praça, todos os que presenciaram a cena, e que nunca haviam escutado o som, logo entenderam que “ui” era troca.  Todos começaram a fazer o mesmo, oferecendo alguma coisa em troca de uma flor. Eles faziam isso repetindo o som “ui!”.
Logo, o viajante já não tinha mais flores, mas tinha tantas coisas que quase não cabia no seu carro.  Eram porcos, galinhas, móveis, ferramentas, pão e centeio. 
Nesta grande cidade o hábito da troca logo se espalhou, sendo identificado sempre pelo som “ui”. O viajante tinha tantas coisas repetidas que montou uma barraca para trocá-las por outras e sobre a barraca colocou uma placa com o desenho de uma cesta que serviria para carregar as coisas a serem trocadas “U”.  A partir daquele dia todos começaram a entender que o desenho “U” era o mesmo que cesta.
Esta cidade muito cresceu graças a essas trocas! Na entrada da mesma foi colocada uma enorme placa que desenhava um homem ao lado de uma cesta para simbolizar as trocas que ali aconteciam, mais ou menos assim: ui.
Com o tempo, as pessoas de outras cidades vinham a esta para praticar a troca. Como já chamavam as trocas de “ui”, logo passaram a chamar a cidade assim também.
Como já havia a placa que desenhava o homem e uma cesta, passaram a associar o desenho com o nome da cidade e desenhar ui virou o mesmo que dizer “ui”.
Como os anos não param de passar, logo as trocas não se davam só com os objetos, porque dava muito trabalho para carregar tanta coisa. A cidade de Ui inventou um papel que representava os objetos que se pretendia trocar.  Para saber que o papel valia algo deveria se ler nele o nome da cidade através do desenho ui.  Foi então inventado o dinheiro nesta cidade das trocas, e por ter o ui desenhado, “ui” logo passou a ser sinônimo de dinheiro.
Com ui – ou dinheiro – se compravam as coisas e muitas delas precisavam de muitos uis.   Havia os carros, as casas e os recém-inventados aparelhos de televisão, e todos valiam muitos uis.
Todos queriam ter essas coisas, e, para tanto, queriam ter mais e mais uis. Como queriam muito ter uis para poder comprar as coisas, ninguém mais pensava em nada a não ser uma forma de conseguir mais uis. 
Foi assim que as coisas ficaram menos importantes que os uis...
Quando se pensava em algo, logo se pensava em quantos uis seria necessário para comprá-lo, e assim passava-se a usar “ui” para falar de toda e qualquer coisa, fosse uma viagem ou um computador.
Já existia, então, um enorme país com “ui” escrito em diversos lugares, nas placas das cidades, nas bandeiras, nos livros, nas lojas, nos nomes...
Se usava “ui” para falar de tudo, afinal, tudo podia ser comprado com ui.
Um dia, no entanto, um arqueólogo – que é um cientista que estuda coisas antigas – pesquisava na savana e tropeçou em uma pedra. Uma dor insuportável veio do seu dedão, subiu a perna, percorreu as costas arrepiando todos os pelinhos – que eram muitos –, passou pelo pescoço, fazendo-o engasgar e chegou à boca através de um som jamais pronunciado antes:
     Ai!
Ainda surpreso com o novo som que havia emitido, o arqueólogo foi olhar a pedra que o havia feito pronunciá-lo.  A pedra era uma lasca da caverna com o desenho do bisão atacando um homem que fora feito por Ui.
Que Ui? Ora, você já esqueceu? Volte ao início da história para lembrar quem ele era.
Mas ande depressa, porque depois desta descoberta surpreendente, como não se sabia quem havia feito o desenho e por causa do som emitido pelo arqueólogo, todos passaram a chamar o autor do desenho de “Ai”, mas isso já é outra história...

Gamba Jr.

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