Cícero Francisco Barbosa Jr.
No ano de 2000 foi publicado “A imprensa caravalesca no Brasil: um panorama da linguagem cômica” pela Editora Hedra. Este livro foi um resultado de um trabalho acadêmico, um mestrado na Universidade de São Paulo. Poderia ser mais um assim como tantos outros se não fosse pela a assinatura discente em questão: um dos nomes mais importantes dos estudos de cultura e da música popular brasileira: José Ramos Tinhorão.
Existem muitos estudos sobre a música popular brasileira, mas talvez a maneira encontrada por José Ramos Tinhorão seja a que mais cause reações controversas. Seus textos têm a capacidade de ser uma referência constante em trabalhos dessa natureza, já suas opiniões polêmicas ficaram marcadas, provocando respostas igualmente polêmicas. Ao tratar sobre o mercado fonográfico com um olhar marxista, lançou a discussão de classes sociais na produção artística.
José Ramos Tinhorão escrevia para o Jornal do Brasil no “Caderno B” na coluna “Música Popular”, onde mostrava um pouco das discussões que orbitavam em torno da cultura popular. Retratou os lançamentos de discos no mercado fonográfico durante os anos de 1974 até 1980, fase em que já residia na cidade de São Paulo e trabalhava como autônomo. Defendeu a brasilidade, sem interferências ou influências européias e principalmente estadunidenses. Sua análise caminha na direção de que a “verdadeira música brasileira” é melhor, e “é melhor, porque é do povo”.
É muito comum quando se pensa em um estudo de José Ramos Tinhorão lembrar-lo como crítico do mercado fonográfico e são raríssimas as oportunidades em que é encarado seu trabalho como pesquisador (principalmente as que fazem referência à Bossa Nova[1], em destaque os artigos que foram escritos no Jornal do Brasil[2]). Quase nunca se discute outros temas que ele aborda: como o intercâmbio cultural entre classes sociais, algo muito recorrente em sua obra, principalmente nas relações envolvendo Brasil e Portugal.
O crítico da cultura – segundo o filósofo Adorno (2002) – “não está satisfeito simplesmente com a cultura, mas deve unicamente a ela esse seu mal-estar. Falando como se fosse o próprio representante de uma natureza imaculada ou de um estágio histórico superior, mas é necessariamente da mesma essência daquilo que pensa ter a seus pés. Tinhorão, por estar à frente desta profissão por muitos anos, deve saber muito bem o que Adorno quis dizer com “mal-estar” e a partir da década de 1980 passa a se dedicar às pesquisas históricas sobre cultura popular.
Para entender melhor o que seria essa idéia de intercâmbio cultural entre classes sociais, o lingüista russo Mikhail Bakhtin nomeia-a de dialogismo, pois segundo ele “o diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui senão uma das formas, das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra diálogo num sentido amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação, de qualquer tipo que seja” (BAKHTIN, 1995). E em seu estudo sobre a cultura popular ele explica que sua principal qualidade é estar ligada mais profunda e estreitamente às fontes populares, fontes que determinam o conjunto de sistema de imagens, assim como sua concepção artística (BAKHTIN, 1987). A cultura popular estaria em constante diálogo entre as classes sociais, assim como a voz, se projeta e se interage criando um emaranhado de referências praticamente impossíveis de estancar:
“o estudo do diálogo permitirá iluminar melhor e mais profundamente muitos fenômenos da língua que se manifestam mais plena e nitidamente no discurso dialógico, no qual se revela a natureza da linguagem como meio de comunicação e como arma de luta” (MIOTELLO, 2009).
O italiano Carlos Ginzburg aborda também o conceito de dialogismo, embora nomeando esse termo como “circularidade” em sua pesquisa com os depoimentos do moleiro Menocchio na Itália do século XVI, explicando que ela seria como um relacionamento recíproco entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo (GINZBURG, 2006).
Quando José Ramos Tinhorão utiliza Bakthin em seu livro – onde coletou jornais carnavalescos brasileiros de 1830 até 1959 –, chama a atenção para a linguagem falada do “povo” que se concilia com a aquela pronunciada pelas classes dominantes nas ruas, praças e feiras, propiciando assim um intercâmbio:
“A linguagem dos jornais carnavalescos brasileiros viria a revelar, em sua tradição de mais de um século, um curioso exemplo de conciliação literária entre a desbragada liberdade da fala popular das ruas e o sentido moral das camadas burguesas urbanas”.
... portanto, quebrando com uma comunicação hierarquizada (que também foi favorecida pela dessacralização do latim pela Igreja Católica, permitindo a entrada da escrita cotidiana em seus registros) (TINHORÃO, 2000), além da referência ao conceito bakhtiniano de “carnavalização”.
Referências:
ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002, p. 75.
BAKHTIN, Mikhail. (Volochínov) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995, p 123.
_________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987, p 2.
_________. Diálogo. In: MIOTELLO, Valdemir. Dialogismo: olhares, vozes, lugares. São Carlos: Pedro & João Editores, 2009, p. 11.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
TINHORÃO, José Ramos. A imprensa carnavalesca no Brasil. 1ª ed. São Paulo: Hedra, 2000.
[1] José Ramos Tinhorão classifica a Bossa Nova como New Brazilian Jazz, da maneira como foi apresentada no histórico show em Nova Iorque , em 1962 no Carnegie Hall. “A estrutura da forma de tocar – especialmente o samba – através da interpolação de improvisações do cool jazz pode fixar-se após a criação ao violão de João Gilberto”. TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. São Paulo : Editora 34, 1997. p. 68-69.
[2] José Ramos Tinhorão escreve para o Jornal do Brasil a partir de 1961, onde são publicados seus artigos até 1982. Primeiramente escrevia na coluna “Primeiras lições de samba”, depois seus escritos passam a ser sobre o mercado fonográfico, mas especificamente à partir de 1974. LAMARÃO, Luiza Quarti. O veneno de José Ramos Tinhorão: nacionalismo e marxismo na crítica musical. Dissertação de mestrado, Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, 2007.
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