terça-feira, 21 de setembro de 2010

Compreensão ativa e criadora: exercício do não-álibi da vida





Profa. Dra. Cláudia Graziano Paes de Barros[1]


Gostaríamos de refletir, neste texto, acerca das questões propostas para esta edição das Rodas “Bakhtin e a Atividade Estética – Novos Caminhos Para a Ética”,  a partir de um dos termos-chave do círculo de Bakhtin, que tem nos intrigado e sido objeto de nossas pesquisas: a compreensão ativa e responsiva (PAES DE BARROS, 2005, 2008, 2009).
            Presente no cerne das idéias bakhtinianas, encontramos a dialogia como ponto de partida de suas reflexões sobre a  natureza da linguagem. O Círculo  de  Bakhtin defende, desde seus primeiros escritos,  que esta  nasce  da relação social. Na perspectiva da  teoria bakhtiniana, a origem e desenvolvimento  da  linguagem  se  encontram na organização sócio-política e econômica da sociedade.  A linguagem, nessa perspectiva,  é o resultado da atividade humana coletiva, cuja criação e representação é de natureza social. O que a constitui é o fenômeno da interação  verbal, que se concretiza através de enunciações. Em contrapartida, também exerce um importante papel social: na organização da vida sócio-política e econômica e na formação dos sistemas ideológicos (o direito, a religião, a moral, a ciência, entre outros), produtos estes do desenvolvimento socio-econômico da sociedade. Surgindo da necessidade da comunicação social, a linguagem se materializa:

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento  social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo no diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica  (...)  (BAKHTIN, 1934-1935/1975,  86).

Como produtos das interações verbais, elos na cadeia da comunicação verbal - ligados a outros elos que os antecederam e que os seguirão -, os enunciados também trazem, em sua natureza, a dialogicidade: respondendo a outros enunciados no interior da cadeia da comunicação, também são elaborados a partir da apreciação valorativa de um locutor sobre o(s) interlocutor(es) e sobre os temas, em função dos quais são feitas todas as escolhas que os comporão – do gênero e de sua forma composicional, tema e estilo. Essa forma de diálogo é responsável pelo caráter constitutivo do enunciado: é sempre destinado a alguém, um outro sem o qual ele não existiria.
Uma vez que a comunicação só e concretiza na enunciação, ele  defende que  a  enunciação  é,   portanto,  produto  da  interação  entre  dois  indivíduos socialmente organizados (Bakhtin/Volochinov, 1929: 112). Para o autor, até mesmo no nível do diálogo interior, o indivíduo tem um auditório social, em função do qual se constroem as apreciações, deduções, motivações etc. Ainda que dentro de si, o homem adota uma postura ativa no mundo. Toda enunciação compreende uma resposta a algo. (ênfase adicionada)
Discorrendo acerca da significação, Bakhitn/Volochinov (1929, 136) defende que esta só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva.  Somente a compreensão ativa permite que se apreenda o tema, o que ocorre quando, no processo de compreensão, elaboramos uma série de  réplicas. Daí o termo “ativa” – só se apreende o tema da enunciação se estivermos mantendo um diálogo: a cada palavra da enunciação corresponde uma série de réplicas  que formulamos para a nossa compreensão.
Segundo o autor, nessa (re)formulação que realizamos, co-criamos, atuando responsável(sível)mente na vida. O ato de responder, (ainda que no nível do discurso interior) nos coloca como partícipes da vida. Nas palavras do autor (1919-21):
Cada pensamento meu, junto com seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo meu próprio ato ou ação individualmente responsável [postupok]. É um de todos aqueles atos que fazem da minha vida única inteira um ralizar ininterrupto de atos [postuplenie]. Porque minha vida inteira como um todo pode ser considerada um complexo ato ou ação singular que eu realizo: eu realizo, isto é, executo atos, com toda a minha vida, e cada ato particular e experiência vivida é um momento constituinte da minha vida ─ da contínua realização de atos [postuplenie]. Como um ato executado, um dado pensamento forma um todo integral: tanto seu conteúdo-sentido quanto o fato da sua presença na minha consciência real a consciência de um ser humano perfeitamente determinado ─ em um tempo particular e em circunstâncias particulares, isto é, toda a historicidade  concreta de sua realização – ambos os  momentos (o momento do conteúdo - sentido e  o momento histórico individual) são unitários e indivisiveis na avaliação desse pensamento como minha ação ou ato responsável  (BAKHTIN, 1919-1921, p. 21).

Desse modo, o ato de compreender formula em nossas mentes um contexto ativo e responsivo: respondendo aos enunciados alheios,  nos colocamos no diálogo, respondendo a outrem, fazemos parte da vida, para a qual não há álibi.
Nessa direção, nos fala Ponzio (2010), na versão brasileira, recém-editada, de Para uma filosofia do ato responsável[2]: “Postupok” é um ato, de pensamento, de sentimento, de desejo, de fala, de ação, que é intencional, e que caracteriza a singularidade, a peculiaridade, o monograma de cada um, em sua unicidade, em sua impossibilidade de ser substituído, em seu dever responder, responsavelmente, a partir do lugar que ocupa, sem álibi e sem exceção (Ponzio, s/p., 2010).
Refletir sobre as atitudes reponsivas e responsíveis, com Bakhtin, é colocar o homem como responsável por suas atitudes, por seus pensamentos, é colocá-lo na vida sob o olhar cuidadoso dos valores éticos e estéticos. Citando Amorim (2009, 20), a questão central de Para uma filosofia do ato é tão profunda e original que quase nos escapa. Discutindo esse tema, a autora  reflete: qual é a ética de um pensamento?

 (…)a ética de uma teoria ou de um pensamento teórico (filosofia ou ciência) diz respeito ao ato de pensar essa mesma teoria. (Pensá-la enquanto seu autor ou criador e também enquanto leitor que a adota e que a ela adere.) O ato de pensar é sempre singular e diz respeito a um sujeito único. Somente o ato de pensar pode ser ético, pois é nele que o sujeito é convocado. Enquanto abstração, o único dever da teoria é ser verdadeira. Mas o próprio dever de buscar a verdade, aquilo que me obriga a pensar veridicamente enquanto estou pensando, não decorre do conteúdo do pensamento, mas do ato de pensar. Uma teoria verdadeira, ao virar ato, isto é, ao ser pensada por alguém singular e único, vira ética. E pode, assim, completar sua verdade universal com a verdade singular a que Bakhtin chama de pravda (Amorim,  2009, 22)

Acreditamos, a partir do que vimos discorrendo, que a compreensão do discurso de outrem é não somente ativa, mas criadora, enquanto promotora da verdade Pravda, no original em russo, tanto do fato como do sentido em sua unidade concreta (Bakhtin, 1919-1921). Ainda que não queira, responder ativamente coloca o homem no centro da atividade estética, na possibilidade de viver o ato realmente criador (e todo ato, aliás)[que] evolui nas fronteiras (nas fronteiras dos valores) do mundo estético, da realidade do dado (a realidade do dado é uma realidade estética), nas fronteiras do corpo, nas fronteiras da alma, evolui no espírito; quanto ao espírito, ele ainda não existe; para o espírito, tudo ainda está por-vir e o que já é, para ele, já foi (Bakhtin, 1970-1971, 219).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


AMORIM, Marilia. “Para uma filosofia do ato: ‘válido e inserido no contexto’”. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: Dialogismo e Polifonia. São Paulo: Contexto. 2009.

BAKHTIN, M. M. (1919-1921). Toward a Philosophy of the Act. Austin, University of Texas Press, 1993. Versão para o português com o título, Para uma Filosofia do Ato, para uso didático e acadêmico, com tradução provisória de Calos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, mimeo
BAKHTIN, M.   (1920-1930/1979) O autor e o herói. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 3º edição pp. 23-113.
______    (1929/1961-1962)   Problemas da Poética de Dostoiévski  Trad.  Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Ed. Forense Universitária, 1981.
______   (1934-1935/1975) O discurso na poesia e o discurso no romance. In: Questões de Literatura e Estética – a teoria do romance. São Paulo, Editora UNESP- Hucitec, 2002. 5º edição pp.85-106.
______   (1937-1938/1975) Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica), In: Questões de Literatura e Estética – a teoria do romance. São Paulo, Editora UNESP- Hucitec.2002 5º edição  pp. 211-362.
______ (1952-1953/1979)     Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2000. 3ª edição. pp. 277-326.
______  (1959-1961)  O problema do texto. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2000. 3ª edição. pp 329-358.
______  (1970-1971/1979)   Apontamentos  In: Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2000.  pp. 369-397.
PAES DE BARROS, C.G.  Compreensão ativa e criadora: uma proposta de ensino-aprendizagem de leitura do jornal impresso. Tese de doutorado apresentada ao LAEL da PUC-SP. São Paulo, 2005.
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PONZIO, A. “A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo”. Apresentação da versão brasileira de Para uma filosofia do ato responsável Pedro &João Editores. São Carlos 2010. disponível em http://www.pedroejoaoeditores.com.br/joomla/index.php? option=com_content&view=article&id=128:para-uma-filosofia-do-ato-responsavel&catid=31:lancamentos&Itemid=28
VOLOCHINOV, V.N./ BAKHTIN.M.M.  (1926)    Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita.



[1] Professora do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, coordenadora do Grupo de Pesquisa “Estudos Linguísitcos e de Letramento em Mato Grosso”, CNPQ. 
[2] Ponzio, A. A concepção bakhtiniana do ato como dar um passo. Apresentação da versão brasileira de "Para uma filosofia do ato responsável” Pedro &João Editores. São Carlos 2010. disponível em http://www.pedroejoaoeditores.com.br/joomla/index.php? option=com_content&view=article&id=128:para-uma-filosofia-do-ato-responsavel&catid=31:lancamentos&Itemid=28



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