Paula Cristina Bullio[1]
O trabalho de pesquisa na área de aquisição de linguagem enfrenta atualmente situações complexas e decisivas de definição conceitual, metodológica, entre outras. Muito se tem questionado sobre a real validade dos dados em pesquisas longitudinais, nas quais uma ou duas crianças são acompanhadas por um ano ou mais como sujeitos de questões e análises. Além disso, consequentemente, há discussões sobre a credibilidade dos dados qualitativos em pesquisas científicas.
Entretanto, pensamos que esta é uma relação no mínimo delicada, pois sabemos que há uma interpretação por parte do pesquisador analisando a fala de um outro individuo com sua própria visão de mundo e suas ideologias. Entendemos ideologias aqui como o nome dado pelo Círculo de Bakhtin para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (FARACO, 2009:46)
É o pesquisador olhando a situação e seu sujeito de análise com o cuidado de um crítico e avaliando-o como ser único e incomparável tentando manter a distância suficiente para que as reflexões aconteçam. Seria uma tentativa bastante próxima a que Bakhtin propõe: “Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa.” (2006:21)
Assim sendo, quando tratamos de pesquisa com crianças e analisamos o processo de aquisição de linguagem, muitos são os “talvez” e “pode ser”, haja vista a individualidade de cada criança, de seu contexto, de suas características que são essenciais para caracterizá-las como indivíduos únicos e não gerais. Acreditamos que é na interação que a linguagem vai acontecer, são nos jogos interativos, ou esquemas interacionais, os quais são necessários ao desenvolvimento de habilidades lingüísticas de caráter pragmático como: habilidade de solicitar, de estabelecer referência etc., de saber onde usar certas expressões, adequar às situações. Em adição, pensamos que a aquisição começa bem antes de a criança pronunciar a primeira palavra; antes mesmo de falar ela já manifesta intenções, vontades, compartilha olhares.
“A contemplação estética e o ato ético não podem abstrair a singularidade concreta do lugar que o sujeito desse ato e da contemplação artística ocupa na existência.” (BAKHTIN, 2006: 22). Mesmo não se tratando aqui de uma contemplação artística, é somente em contexto naturalístico de pesquisas longitudinais que somos capazes de flagrar aspectos essenciais para a descrição e entendimento deste processo tão fascinante que é o da aquisição.
Registramos em vídeo os enunciados das crianças com os pais ou na escola e depois de realizada a transcrição destas falas, descrevemos e analisamos os aspectos lingüísticos que envolvem a fala delas e, também as questões sociais que estão envolvidas dentro e fora daquela situação de interação que presenciamos. Concordamos que “a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não-ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá na esfera de uma das ideologias (i.e., no interior de uma das áreas da atividade intelectual humana) e expressa sempre uma posição avaliativa (i.e., não há enunciado neutro; a própria retórica da neutralidade é também uma posição axiológica.” (FARACO, 2009:47)
Acreditamos que a criança constrói a língua e adquire valores sociais, na troca de experiências e, essencialmente, na interação (OCHS, Elinor & SCHIEFFELIN, B. B:1999) – ela não é uma “tabula rasa”, vazia, pronta para receber informações que depois serão repetidas. As trocas verbais “definem” a formação das ideologias e a constituição da subjetividade da criança, que cresce e se desenvolve biologicamente, psicologicamente e socialmente em um ambiente ideológico (BAKHTIN, 1997).
De acordo ainda com Bakhtin (1997), a construção do indivíduo e da sociedade é dialógica e construída por meio da língua que é social, ou seja, adquirindo uma língua, os indivíduos estão adquirindo várias visões de mundo. Trata-se, não só de criar a oportunidade de conhecer a cultura de outra língua, mas também funciona como uma “ferramenta”, um meio para poder conhecer, explicar, difundir e defender a sua própria.
Linguagem, para nós, é igualmente a ação entre duas pessoas que negociam, ou interagem e “relacionar ao outro o vivenciado é condição obrigatória de uma compenetração eficaz e do conhecimento tanto ético quanto estético” (BAKHTIN, 2003: 25). Portanto, como podemos dar um tratamento quantitativo a estas análises se as pesquisas transversais quantitativas não nos dão a mesma visão e os mesmos dados que as pesquisas longitudinais qualitativas?
Aqui, trataremos de uma questão ainda mais delicada dentro do campo da aquisição: o bilingüismo. Este é ainda pouco explorado no Brasil e traz para a problemática ainda mais dificuldades, iniciando pela própria definição. O próprio conceito de bilingüismo já é, por si só, controverso. Para cada pesquisa é possível encontrar uma definição diferente: pode-se, por exemplo, investigar como e até que ponto o bilingüismo pode ser medido, o que acontece quando duas ou mais línguas são adquiridas e utilizadas; a maneira como se dá a aquisição de duas línguas e se esse é um fenômeno favorável ou não para os indivíduos, etc. Estas perspectivas divergentes geram o surgimento de definições particulares a cada investigação desenvolvida, gerando distintas questões que são colocadas como, por exemplo: se, como e com qual intensidade as crianças eventualmente começam a falar as duas línguas, entre outras.
Considerando que não há consenso para a definição do termo “bilingüismo”, tomaremos aqui a noção proposta por HOUWER (1990:3) segundo a qual, trata-se de um processo análogo ao de aquisição da língua materna (LM), em que o indivíduo adquire outra língua ao mesmo tempo, ou seja, uma mesma criança é exposta a mais de uma língua desde o nascimento e, sendo assim, entenderemos que o individuo bilíngue possui duas Línguas Maternas. Portanto, como poderíamos nos munir de dados quantitativos para analisar o desenvolvimento lingüístico de uma criança que possui dois processos acontecendo ao mesmo tempo? Uma criança que está envolvida em processos de socialização concomitantes e distintos? Como comparar o desenvolvimento de várias crianças que estão inseridas em contextos sociais distintos? Como analisar a subjetividade de cada uma com apenas um momento de pesquisa direcionado?
O conceito de socialização sintetiza para a criança as várias ordens da sociedade, já que estas são essenciais nos vários papéis esperados que a criança tenha. Em um sentido, a socialização é um processo para que as pessoas tornem-se seguras. O processo age seletivamente nas possibilidades do homem em criar um senso de inevitabilidade um dado acordo social e limitando as áreas em que mudanças são permitidas. As bases da socialização na sociedade contemporânea são: a família, o grupo de amigos, a escola e o trabalho.
Em relação a este assunto, Bakhtin enfatiza como as trocas verbais “definem” a formação das ideologias e a constituição da subjetividade também da criança, que cresce e se desenvolve biologicamente, psicologicamente e socialmente em um ambiente ideológico e durante o processo de aquisição de linguagem, adquire também todos os aspectos sociais, culturais e ideológicos da sociedade / comunidade em que está inserida. Neste caso, será que esta criança adquiriu os aspectos mencionados nas duas línguas?
Diferentemente, no caso da criança bilíngüe, ela já nasce em um contexto no qual duas ou mais línguas são faladas, “A child growing up with two languages from birth, on the other hand, offers a unique opportunity for investigating general theoretical issues in the language acquisition field. (...) After all, the bilingual child is always at the same level of socio-cognitive development, and although he may be exposed to aspects of different cultures, and although the social interaction styles of the various speakers addressing the child may differ considerably IF these speakers belong to distinct cultures, the main two variables are the bilingual child’s two input languages.”[2] (HOUWER, 1990:1)
No processo de socialização da criança, os pais são os primeiros a transmitir, por meio, não só, mas também da língua e valores, comportamentos sociais adequados ao contexto e à situação de comunicação. A criança tem o tempo que necessita para adquirir esses conhecimentos, além do fato de se tratar de uma situação de aprendizagem natural, díspar de um adolescente ou um adulto que aprende uma LE, no seu próprio país, essa socialização poderá ser realizada, por exemplo, pela mediação do professor em um contexto de simulação, bem como por meio da internet, filmes, etc.
De acordo com SHAUL e FURBEE (1998: 18), que fizeram considerações a respeito da relação entre língua e cultura um membro de uma comunidade pertencerá a várias “redes” de interação e terá uma variação em sua fala de acordo com o lugar, tempo, posição ou o papel do falante e do ouvinte. A análise da conversação ou outras formas de discurso ajudam a entender melhor o que cria a competência comunicativa de cada falante: um sujeito pertencente a uma comunidade deveria saber o padrão do som e o padrão semântico de sua língua, além de saber como usá-la apropriadamente dentro daquela sociedade.
Nossa hipótese é de que as crianças bilíngües adquirem as regras sociais das duas línguas e o comportamento delas muda quando a língua utilizada é uma ou a outra. Isso será verificado em um estudo longitudinal e qualitativo, porque somente assim podemos fazer considerações reais sobre sujeitos reais e situações reais.
Referências Bibliográficas:
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem, São Paulo, 8ed., Hucitec, 1997
____________. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 2006
FARACO, C.A. Linguagem & Diálogo – as ideias lingüísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo, Parábola, 2009
HOUWER, A. The acquisition of two languages from birth: a case study. Cambridge, CUP, 1990
OCHS, Elinor & SCHIEFFELIN, B. B. Language Socialization across cultures. CUP, 1999
__________. The Impact of language socialization on grammatical development. In: TUITE,K. & JOURDAN, C. Language, Culture and Society. Cambridge, CUP, 2006
__________.Language Socialization across cultures. CUP, 1999
SHAUL, David & FURBEE, N. L. Language and Culture, Prospect Heights, Illinois, 1998
[1] Doutoranda em lingüística pela Faculdade de Ciências e Letras (FCLar) Universidade Estadual Paulista (UNESP) – campus de Araraquara. pbullio@yahoo.com.br Atualmente estuda os processos de gramaticalização em crianças bilíngües e a relação com a formação da identidade e marcas de subjetividade dentro do grupo de pesquisa NaLíngua com orientação da Profa. Dra. Alessandra Del-Ré que é também coordenadora e orientadora dentro do grupo de pesquisa NaLíngua (CNPq) e em parceria com a França (Paris III e MoDyCo/CNRS), e que pretende tratar da relação identidade/alteridade no discurso (oral) da criança na mesma universidade. aledelre@fclar.unesp.br
[2] Uma criança crescendo com duas línguas desde o nascimento, por outro lado, oferece uma oportunidade única de investigar assuntos teóricos gerais no campo de aquisição de linguagem. (...) Além de tudo, a criança bilíngüe está sempre no mesmo no mesmo nível de desenvolvimento sócio-cognitivo e, embora, ela possa ser exposta a aspectos de diferentes culturas e, apesar de os estilos de interação social dos vários falantes que se dirigem à criança podem se diferenciar consideravelmente se estes falantes pertencem a culturas distintas, as duas principais variáveis são os insumos das duas línguas que a criança bilíngüe recebe. (Tradução nossa)
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