segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O corpo do pobre e do rico: reflexões sobre Deus e o trabalho

 Claudia Reyes



O corpo sem deixar de fazer parte de uma realidade material, associa-se a signos ideológicos e passa a significar alguma outra coisa que ultrapassa sua particularidade. Meu corpo posto no mundo não tem um significado individual porque ele é ao mesmo tempo social e individual.  Sujeito aos critérios de avaliação ideológica, um signo pode distorcer uma realidade, ou refleti-la; como ele é apreendido a partir de outros signos já conhecidos, a cadeia de compreensão ideológica é única e contínua, um elo de natureza semiótica. Assim, a consciência individual tem sua origem nas relações interindividuais e embora os índices sociais de valor sejam absorvidos pela consciência individual como sendo seus, sua natureza é social. Desde sua origem, o pensamento se constitui apoiado no sistema ideológico e pertence ao mesmo tempo ao ideológico e ao psiquismo individual. O processo de compreensão (individual e interior) de uma enunciação do “outro”, significa encontrar o contexto ideológico a que ele corresponde. Em dado contexto histórico, homens e mulheres produzem linguagem e constituem suas atividades mentais e suas compreensões. Nesse contexto, a enunciação comporta elementos tanto do campo exterior quanto do interior, ou seja, tanto do psíquico quanto do ideológico. Em outras palavras, a atividade mental subjetiva se objetiva na enunciação. Por outro lado, a palavra, como material objetivo, se subjetiva no ato de interiorização, no sentido Vygotskiano, como sendo a internalização de um conceito. De uma maneira ou outra, ideologia e psiquismo se impregnam no processo das relações sociais. O ponto central desta questão nos remete à noção de dialogia. Qualquer enunciação produzida, só pode ser compreendida se entendermos sua relação com outras enunciações. As enunciações produzidas pelo falante estão diretamente relacionadas aos enunciados “alheios”, não apenas como um reflexo desse enunciado, mas uma criação que está relacionada aos múltiplos valores que convivem no “próprio” indivíduo. É a assimilação da palavra do outro e ao mesmo tempo uma reelaboração das palavras próprias- um constante diálogo de enunciados entre o eu e o outro. A linguagem, portanto, é uma atividade de constituição dos sujeitos, que se realiza na e pela interação verbal. Na relação do eu com o outro há a construção de compreensões - temporárias e flexíveis - que permite a intercompreensão; é um processo onde se cruzam psicológico e ideológico, palavras próprias e palavras alheias.
Retomo agora um diálogo com um texto que escrevi ha mais de dez anos e faço uma releitura. O tema me pareceu atual, como se os anos não tivessem modificado muito as idéias que estão nele contidas. Trata-se de um texto onde o interesse era investigar o processo pelo qual cinco crianças revelavam o sentido de suas práticas, segundo suas lógicas e formas de pensar. Utilizei como estratégia metodológica as leituras que elas fizeram de textos que produziram no passado, articuladas ao que haviam relatado em suas histórias de vida. Sem grandes explicações e justificativas acadêmicas, retomo aqui o texto escrito por uma garota de nove anos e a leitura que ela e mais quatro amigos fizeram deste mesmo texto, três anos depois de sua escrita. A idéia era discutir o papel da linguagem na construção da subjetividade. Na ordenação dos dados compreendi que as unidades de significação mantinham uma relação dialógica com diferentes contextos da vida prática dos sujeitos, diferentes ideologias. Para essa discussão escolhi apenas um, entre doze textos que foram escritos e lidos por eles. Essa escolha não foi ingênua, mas motivada pelo recorte, trabalho e religião entre a ética e a estética.

DEUS COMO PONTO DE PARTIDA - O texto
UM HOMEM TRABALHADOR

Um homem que luta para viver. Esse homem é muito feliz com seu trabalho. Um dia sua mulher falou:
- Pedro, você tem que descansar um dia. Onde já se viu um homem trabalhando  semana inteira e de sábado e domingo!
- Se eu não trabalhar eu não posso sustentar a nossa família. Uma criança bate na porta pedindo comida. Seu Pedro ficou com dó e deu um pedaço de pão e um dinheirinho.
- É só o que eu tenho desculpe-me filho.
A criança saiu feliz e agradeceu seu Pedro. Sua mulher também ficou feliz com a sua bondade.
Seu Pedro continuou a lutar por uma vida melhor. Um dia ele conseguiu o que tanto queria. Eles não eram mais pobres. Sua mulher ia todos os dias ao orfanato para levar balas e muitos doces.
E foi assim que esta história terminou. Alegre, feliz e com muita emoção.

CRISTIANI (9 anos)

A leitura

Cris– É uma bondade dele. Com essa bondade, Deus ajudou ele a ficar rico e ajudar as outras crianças. (...) Ele trabalha e acho que Deus deu essa recompensa para ele ajudar o próximo.
Gi– Quem trabalha Deus ajuda...
Carol– Quem ajuda o próximo...
Max– Porque está nos dez mandamentos, na Bíblia[1]: Faça a tua parte que eu te ajudarei... Pode olhar. Êxodo 19,20, você vai ver!!! Isso aí é bíblico, então ele já fez a parte dele de trabalhar a semana inteira de sol a sol.
Ri– Eu acho que ele foi trabalhando e juntando dinheiro, aí quando ficou bastante, ele ajudou o outro.
Gi– Essa história aí, parece que a Claudia foi na minha casa. Meu pai também trabalha a semana inteira, mas será que vai ter um fim assim?
Carol– Eu acho que sim. Se ele trabalha bem, recompensa os outros, então, ele vai ser recompensado. Eu acho que vai acabar bem.
Gi– Se vai chegar tá demorando.
Max– É tudo assim Gislaine, demora. Se você doa alguma coisa para um pobre, você dá um real para ele, mas que você deu com o coração, Deus te dá 10, 20. Com saúde com felicidade, com paz, com amor. Tudo é isso. Você compartilhando, você doando, indo numa igreja, ajudando a igreja, Deus vai te recompensar mais ainda. Eu tenho certeza.

É MAIS FÁCIL UM CAMELO PASSAR PELO BURACO DE UMA AGULHA... O TRABALHO, A POBREZA E A RIQUEZA.


A prática cotidiana vivida pelo pai que trabalha a semana inteira, faz Gislaine duvidar que um dia essa recompensa vai chegar. As dúvidas apresentadas pela amiga impõe um novo rumo para a leitura. A vida prática de Gislaine leva os demais sujeitos a admitirem outras possibilidades e questionarem a dureza da realidade. Estas intervenções fizeram Maxiliano deixar de lado a posição anteriormente assumida e apresentar a noção do trabalho como central, pois para ele, agora é este que possibilita acumulação dinheiro e que faz com que as pessoas possam ajudar os outros.

Max – Quem trabalha vai ter dinheiro, vai ter as coisas. Aí pode ajudar as pessoas.

No que diz respeito ao trabalho do pobre e do rico, por lado pautam-se em suas práticas cotidianas vividas em família e por outro, articuladas as imagens de prestígios vendidas socialmente. Recupero aqui um exemplo dado ao longo da leitura:

Max– Pobre trabalha mais que o rico. O rico vai lá com a gravatinha dele e fica lá na cadeirinha dele. O pobre não, vai cortar cana.
Gi– O trabalho do pobre é mais rápido. O rico trabalha assim, em banco. O pobre tem que ir cortar cana, tem que pintar, fazer casa e ganha cem.
Ri– Também concordo com ela. O trabalho do pobre é mais difícil e ganha pouco.
Carol– Para ficar rico ele teve que lutar bastante, trabalhar muito.
Gi– Mas isso não acontece não, por causa que eles lutam, trabalham e eles não ficam rico de uma hora para outra. Demora mais de ano.
Ri– para o rico uma casa é pouco.
Carol– precisa uma aqui e outra na praia.
Max– Tá na Bíblia, também, que é mais fácil um pobre ir para o céu do que um rico[2]. Porque o rico, quanto mais ele é rico, mais ele quer. Nada tá bom. E pro pobre não...

O verbo “ter” empregado no contexto do pobre refere–se a uma obrigação, ao trabalho e implica uma luta. A utilização da explicativa – lutar bastante, trabalhar muito – lutam, trabalham – nos mostra que o trabalho é que constitui a representação que eles têm do pobre e não a ausência de propriedades materiais. Aliás, pensamos que é a luta para ter que os caracteriza:

Gi– Ele não queria parar de trabalhar para ter uma vida melhor.
Max– Eu acho que ele estava trabalhando, trabalhando, trabalhando, para sustentar a família. Ficar bem de vida para poder doar as coisas. Ter mais dinheiro.
Carol– Se ele não trabalhar, não ganha dinheiro e não pode sustentar.

Ressalto que o verbo sustentar aparece exclusivamente como característico das finalidades do trabalho do pobre. Enquanto o rico trabalha para ter mais, para acumular capital e propriedades, o pobre trabalha para sustentar. De fato, em diversas ocasiões o verbo trabalhar – para ajudar no sustento – aparece no relato dos sujeitos, como característica desta classe social particular. “Max – A minha mãe praticamente tem que sustentar 3 filhos, ainda.(...) Tá difícil desde aquela época porque a minha irmã solteira não dá nada em casa e a outra porque tem um filho não dá nada também. Então quem tem que sustentar a casa é minha mãe”.

O sentido da pobreza parece estar dentro dela mesma. Saber o que é ser pobre, vivido na experiência, implica em um reconhecimento da situação; gera um movimento no sentido de ir em busca de uma superação, que pode conduzir ao trabalho e à necessidade de compartilhar com o outro. Obviamente, a nossa realidade social nem sempre comporta essa busca pela superação, ou esta busca nem sempre é o trabalho.
Iniciamos a nossa discussão através da noção de Deus como aquele que recompensa. Contraposta com a realidade vivida por eles, surgiu a representação de trabalho, que trouxe para dentro das discussões as diferenças de classe social. Segundo eles, enquanto o rico tem um trabalho limpo, bem remunerado e pode acumular bens materiais, o pobre tem um trabalho sujo, difícil e pouco recompensado. Dessa maneira, a recompensa divina, justificativa utilizada inicialmente para o enriquecimento, desaparece quando eles passaram a apresentar a representação de trabalho.
Com tudo isso que foi dito até o momento, conclui que na leitura do texto feita por eles, a   recompensa divina é o enriquecimento físico e espiritual – a saúde, felicidade, paz e amor – enquanto que o material, se consegue trabalhando. No entanto, para ser feliz com o trabalho, os leitores disseram que é preciso ser honesto.

 

OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE: A JUSTIÇA DE DEUS


Ri- Eu acho que o trabalho dele é honesto e por isso que ele é feliz. Porque tem gente que ganha dinheiro roubando os outros.
Gi – Eu acho como a Riselma, ele não rouba e é honesto.
Carol- Roubar só piora a vida. Depois fica se culpando
Ri- Vai levar a culpa pro resto da vida, não vai esquecer.(...) É melhor trabalhar do que roubar. Não tem importância que ganha pouco, mas trabalhando, dando pra comer...
Cris – (Quem rouba) pode ser que ninguém descubra, mas ter a vida que ele merece. Ou perde todo o dinheiro...
Gi –Acontece alguma coisa com ele, mesmo sem ninguém saber, podem matar eles. A vida é assim: A gente dá e ganha, quando a gente rouba os outros, também roubam da gente. Parece novela, é igualzinho. Quando a gente faz uma coisa boa acontece bom, quando não acontece coisa mau.

A honestidade, a vida humilde (ganhar pouco, dando para comer – que também é característico do pobre) traz a felicidade e a paz, enquanto que o roubo, implica em convivência cotidiana com a culpa. É uma espécie de troca. A percepção de Gislaine quanto à similaridade da situação relatada com as vividas em novelas está pautada no estilo de narrativa, que quase sempre apresenta uma estrutura cujas personagens centrais são um mocinho e uma mocinha (geralmente pobre, ou uma rica que perdeu tudo) e um bandido, que é o responsável por provocar o desequilíbrio da história. A trama desenvolvida a partir de algum conflito termina com um final feliz: o bem vencendo o mal. Neste contexto, a honestidade e a humildade ficaram de um lado e o dinheiro ilícito de outro. A posse deste – trouxe uma felicidade temporária, vivida não sem o peso da culpa – teve e tem as suas conseqüências no futuro, seja aqui ou no Além.
Enquanto a justiça da Terra pode ser cega, a vigilância eterna jamais é. Desta maneira, os olhos de Deus – que pode controlar tudo e todos – observa atentamente e de maneira fidedigna, para fazer justiça em nossa realidade social: a recompensa para os bons e o castigo para os maus, no julgamento final. Nesta oscilação da balança, entre o bem e o mal, também aparece o certo e o errado, junto com a noção do pecado, que já discuti em outro texto sobre as relações de gênero. Em seus resultados, do ponto de vista da prática, uma hora ou outra, quase todo mundo experimenta um pedaço da maçã. Os ensinamentos de Deus são foram “esquecidos” em detrimento às múltiplas vozes da vivência prática e social.


Claudia Reyes
Universidade Federal de São Carlos
Programa de pós-graduação em Educação
Departamento de Metodologia de Ensino



[1] Todas as referências bíblicas que utilizamos foram extraídas de:  Bíblia Sagrada. Gráfica da Bíblia. SBB. 1998. (versão online). As referências feitas por Maxiliano estão corretas: Êxodo 19, 20 – Deus fala com Moisés no monte Sinai. Os dez mandamentos. A explicita referência sobre “faça a tua parte que te ajudarei” não existe diretamente na Bíblia, no entanto há uma similaridade com essa idéia no que diz respeito a quem ajuda ao pobre recebe de Deus:
Os seus filhos procurarão agradar aos pobres, e as suas mãos restituirão os seus bens. Jó, 20:10
BEM-AVENTURADO é aquele que atende ao pobre; o SENHOR o livrará no dia do mal. Salmos, 41:1
O que dá ao pobre não terá necessidade, mas o que esconde os seus olhos terá muitas maldições. Provérbios, 28:27
Ao SENHOR empresta o que se compadece do pobre, ele lhe pagará o seu benefício. Provérbios, 19:17.
[2] As citações bíblicas  referentes a essa idéia são:
E, outra vez vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus. Mateus (19:24), Marcos (10:25) e Lucas (18:25)

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