Francisco Amancio Cardoso Mendes
Introdução
Esse artigo é o resultado de uma investigação teórica sobre uma tese que auxilie professores e estudantes no processo de ensino-aprendizagem de Física. Estamos propondo aqui interpretar a Física como lingua(gem) e, com o intuito de fazermos uma leitura transdisciplinar entre a Linguística e a Física, utilizamos as noções de Práxis e os conceitos oriundos das obras de M.K.Bakthin e o Círculo.
Por volta dos anos 1920 (aparentemente enquanto localizava-se em Vitebsk[1]), Mikhail Bakhtin vivia uma revolução interna imerso em seus pensamentos filosóficos e arrebatado de ideias que o levariam a desenvolver suas teorias. Algumas dessas ideias seria desenvolvida ao longo de sua vida dando passagem e argumentos para uma linguística focada na interação social[2], uma linguística de Práxis.
O termo praxis, ou deyatelnost em russo, refere-se à noção de atividade social pratica. Os teóricos da atividade procuram analisar o desenvolvimento da consciência em tais cenários de atividade social pratica. Sua ênfase recai nos impactos psicológicos da atividade organizada, e nas condições e sistemas sociais produzidos em e por tal atividade. Esse conceito tem uma longa tradição intelectual. Lektorsky (1995) mapeia essa herança, e Davydov (1990, 1995) lembra-nos de que o termo deyatelnost refere-se à atividade de longa duração que tem alguma função desenvolvimental e é caracterizada por constantes transformações e mudanças
(Daniels, 2001:p.111).
Foi nesse cenário dos anos 1920 que Bakhtin propôs a consideração linguística de dois mundos que não se comunicam, são impenetráveis, mas que estão inseparáveis. Esses dois mundos, o da vida e o da cultura, promovem em conjunto a interação do que é criado, contemplado e vivido com o que o ato de nossa atividade se torne objetivo.
Bakhtin lança seu conceito fazendo referência ao Jano bifronte, afirmando que esse se assemelha ao “ato de nossa atividade, de nossa real experiência” (Bakhtin, 2008:p.20). De um lado temos o domínio da cultura, do mundo representado, de onde garantimos as nossas relações e de onde exercemos as nossas atividades, nossos discursos, nossas incorporações existenciais, nosso aprendizado com a vida. Do outro temos o domínio da vida, do mundo experimentado, de onde tiramos a ação, o ato de viver, de vivenciar uma única vez a vida vivida, nossa experiência de vida, seja ela concreta, palpável, seja ela vivenciada por outros olhos como de um interlocutor personagem exterior a nós.
Nesse contexto, ele coloca a possibilidade de se ter um plano único e unitário onde ambos os mundos estariam relacionados por meio de uma singular unidade, sendo ele, esse plano, capaz de refletir as suas existências em ambas as direções, fazendo com que a atividade se funda à ação, justificando dessa maneira a experiência ética e estética do Ser.
Tal experiência, vivenciada pelo Ser, dá a ele a possibilidade de conviver entre o ato ético e o ato estético, entre o valor e a forma, entre o discurso interior e o discurso interior do outro, entre o ser eu sem o outro e o ser eu com o outro.
Considera-se aqui o fato de que o ético permite a confiança outorgada à textura do discurso, à intersubjetividade; enquanto que o estético apresenta a necessidade do outro que experimente e crie, à “participatividade”[3], em que tudo torne-se cadeia, toda a relação e interação torna-se presente e concreta e que a realidade de um está em ser o outro, sem o outro eu não existo, e sem mim, não existe o outro.
Dessa forma, contrapõe-se o eu e o outro ao mesmo tempo em que ambos se necessitem para existirem e se relacionarem. O conteúdo apresentado pelo eu só existe e pode ser experimentado graças ao outro que coexiste e faz de sua existência um ato de atividade.
O indivíduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor dos seus pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócio-ideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos. (Bakhtin/Volochínov, 1986a: p.58).
Isso porque:
Cada pensamento meu, junto com o seu conteúdo, é um ato ou ação que realizo – meu próprio ato ou ação individualmente responsável (postupok) é um de todos aqueles atos que fazem minha vida única inteira um realizar ininterrupto de atos (postuplenie) (Bakhtin, 2008:p.21).
Ou seja, não se estabelece a individualidade sem a presença do social, do conviver e do relacionar-se, fazendo com que tais movimentos de idas e vindas entre a minha existência por mim e a minha existência pelo outro promovam uma formação do pensamento e uma filosofia da linguagem, estabeleçam assim uma interação, social, cultural, existencial.
Igualmente ainda podemos contrapor o concreto ao simbólico da mesma forma que o eu e o outro. Um precisa da existência do outro. O real torna-se real quando na presença, mesmo que distante, do simbólico. Esses contrapontos permitem que o mundo da vida e da cultura sobrevivam se retroalimentando. Ao criar o simbólico sinaliza-se para o concreto, e vice-versa, cria-se sentido e significação.
Tais construções ideacionais entre o concreto e o simbólico, e vice-versa, fazem com que a relação humana seja percebida e aconteça a cada instante, em cada interrelação existencial do indivíduo, seja através de enunciado, seja através de enunciação, mas sempre através da transformação mútua do eu no outro, do outro em mim, de real em simbólico, de simbólico em real e do Ser em linguagem.
Assim como antes, o Ser expressa-se em linguagem a partir do instante em que ele se contrapõe a ela, completando-se e recriando-se com ela. Essa oposição é necessária, assim como antes, para a existência de ambos. A linguagem não pode existir sem o Ser e esse sem ela.
A partir do instante em que vivo, experimentando, eu recrio a existência do outro através do real que, para minha existência, se tornou simbólico transformando o meu ser em linguagem e essa me permitiu presenciar um mundo representado pelo discurso promovido através da cultura, do discurso social.
Essas interações promovem no outro, discursos interiores que delineiam o discurso representado vivo exterior. Aciona no indivíduo filtros internos, que em virtude de sua vivência e experiência de mundo são ideológicos, que moldam essa interação, dando-lhe uma configuração modelada pela relação desse com a enunciação produzida.
Esses filtros e mais o arcabouço cultural incorporado e apresentado pelo Ser, podem bloquear uma relação de comunicação, que poderíamos considerar bem-sucedida se alcançasse assim o objetivo a que se destina. Tais objetivos, porém, devem ser negociados e delineados por regras, geralmente tácitas, mas existentes em uma relação social.
Da mesma forma, podemos ainda entender que a dificuldade de interação, por exemplo, entre professores e alunos no ensino de Física, repousa no fato de existir, nessa relação, os “germes” de diferentes respostas possíveis e associáveis aos enunciados produzidos pelos educadores, seja pela polissemia existente, seja pela polifonia gerada.
A unidade essencial da língua passa a ser o enunciado, compreendido em um sentido mais amplo, abrangendo toda a comunicação, independentemente da maneira como essa é feita, gerando assim uma enunciação. Ou seja, só se tem enunciação se garantirmos que os enunciados sejam compartilhados de maneira efetiva e que a comunicação na interação, assim, se realize.
A Física, nesse sentido, toma forma e características de língua por poder ser comunicada com enunciações geradas de enunciados e de outros elementos como os signos e os símbolos. Desta forma, abraçamos uma compreensão mais ampla percebendo uma maior flexibilidade no ensino de Física, quando considerada como língua, em outras palavras, com a multiplicidade de formas comunicacionais existentes. Isso possibilita aumentar a gama de significações observáveis em uma análise linguística.
Desta forma, estamos propondo definir a Física como língua(gem) atribuindo a ela características estruturantes de uma interação social descrita por elementos extraídos da Práxis linguística, a mesma que proporciona pensarmos a Física, e seu ensino, baseada não apenas em um Ser, mas em toda uma relação social, histórica e cultural proposta pelas obras do Círculo.
A tese de que a Física é uma lingua(gem) defendida por nós leva em consideração o fato de acreditarmos não haver possibilidade do pensamento e da linguagem existirem sem uma interação mais ampla e um diálogo intenso, seja exterior, seja interior.
Sendo isso verdade, não vemos como não entendermos a Física como língua(gem), por se tratar de uma ciência que carrega, per se, diálogos, falas, discursos, saberes e suas vozes são apresentadas por todos os interlocutores envolvidos no ato de viver, de interpretar, de ressignificar o seu sentido por meio dos mais variados conceitos.
Por tudo isso, propomos dialogar e refinar nossos pensamentos com os colegas, aprimorando nossa forma de ver o mundo de um ponto de vista bakhtiniano, pois afinal, toda a relação e interação torna-se presente e concreta, pois a realidade de um está em ser o outro, sem o outro eu não existo, e, sem mim, não existe o outro.
Referências
BAJTIN, M. M. Hacia una filosofía del acto ético. De los borradores y otros escritos. Trad. Tatiana Bubnova. Rubí (Barcelona): Anthropos; San Juan: Universidad de Pierto Rico,1997[1924]
BAKHTIN, M. / VOLOCHINOV,V.N. Discurso na vida e discurso na arte. Trad. para fins didáticos/acadêmicos de Alberto Faraco e Cristovão Tezza do original: I. R. Titunik (“Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics”), publicada em V. N. Voloshinov, Freudism, New York. Academic Press, 1976.
BAKHTIN, M. / VOLOCHINOV,V.N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 3ª ed. São Paulo: Ed. Hucitec, (1929 / 1981) 1986a;
BAKHTIN, M. / VOLOCHINOV,V.N. Speech genres and other late essays. C. Emerson and M. Holquist (Eds., V. W. McGee, Trans.). Austin: University of Texas Press, 1986b;
BAKHTIN, M.. Estética da criação verbal. 2ª ed., São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1997;
BAKHTIN, M.. Para uma filosofia do ato. Trad. para fins didáticos/acadêmicos de Alberto Faraco e Cristovão Tezza do original: Vadim Liapunov: Toward a Philosophy of the act (Austin: University of Texas Press, 1993) 2008;
BRAIT, B. (Org.) – Bakhtin e o Círculo: conceitos-chave – São Paulo: Contexto, 2009;
BRAIT, B. (Org.) – Bakhtin: conceitos-chave – São Paulo: Contexto, 2008a;
BRAIT, B. (Org.) – Bakhtin: outros conceitos-chave – São Paulo: Contexto, 2008b;
DANIELS, H. - Vygotsky e a Pedagogia – São Paulo: Loyola, 2001.
MENDES, F.A.C. - Física: uma língua(gem) - Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2010.
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