segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Subjetividade, estilo e autoria na aquisição da escrita




Raquel Salek Fiad[i]

Venho pensando, há algum tempo, na possibilidade de encontrar estilo e autoria nos textos escritos por crianças e jovens em processo de aquisição da escrita. Trago, então, para este GEGE, a possibilidade de discutir algumas de minhas idéias e dúvidas sobre esses conceitos com base nas leituras que tenho feito de Bakhtin e nas análises que realizo de textos desses sujeitos.
Considero pertinente discutir o estilo em relação a textos escolares, principalmente no contexto atual de propostas didáticas de ensino de escrita, que têm focalizado o ensino dos gêneros discursivos. Acredito que uma discussão sobre o ensino da escrita que inclua uma reflexão sobre o estilo pode contribuir para um maior entendimento do conceito de gênero discursivo e para uma análise crítica, por parte do professor, de propostas didáticas que têm apresentado o conceito de gênero discursivo. Para encaminhar a discussão, sigo os seguintes passos: (i) retomo o conceito de gênero discursivo conforme apresentado por Bakhtin; (ii) destaco a concepção de estilo, relacionando-a aos gêneros, compreendendo o estilo do gênero e o estilo individual.
 Bakhtin apresenta o conceito de gênero discursivo a partir da relação entre o uso da linguagem e os diferentes campos da atividade humana. Afirma que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso (Bakhtin, 2003, p.262). Dessa definição de gênero discursivo, que tem sido freqüentemente repetida e retomada em inúmeros estudos, destaco o caráter flexível dos gêneros, fundamental para a discussão sobre estilo. No mesmo trecho de seu texto, Bakhtin diz que os “enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (Bakhtin, 2003, p.261). 
            A partir dessas conceituações, passo a fazer algumas considerações sobre a relação entre estilo e gênero. A flexibilidade não se manifesta do mesmo modo em todos os gêneros, ou seja, há gêneros que são mais propícios às manifestações individuais, enquanto que há outros gêneros que são mais padronizados, em que a individualidade está menos presente.  Vejamos que é uma questão de relatividade e não para ser entendida em termos absolutos.  Os gêneros têm estilos – os estilos dos gêneros – como parte de sua constituição, relacionados às esferas da atividade humana e, a depender desse estilo, há mais ou menos possibilidade de haver manifestações individuais – o estilo individual. São as manifestações individuais que modificam os estilos dos gêneros, que os renovam, possibilitando as mudanças dos gêneros. São também as manifestações individuais que mostram a flexibilidade dos gêneros. Ao discutir a relação entre estilo individual e estilo do gênero em relação a textos de aprendizes, considero que os gêneros com os quais os sujeitos entram em contato, em vários contextos ao longo do seu processo de aquisição da escrita, constituem lugares de manifestação estilística. É no interior dos gêneros e em vínculo estreito com seus estilos próprios, que se buscam as marcas da emergência dos estilos individuais.
 As análises dos textos de crianças e jovens mostra que, muitas manifestações que geralmente são vistas como problemas a serem corrigidos,
 podem ser entendidas como o resultado das relações intergenéricas, que indicam a circulação dos sujeitos por diferentes esferas de atividade humana onde os gêneros são produzidos.  Na realidade, creio que podemos entender que, nas relações intergenéricas exploradas pelos escreventes, estão manifestações do estilo individual.
            Por outro lado, relacionar o conceito de autoria a textos escritos por crianças e jovens que se encontram, em princípio, no processo de adquirir a língua escrita em suas inúmeras possibilidades, pode parecer, no mínimo estranho. Mais que isso, pode parecer ousadia ou apropriação inadequada do conceito. O conceito de autoria tem sido freqüentemente associado a textos de escritores consagrados, principalmente a textos de literatura (e não, por exemplo, a textos científicos).
            No entanto, se pensarmos, como a leitura de Bakhtin permite (em análise de Grillo, 2009) que o termo “falante” pode ser entendido como equivalente de “autor”, ambos relacionados ao “projeto discursivo do falante ou autor inscrito no enunciado” (p.135) e que essa vontade discursiva se manifesta também na escolha de um gênero (envolvendo tanto o domínio do gênero como a manifestação da individualidade no gênero, como expressamos ao tratar do estilo), então o que podemos dizer sobre os sujeitos autores crianças e jovens no processo de aquisição da escrita?

Referências bibliográficas
Bakhtin, M. (2003) [1952-1953].Os gêneros do discurso. In: Bakhtin, Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes Editora.
Grillo, S.V.C. (2009). Intersubjetividade, linguagem e gênero discursivo no círculo de Bakhtin. In: Cortina, A. & Nasser, S.M. (orgs.). Sujeito e Linguagem. São Paulo: Cultura Acadêmica.





[i] Professora do Departamento de Linguística Aplicada, IEL/Unicamp, bolsista do CNPq.
Email: rfiad@terra.com.br

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