Fabiana Furlanetto de Oliveira[1]
“A arte existe, porque a vida não basta”.
(Ferreira Gullar)
Não é tarefa fácil dar o tom que gostaria a este texto, pois movida pela necessidade de responder ao chamado deste terceiro encontro do Círculo – Rodas de Conversa Bakhtiniana e mediada pelas rodas anteriores 2008 e 2009 nas quais vivi a experiência, ponho-me em busca das palavras mais próximas do coloquial, mas que não devem fugir do rigor e da responsabilidade que a perspectiva enunciativo/discursiva de Bakhtin sempre exige daqueles que a admiram, que pretendem conhecê-la, que lutam por compreendê-la e, mais ainda, que desejam vivê-la.
Já em Para uma filosofia do ato (1993, p. 80), Michael Holquist ao prefaciar o texto nos convida a adentrar na tentativa do próprio Bakhtin de “criar uma ponte entre o ato vivido e a representação do ‘mesmo’ ato (que, é claro, não é nunca o mesmo)”. Remeto-me também à reflexão dele em Arte e responsabilidade de que “os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo...” (BAKHTIN, 2003, p. XXXIII). Desde quando me deparei pela primeira vez com estes textos, mediada pelas aulas do professor João Wanderley Geraldi, eles se fazem presentes em mim e penso que ponte é esta que Bakhtin tanto desejava criar para superar o abismo entre a vida e arte?
Recentemente, estive em Florença/Itália e ao apreciar as obras de Botticelli na Galleria degli Uffizi e de Michelangelo na Galleria dell'Accademia mais ainda me indagava, naquele momento de fruição da produção humana, no caso as obras de arte, como os atos éticos e estéticos encontram-se e em como nossas teorias e projetos são fracos diante da intensidade da vida (Oliveira, 2005, p. 132)?
Não me considero uma profunda conhecedora de arte e muito menos tenho a pretensão de uma interpretação das obras em sentido acadêmico, mas há algumas relações que estabeleço e desejo compartilhar neste texto.
Inicialmente, acredito que todos os sujeitos podem viver a experiência da apreciação estética diante de uma obra de arte. O que eu caracterizo aqui como fruição é o encontro entre aqueles que diante de uma obra colocam-se na condição de apreciadores e a relação deles com os autores, ou seja, aqueles que originalmente em outro espaço/tempo a produziram, movidos pelas mais diversas intenções, mas acredito que sempre respondendo às suas próprias questões.
A fruição considero também um ato de criação e um processo de indagação a que os sujeitos apreciadores também respondem aí a outras perguntas, de outro tempo, pois do encontro entre autor e os sujeitos que estão diante das obras de arte sentidos se produzem, o que é próprio do humano, em um mundo que exige sempre respostas e para o qual “não se tem álibi”, pois se vive.
Se
um ato de nossa atividade, de nossa real experiência, é como um Jano bifronte. Ele olha em duas direções opostas: ele olha para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a unidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada (Bakhtin, 1993, p. 20)
posso acreditar que no movimento de fruição das obras Davi, de Michelangelo ou O Nascimento de Vênus, de Botticelli realizava uma atividade como posta pela metáfora do “Jano bifronte”, vivendo o momento de minha existência concreta enquanto sujeito do momento da fruição e, paralelamente, dialogando com a obra de arte, objeto estético.
Aproprio-me também da perspectiva de Ott (2003), que valoriza educação do fruidor e a fruição como possíveis de serem ensinadas e aprendidas através de uma proposta que ele nomeia image watching.
No image watching, Ott (2003) pensa a relação dos sujeitos com as imagens como um processo, por tudo isto, ao falar de uma visita ao museu, considera que os sujeitos podem se relacionar com as imagens em um continuum que ele explicita através de verbos no gerúndio: descrevendo, analisando, interpretando, fundamentando e revelando.
Inicialmente, minha relação com as obras citadas foi mesmo de mera observação, o que não deixa de ser fundamental para que eu vivesse o descrevendo, ou seja, o momento em que o que me afetava eram as particularidades da obra, tais como a palheta de cores de Botticelli, o tamanho do quadro, a sutileza da figura feminina, o tamanho das mãos de Davi. Em seguida, analisando e interpretando ultrapassava a percepção inicial e me ligava aos porquês e, por fim, fundamentando me remetia ao contexto histórico e social de produção do artista, bem como aos dados da História da Arte, mas isto ainda não foi tudo, havia o revelando. O que, a partir desta experiência, eu produzo? Na esfera da arte-educação, a visita ao museu suporia, no revelando, a produção de outra obra pelos sujeitos, mas para mim o revelando já se constitui nas respostas que com minha vida produzi ao viver a visita e produzo, em outro tempo, por exemplo, no tempo da escrita deste texto, em que outras vozes dialogam com a experiência da visita.
Não está aqui em questão se gostei ou não das obras, mas a configuração do processo de empatia, enfim, após esta experiência eu já não era mais a mesma, algo me enriquecia e muitas respostas para este acontecimento existem. Sentidos outros se hospedam em mim.
“Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade” (BAKHTIN, 2003, p. XXXIV). O encontro entre o ético e o estético... a vida basta? Por que a arte existe? Talvez para lembrar que antes de tudo somos humanos e que em nossa constituição, o devir e a inconclusão talvez sejam a procura mesma de sentidos que estão em imagens que por vezes nos indagam e fazem com que incessantemente continuemos a perguntar e a responder... com nossas vidas e nossas obras. Ficam estas perguntas...
Referências
BAKHTIN, M. “Arte e responsabilidade”. In: Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_____________. Para uma filosofia do ato. Tradução para uso didático de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza, de Toward a Philosophy of the Act. Austin University of Texas Press, 1993.
OLIVEIRA, F. F. de. “Urdidura e Trama: tecendo a significação da formação e da docência com um grupo de professoras”, 2005, 144pp., Dissertação (Mestrado em Educação). UNIMEP, Piracicaba.
OTT, R. W. “Ensinando crítica nos museus”. In: BARBOSA, A. M. (org.). Arte – Educação: leitura no subsolo. São Paulo: Cortez, 2003.
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