domingo, 19 de setembro de 2010

FRIDA KAHLO: quando a arte e a vida não se separam






Maria da Penha Casado Alves[1]
Jefferson Fernandes Alves[2]

               
O texto que ora apresentamos e colocamos para discussão é fruto de nossas incursões pela obra de Frida Kahlo, tanto pelos seus quadros, quanto pelo diário e cartas que escreveu ao longo de sua curta vida. Interessa-nos, nesse momento, discutir, tendo a obra de Frida como guia, corpo, ato ético, estética, cronotopo, grande tempo como conceitos em diálogo e em perspectiva dialógica os trazemos para essas reflexões. Esclarecemos que essas discussões são matrizes e nutrizes de reflexões que nos acompanham quando nos acercamos do fazer artístico ou das produções de outras esferas e que dada especificidade deste momento, trazemos, apenas, recortes de nossas indagações. Passemos à Frida e seu engenho e arte.
Frida Kahlo nasceu, em 6 de julho de 1907, com a revolução mexicana, como ela mesmo afirmava, e foi revolucionária em todos os aspectos de sua tumultuada vida. A Frida perna de pau, seqüela da poliomielite que a atacou em 1913, vai sendo mutilada ao longo da vida pela doença, por acidente e por mais de 35 cirurgias que não abalaram o seu senso crítico, seu riso cínico para a tragicidade que a acampanhou durante a vida. Em não poucos momentos, ela revida encarnando imagens as mais diversas: a deusa asteca Coatlicue, com a saia de serpentes e sangue nas mãos, a camponesa mexicana com seus atavios coloridos e jóias extravagantes, o garoto de calças proletárias de brim e boné masculino. Disfarces construídos para transitar com imponência e dignidade pelos círculos da arte, da política, da boemia mexicana. Empalada viva em acidente ocorrido em 1925, as seqüelas desse evento transbordam para sua arte que expressa dor e sofrimento de um corpo em agonia. Entretanto, as marcas biográficas não limitam sua arte. Ao contrário, expande-a para além do México e de suas raízes, para além do sofrimento e agonia pessoais e se torna engenho de uma artista que é reconhecidamente uma das melhores de seu tempo. Como ela mesma afirmava, não era uma pintora de sonhos, mas pintava sua própria realidade “Pinto a mim mesma porque sou sozinha. Sou o assunto que conheço melhor.” (KAHLO, 1995, p. 14). Frida não separou arte e vida. Da vida retirou a matéria para seus quadros que expressam o olhar da mulher sobre a vida, sobre a ausência dos filhos, sobre a maceração do corpo e sobre  suas idéias políticas e paixões. Ela se constituiu, portanto, como herói de sua própria obra. Ao se fazer  herói de suas  produções artísticas, Frida põe em discussão temas que as esferas da arte sempre teve no horizonte: a relação entre a obra e o autor (sob diferentes determinações) , autoria e criação. Discussão a que Bakhtin (2003) dedica várias observações ao tratar de autor criador e autor pessoa. Frida, enquanto autora-criadora, deu acabamento estético ao tema que conhecia melhor e, nesse momento de criação, já era uma outra, pois estava em um outro tempo-espaço que lhe proporcionava o olhar exotópico. Daí a nossa compreensão de que vários conceitos/temas de Bakhtin não podem ser pensados isoladamente. Por isso, ao tratarmos da produção de Kahlo (cartas, diário e telas) trazermos para a discussão cronotopo, ato ético/estético. Pensamos que o cronotopo em que viveu Frida foi determinante para a construção da imagem de mulher (concordamos com Bakhtin quando afirma que o cronotopo cria uma imagem de homem) que ela nos oferece em verbo/imagens.  
Operar com a concepção de cronotopo, advindo da abordagem do texto literário construídas por Bakhtin ao longo de sua obra, implica pensar a relação tempo-espaço como constitutiva das interações e como construção de linguagem. Para ele, “sem esta expressão espaço-temporal é impossível até mesmo a reflexão mais abstrata”. (1990, p, 362). Daí já estar justificada a sua entrada nessas reflexões.
Pensado dessa forma, o cronotopo não pode ser retirado das relações dialógicas e do eixo axiológico sob o risco de se tornar apenas e tão-somente uma referência a um determinado espaço e a um tempo específico, concebidos como exteriores ao indivíduo, não constituintes e constitutivos do sujeito histórico em sua eventicidade como fora pensado por Bakhtin.
Caminhando com esse teórico, podemos afirmar que o homem se revela nas diferentes interações situadas em um espaço-tempo. Considerar a situação, o contexto tem se mostrado como prerrogativa para os estudos que se dizem norteados por uma perspectiva sócio-histórica. No entanto, em várias dessas abordagens tem se pensado o contexto ou a situação como o entorno, o externo, o que estaria fora do sujeito ou do fenômeno em análise. Na perspectiva dialógica bakhtiniana, podemos inferir que o sujeito constrói temporalidades e espacialidades e se constrói constitutivamente em relação a elas e por elas.
Com esse entendimento, reiteramos que, mesmo que a crítica em alguns momentos tenha tentado minimizar a importância e a qualidade da obra de Frida com o argumento de que ela seria exageradamente “autobiográfica” e “confessional”, a obra de Frida superou a sua contemporaneidade e se colocou no grande tempo como um “tesouro de sentido” (BAKHTIN, 2003) para apreciadores/leitores que lhe atribuiram sentido para além daquele de seu pequeno tempo. A sua obra venceu as determinações biográficas e nela o contemplador/leitor construirá os sentidos mais diversos: cultura, cultura mexicana, condição feminina, natureza, paixão, amor, cor local, política, engajamento, identidade, ethos, alteridade, localismo/universalismo etc. A fim de construir sua obra, Frida encarnou diversas outras e o que se denunciou como sendo “autobiográfico” na verdade são visões exotópicas de si mesma. Para pintar ou escrever, Frida se constitui outra de si mesma, movimento que para Bakhtin é algo inerente ao sujeito, uma vez que mesmo no diálogo interior, na autobiografia ou na confissão o sujeito precisa se colocar como outro para falar de “si mesmo”.
Nesse ponto, afirmamos o homem como ser heterocronotópico, uma vez que são diversos os tempos-espaços vividos e vivenciados e, portanto, constituintes, consequentemente, de imagens diversas  de um mesmo sujeito. Assim, resta perguntar: como ela se vê? Como podemos afirmar que Frida dá acabamento estético a porções/fragmentos de sua própria vida se é preciso o distanciamento, o olhar exotópico?
Para Bakhtin (2003) somente o outro, fora de mim, é quem pode ter acesso à inteireza da minha imagem a partir do seu olhar exotópico que permite a visão de partes do meu corpo não acessíveis ao meu próprio olhar. De sua posição ele me vê e me completa e dá acabamento aquilo que somente de seu lugar permite enxergar e compreender. Ademais, o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, daquele que diferente dele mesmo, pode dar acabamento a seu ser. Não coincidentes, os horizontes do eu e do outro, se complementam no acabamento estético e ético do ser.
            Esse excedente de visão, determinado pelo lugar que o homem ocupa no mundo e presente em face de qualquer outro indivíduo que se apresente para ele, é condicionado pela singularidade e insubstitubilidade do seu lugar no mundo, em que o homem é o centro de valores e está situado em dado conjunto de circunstâncias e todos os outros estarem fora dele.  De tal forma que aquele que olha o outro o faz a partir de seu lugar no mundo, de seus valores, de suas crenças, de seu posicionamento e dá o acabamento a partir dessa posição axiológica. O olhar do eu para o outro, para o corpo alheio será, assim, um olhar marcadamente posicionado o que equivale dizer construído nas interações, no conjunto de suas vivências e de seus valores.
            O acabamento da visão do outro é garantido, então, pelo movimento da contemplação ativa na qual o excedente de visão do eu completa o horizonte do outro indivíduo contemplado sem perder a originalidade deste. Tal compreensão implica, também, postura ética, responsável com a visão que se tem do corpo alheio no que concerne ao respeito, ao olhar amoroso que para Bakhtin garante a singularidade, o ato ético, o reconhecimento da diferença, a eventicidade do ser no mundo e na vida.
            O corpo como imagem externa para o eu e para o outro. Somente como Narciso é que contemplo o meu reflexo na água e a imagem externa integra totalmente o horizonte concreto de minha visão. Na vida, nem mesmo o espelho garante o todo de nós mesmos. Ocorre que a nossa relação com a nossa própria imagem externa não é de índole imediatamente estética, mas diz respeito ao seu possível efeito sobre os outros e sua visão, observadores imediatos, e, assim, nós a avaliamos não para nós mesmos, mas para os outros e por meio dos outros. É com o outro e pelo outro que nos vemos. Na categoria do eu, a minha imagem externa não pode ser vivenciada como um valor que me engloba e me dá acabamento, ela só pode ser vivenciada na categoria do outro. Além disso, somente me colocando na categoria do outro é que me vejo como elemento de um mundo exterior plástico-pictural e único. A imagem integral do homem, para a sua autoconsciência, está dispersa na vida e entra no campo de sua visão do mundo exterior apenas como fragmentos aleatórios, faltando unidade e continuidade e o próprio homem na categoria do eu não pode juntar a si mesmo em um todo externo minimamente acabado. Nem mesmo o espelho, a fotografia ou a observação especial de si mesmo podem garantir isso, pois o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro que o vê e lhe dá o acabamento que sozinho ele não conseguiria.
            Por isso, a forma do vivenciamento concreto do indivíduo real é a correlação imagética do eu e do outro. O modo como o eu vivencia o eu do outro difere do modo como o eu vivencia o próprio eu; e essa diferença de percepção tem importância fundamental tanto para a estética como para a ética. Como se vê, é no cruzamento dos olhares do eu sobre si mesmo e dos outros sobre o eu que a imagem de si se constrói. Na díade eu-outro é que a imagem de si é gestada.
            Feitas essas ressalvas/observações, podemos afirmar que Frida se via com o olhar construído na interação com o outro pela memória, pela cultura mexicana/indígena, pela dor do corpo e da alma que a acompanhou a vida toda, pelo diálogo com os intelectuais e artistas do seu tempo,  pelo engajamento político, pelas ideias revolucionárias, pelo amor e admiração por Diego Rivera, pela fotografia do seu pai, pela traição da irmã... Dessa matéria, que passa pelo filtro do autora-criadora, é feita a sua obra cujas máscaras dela mesma nos olham e nos indagam e requesitam o olhar engajado, posicionado. Na verdade, Frida construiu personagens na vida e na arte, pois sua obra se coloca na tênue fronteira entre o mundo da vida e o mundo da arte. Como estabelecer limites entre um e outro, se na vida, no mundo ético, ela já se colocava como personagem? pois suas vestes, adereços, postura compunham uma persona que chamava atenção em qualquer lugar onde aparecesse quer postada em  cadeira de roda, quer em cama e cercada de pessoas. O corpo dilacerado de Frida era vestido, ornado, enfeitado, colorido com os ícones da cultura mexicana que ela prezava e fazia questão de mostrar para o outro a fim de demarcar sua identidade, seu pertencimento à terra onde nasceu. Essa personagem montada para circular no mundo da vida já era uma de suas criações.
            Podemos afirmar que a obra de Frida se coloca como resposta ao cronotopo que ela vivenciou e ao corpo que ela ocupava. A singularidade de sua produção se constitui a partir disso: somente ela poderia ter pintado/escrito dessa forma e não outra.
            Tanto é tênue esse limite entre a atividade ética e a atividade estética, que Frida se recusava a ser rotulada como surrealista, pois ela fazia duras críticas ao suposto descolamento desse movimento artístico da realidade do mundo. Seu engajamento político, sua luta política não lhe permitiam ver-se distante do cronotopo da revolução, da reivindicação, da luta em defesa do México e de sua cultura. Na verdade, Frida encarna a máxima bakhtiniana de que não temos álibi para a vida e isso ela confirmou em tinta e palavras. Álibi para a existência talvez fosse o que ela menos desejava.
            Para compreender a obra de Frida, recorremos, também, às observações de Bakhtin (2003) sobre a autobiografia e a biografia, uma vez que sempre foi muito evidente e apontada por diversos críticos as camadas autobiográficas em toda obra de Frida. Para esse pensador o ser que fala na biografia é o outro possível, “ [...] pelo qual somos mais facilmente possuídos na vida, que está conosco quando nos olhamos no espelho, quando sonhamos com a fama, fazemos planos externos para a vida; é o outro possível que se infiltrou na nossa consciência [...].” (BAKHTIN, 2003, p. 140). Somente na posição axiológica do outro é que se consegue narrar a própria vida por meio de seus diversos personagens. Ademais, qualquer memória do passado é um pouco estetizada. Pode-se dizer, assim, que Frida estetizou momentos de sua vida, deu-lhes acabamento estético na obra que deixou para os outros que a partir da exotopia de seus olhares construirão imagens da artista e da mulher. Frida encarnou personagens diversos para um destino de mutilação e dor. A Frida perna de pau da infância cede lugar à Frida estilhaçada pelo ferro que dilacerou sua coluna e a relegou a uma peregrinação por salas de cirurgia e o convívio permanente com a dor e o sofrimento. Entretanto, Frida não é apenas essa imagem, ela é, também, a pintora que conseguiu vencer a fama, a grandiosidade de Diego Rivera e viver para além da sua sombra esmagadora e se constituir em artista reconhecida pela excelência, criatividade e magnificência de suas telas. Ela inventou Fridas distintas para a vida e para a arte.
            Convivendo com revolucionários, artistas e líderes comunistas, alguns companheiros e também amantes, como Trotski, Frida ia construindo a imagem de mulher engajada e voltada para os valores de sua terra e pelos ideais de uma revolução. Para André Breton, a imagem de Frida seria “uma fita enlaçando uma bomba”. Sua arte seria explosiva ou, ainda, uma “beleza convulsiva”. Sua imagem pública, intencionalmente carnavalizada com vestes majestosas e coloridas, colares, anéis, chapéus de organdi, xales granadinos, e também com um discurso em que se sobressaíam os trocadilhos, os palavrões e a ironia, as gargalhadas obscenas (elementos constitutivos de sua cosmovisão carnavalesca do mundo), é de irreverência e de quem deseja ser vista, ser olhada e admirada por gestos, palavras e vestes, enfim, por um ethos que afiançasse sua luta pela insubmissão, pelo desafio ao preconceito, pela liberdade dela e do México. Dado que o ethos é construído na confluência de olhares, não se pode desconsiderar o fato de que Frida se auto-denominava “La gran ocultadora”. Assim, mesmo seus quadros autobiográficos, o conjunto de sua obra e sua atuação na vida e na arte precisam conviver com a sua cota de teatralidade, de encenação ou da omissão de parcelas daquilo que ela preferiu não revelar e deixar oculto.
            Portanto, a partir dessa visão da obra de Frida, bastante rápida, fazemos as seguintes perguntas: considerando que a experiência artística na contemporaneidade, em alguns suportes e gêneros, são da ordem do imediato, como se processa o distanciamento, considerando a visão bakhtiniana? Haveria graus de acabamento estético? dado que para Bakhtin não se pode pensar em grandezas absolutas tais como o dialogismo ou o acabamento estético... Em se concordando que somos seres heterodiscursivos e heterocronotópicos, haveria éticas diferenciadas, relativas? Tal diversidade não seria antiética, uma vez que sujeita a mudanças?

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CHARAUDEAU, P. Discurso político. São Paulo: Contexto, 2006.
GRIMBEERG, S. Frida Kahlo. World Publications Group, Inc. North Digthton, 1997.
HERRERA, H. Frida: una biografía de Frida Kahlo. México: Editorial Diana, 1984.
KAHLO, F. O diário de Frida Kahlo: um auto-retrato íntimo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A.R; SALGADO, L. (orgs.). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008.
_____. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2005.
ZAMORA, M. (compilação). Cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.



[1] Professora Adjunta do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da UFRN.
[2] Professor adjunto do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN.

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