segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Shrek: a (des) construção de imagem (estética) e valores (ética).



Gabriela Brito de Freitas – UFPA
Lidiane Costa dos Santos – UFPA
Orientadora: Rosa Maria de Souza Brasil - UFPA
Os discursos alheios incidem sobre nós, seres falantes e pensantes, uma influencia capaz de fazer mudar características da personalidade, e até mesmo o modo de agir, e pensar de um indivíduo.  Isso ocorre quando nos deixamos levar pela força dos discursos que ouvimos no nosso cotidiano, sejam eles relativos a comportamento, visão estética ou atos de ser, esse discursos, apesar de parecerem ofensivos ao ser humano são determinantes para a formação de um sujeito. Conforme cita Silva: (2009, p. 91)
(...) segundo Bakhtin, o sujeito é construído por meio das relações sociais, o que implica pensarmos que o sentido tem sua materialidade histórica, tem sua marca e sua constituição no processo discursivo.
É por meio dessas relações sociais citadas por Bakhtin, que o indivíduo absorve as informações e conteúdos de pensamento para sua formação enquanto sujeito formado e formador de opinião e outros discursos. Podemos exemplificar como uma dessas relações sociais as histórias contadas para crianças como fábulas e contos de fada.
Geralmente o que ocorre nessas histórias é a tentativa de propagar idéias e ideais de beleza e comportamento. Os protagonistas, na maioria dos casos, são mocinhas e mocinhos muito “bonitos”, adotando um padrão de beleza que mais tarde será confirmado pela mídia em suas propagandas que propagam os famosos “rostinhos de princesa” em suas propagandas afora. Traçando um diálogo impositivo com o leitor, ainda segundo a autora:
(...) Se a linguagem é a via de acesso ao outro, ao mundo, podemos compreender a insistência de Bakhtin quanto à valorização do sujeito quanto ao peso ideológico que os signos revelam. Por essa razão, quando buscamos compreender a construção dos sentidos, só se faz possível à medida que entendemos que o discurso não é individual, mas um diálogo entre interlocutores e entre discursos. (p.89)
Desde crianças ouvimos diversos discursos, muitos deles a partir de histórias, como os contos de fadas, e passamos a imaginar a nossa própria vida dentro delas. Começa com “Era uma vez...” e sempre existe um reino, uma linda princesa e um príncipe corajoso e destemido. A história apresenta um conflito, mas independente das dificuldades, o final sempre é feliz. 
É comum uma analogia entre os dois mundos, o encantado e o real. Na medida do possível tentamos nos aproximar ao máximo do “mundo encantado”, que é cheio de fantasias e onde desejos se tornam realidade. Afinal, qual garota nunca sonhou em ser uma princesa? Em muitos momentos da vida queremos nos transportar para tal mundo de fantasias para vivermos desejos que estão em nós como um sentimento de inconformismo. Fantasiar um mundo é bem melhor do que viver a realidade.   
Na pós-modernidade ainda existe um padrão de beleza também fantasiado por esses discursos que são construídos por meio da mídia, dos livros de contos e outros suportes.










Figura 2: O que uma princesa da Disney precisa em um homem atraente. 2
 

Figura 1: Estereótipos de princesas
 

 


No entanto, essa construção pode ser destruída por outro discurso peculiar e diferencial, absolutamente contrário ao padrão estabelecido. O considerado “belo” confronta-se com a verdadeira realidade.
Escolhemos para tal reflexão o filme infantil Shrek, uma comédia irreverente, que satiriza contos de fadas e desenhos animados. “Era uma vez, num pântano longínquo, um ogro chamado Shrek...”.
Shrek desconstrói tudo o que há de normal e comum numa história infantil, mas como as demais não foge a regra de ter a presença de uma princesa e um príncipe. O personagem em foco é um ogro (uma espécie de monstro) que vive num pântano e vê sua privacidade ser invadida por alguns personagens de outros contos que não têm para onde ir, pois foram expulsos do reino do Lorde Farquaad. A partir daí busca uma forma de se ver livre daqueles personagens, para isso faz um acordo com o lorde, que lhe restituirá o pântano caso a princesa se case com ele (o lorde). Esse lorde é representado por uma imagem caricata de um príncipe padrão.
O sucesso de Shrek, parte da originalidade dessa inversão das personagens. Conseguiu atingir não apenas o público infantil, mas o adulto também que se divertem com as incríveis aventuras de nosso herói.
1. Extraído do Site “Uma viagem pop” <http://umaviagempop.blogspot.com/2009 >
2. Extraído do Site “Pix – Diversão digital” <http://mypix.com.br/fun/principes-da-disney-ensinam-a-pegar-mulher/>

 
Nosso personagem principal entra na história substituindo o príncipe encantado, o cavaleiro heróico, embora não apresente a fisionomia adequada para tal papel, pois é representada por criatura, no mínimo, grotesca. Ao assumir esse papel, Shrek derruba a imagem do príncipe belo, ele não é bonito, mas possui coragem, é também sensível e capaz de apaixonar-se, então percebemos a proximidade com a realidade agora diferente um herói perfeito que não existe, mas a presença de um herói como ocorre no romance descreve Bakhtin (1993, p. 402):
O personagem do romance não deve ser “heróico”, nem no sentido épico, nem no sentido trágico da palavra: ele deve reunir em si tanto os traços positivos, quanto os negativos, tanto os traços inferiores, quanto os elevados, tanto os traços cômicos, quantos os sérios.
Shrek possui um amigo nada comum, é um burro tagarela e inconveniente, mas existe uma relação de interesses entre os três personagens, Shrek, Lorde Farquaad e burro. O primeiro deseja ter seu pântano de volta e viver isolado das pessoas. Percebemos no início do filme que o protagonista não interage com o outro, uma questão que não seria possível na perspectiva bakhtiniana:
“Devo identificar-me com o outro e ver o mundo através de seu sistema de valores, tal como ele o vê; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo, fora dele; devo emoldurá-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o excedente de minha visão, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento. Quando tenho diante de mim um homem que está sofrendo, o horizonte da sua consciência se enche com o que lhe causa a dor e com o que ele tem diante dos olhos; o tom emotivo-volitivo que impregna esse mundo das coisas é o da dor. Meu ato estético consiste em vivenciá-lo e proporcionar-lhe o acabamento (os atos éticos —ajudar,socorrer, consolar — não estão em questão aqui). O primeiro momento da minha atividade estética consiste em identificar-me com o outro: devo experimentar — ver e conhecer — o que ele está experimentando, devo colocar-me em seu lugar, coincidir com ele (como, deque forma é possível essa identificação? Vamos deixar este problema psicológico de lado,limitemo-nos a admitir como incontestável o fato de que, até certo ponto, essa identificação é possível)” (p. 46)
O Lorde que deveria ser corajoso e resgatar sua amada usa Shrek para tal fim. Então o papel é invertido, o mostro terrível é corajoso, enquanto o lorde é uma representação de sujeito mal, sem caráter.
O burro, que aparentemente é um tolo, aproxima-se de Shrek para escapar de confusões, no entanto no decorrer da história torna-se grande amigo e mostra que possui grandes valores.
Caixa de texto: Figura 3: “Princesa” Fiona e “prínipe” Shrek 3O nosso “herói” resgata a princesa Fiona por seu próprio interesse, mas no desfecho da história acaba apaixonando-se por ela. A princesa indiscutivelmente foge a regra, pois não é uma dama indefesa e delicada, muito pelo contrário, e é exatamente isso que conquista o coração do nosso herói. Assim como um bom conto a princesa carrega uma maldição, a de se tornar um ogro após o pôr-do-sol. A maldição só será quebrada quando ela for beijada por um, e essa missão será dada ao nosso querido personagem Shrek.
 
Em um artigo de Oliver Perez, que comenta o filme encontramos a seguinte afirmação: “Depois desta destruição dos padrões habituais dos tradicionais conceitos encontrados nos contos de fadas, a animação deixa sua eterna marca nos cinemas com os dizeres: ‘E viveram feios para sempre’”. Assim esse conto às avessas tem seu final feliz.
A desconstrução de imagem é realizada do início ao fim do filme. Não há padrão de beleza estabelecido, a mentalidade do considerado “belo” é rompida, o que para muitos se tratava de estética torna-se superficial. Nessa história existe um olhar estético diferencial que permite as personagens serem quem realmente são, apresentarem seus verdadeiros valores e com isso aproximam-se da realidade.
O personagem principal não expressa nenhum aspecto de beleza pré-concebido, no entanto demonstra sentimentos, bom caráter, valores que não seriam característicos de um “ogro”. O amor entre os dois nos faz refletir sobre os padrões sociais, pois se trata de uma princesa e um ser que habita num pântano, desconstruindo o valor de que uma princesa só pode casar com um príncipe. No desfecho ela livra-se da maldição, mas assume a aparência de um ogro definitivamente, nesse momento por meio do olhar estético percebemos o amor além das aparências, um amor que vai além dos padrões de beleza, tanto no filme quanto na realidade. “Uma pessoa só vê aquilo que está fora dos limites da visão do outro. Assim os pontos de vista simultâneos completam-se na formação do todo, o evento dialógico”, explica Machado (1997, p. 141).
Outro aspecto importante em nosso herói é exatamente a coragem que possui, o sucesso do filme é a originalidade, então se criou a imagem de herói às avessas. Não possui o desejo de casar com a donzela, tanto que o “primeiro encontro” não foi nada agradável. Ela esperava um príncipe e como ele não o era, não a trata com nenhuma delicadeza.
Existe de fato um choque quando assistimos a esse filme, entretanto precisamos admitir o quanto há de estético e ético nele. A nossa mente conhece bem a construção de um conto, mas vem Shrek desconstruindo tudo. Há mais de realidade em Shrek do que em qualquer conto fantasiado.
O filme nos leva a uma reflexão de quem somos realmente, se tentamos assumir um padrão de beleza para parecermos com o outro. O personagem é um ogro que ama e apresenta bom caráter e o lorde que deveria (poderia) ser essa figura no filme, não ganha esse papel, mas sim o horrendo ogro que é bom (ético). Não podemos julgar o outro por sua aparência, porém é o que a sociedade faz infelizmente. E com o objetivo de sermos aceitos tentamos adentrar nela de qualquer maneira, podemos associar isso a Bakhtin:
O evento do ser (...) é nesse sentido o ato concreto e dinâmico de instauração do ser no mundo, de apresentação do ser à consciência dos sujeitos, destacando-se nessa formulação que a consciência apreende o ser como evento, ação, do ser, como postulado, e não, de modo essencialista, ou teorético, como conteúdo, como dado, e que a consciência se orienta com relação ao ser tomando-o como evento, não como substancia. (BRAIT, p. 27)
Shrek nos deixa surpresos com suas atitudes, apesar de ser considerado um mostro por muitos, como no caso do filme, não toma decisões que prejudiquem a vida do outro, seus atos são necessariamente inofensivos. Os atos de uma pessoa não dependem de sua aparência, as atitudes de alguém são regidas por suas escolhas para sua construção de sujeito no meio social. Sendo assim, a obra estética se revela por meio de atividades éticas:
A obra estética tem como tema o mundo dos homens, sua decisões éticas, seu labor teórico, suas intenções, seu viver, aos quais representa na construção da obra estética. (SOBRAL, P.108)
Esse filme reflete nossa realidade como seres limitados e imperfeitos que são formados por diversos discursos, no entanto temos nossa expressividade. Cada um possui uma identidade por mais parecidos que nos tornemos do outro, somos únicos, como afirma Bakhtin (1998, p. 92): “Cada um de nós tem a capacidade de ser único, o que torna os seres humanos, em termos de espécie, únicos”.
Mas o que é afinal expressão? Sua mais simples e mais grosseira definição é: tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma for maneira no psiquismo do individuo, exteroriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum código de signos exteriores. (BAKHTIN,p. 111)
O filme traz-nos uma lição sobre as diferenças entre as pessoas e quanto essas diferenças precisam ser respeitadas. Aceitar o outro como ele é, independente de sua aparência, reconhecer seu valor e sua importância no meio social ao qual está inserido: “Para que eu seja eu, preciso do outro. Assim, completar pode ser igualmente um bem”. (BAKHTIN, 103)


REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.

______ Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec /USP, 1988.

______ Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

CLARK, K.; HOLQUIST, M. Arquitetônica da Respondibilidade. In: BAKHTIN, Mikhail. S. Paulo: Perspectiva, 1998.

MACHADO, Irene. Os gêneros e o corpo do acabamento estético. In: Beth Brait. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

SILVA, Michele Viana da. O principio de alteridade: a respeito da natureza dos enunciados e do sujeito. In: O espelho de Bakhtin. São Carlos: Pedro & João Editores, 2007.

SOBRAL, Adail. Ato/ Atividade e evento. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos chaves. São Paulo: Context, 2005.p.108.


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