Profa. Ms. Márcia Helena dos Santos[1].
“Toda compreensão é prenhe de respostas e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor.” BAKHTIN
INTRODUÇÃO
No ensino de produção escrita, os professores encontram dificuldades em levantar os efeitos de sentido dos enunciados dos textos produzidos pelos alunos num dado contexto histórico-social e ver como esses enunciados se materializam lingüisticamente. Sabe-se que a postura de educador numa linha discursiva deve procurar condições que visem emergir a pluralidade de leituras e propiciar situações em que se possa questionar o conteúdo dos textos. Adotando-se essa postura, buscam-se reflexões sobre as atividades de produção escrita no que tange à leitura dos enunciados produzidos em sala de aula e à ideologia que subjaz em sua argumentatividade.
Considerando-se que o enunciado
está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados , aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação[...] deve ser considerado acima como uma resposta a enunciados anteriores [...] (Bakhtin, 2006:316)
À luz dessa teoria, sabe-se que a linguagem penetra na vida por meio de enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se introduz na linguagem e transcende o lingüístico, pois eles são sócio-constituídos e também o é o sentido que não pode ser controlado como se fosse um objeto contido no texto. Além disso, é importante ressaltar que, conforme Fiorin. J. L. (2006), o conteúdo não é o assunto específico de um texto temático, mas é um domínio de sentido de que se ocupa o gênero. Neste domínio de sentido, busca-se uma outra visão de leitura, que se dá no conjunto de enunciados que formam a cadeia da comunicação discursiva. Enunciados estes sempre plenos de tonalidades dialógicas.
Ancorado nesses estudos, este artigo tem como objetivo geral mostrar a ideologia que subjaz nos valores que constituem a identidade de uma aluna (jovem), a qual se vê em outro espaço temporal (na velhice), na construção da argumentatividade textual. Especificamente, buscar-se-ão respostas a estas duas perguntas:
Como os valores constitutivos da identidade de um jovem que se projeta para sua velhice se materializam no texto?
Em que medida os valores evocados na construção do tema Velhice sustentam a argumentatividade do texto e revelam a ideologia subjacente a eles?
Para se atingirem os objetivos propostos, os procedimentos metodológicos são os seguintes: selecionou-se um texto em prosa descritivo, cujo título é O Baú de Conhecimentos. Essa produção escrita foi feita em sala de aula, como treinamento para prova, istoé, sem que a nota obtida fosse computada no desempenho oficial da aluna. Ela possui Ensino Médio e estuda em uma Escola Militar.
A proposta de redação foi esta: Aluno (a), como você se descreveria em sua velhice? Para análise deste corpus, buscou-se a teoria dos gêneros do discurso ancorada nos estudos bakhtinianos, numa perspectiva de que os enunciados são plenos de tonalidades dialógicas. O sujeito é um ser social, que tem um dizer individual que não é dele.
Essas reflexões estão organizadas da seguinte forma:
estudo de texto teórico relacionado à avaliação de produção escrita;
análise do corpus;
considerações finais.
Estudo teórico relacionado à avaliação de produção escrita: uma incursão pelos pressupostos bakhtinianos.
Os seres humanos utilizam-se da linguagem na forma de enunciados em determinadas esferas de atividades (as da escola, as do trabalho, as da família). Esses enunciados só são produzidos dentro dessas esferas de ações, o que se permite dizer que eles são constituídos pelas condições específicas e pelas finalidades de cada esfera. Uma leitura sob esses óculos mostra que a utilização da língua elabora tipos relativamente estáveis de enunciados.
Segundo Bakhtin (2003), os gêneros são tipos de enunciados relativamente estáveis, que possuem uma riqueza e variedade infinita, visto que as possibilidades da ação humana comportam um repertório significativo de gêneros do discurso. E também há de se considerar que o campo da comunicação discursiva tem a sua concepção típica de destinatário. Fala-se sempre por meio de gêneros no interior de cada esfera de atividade.
Assim não importa ao avaliar um texto dizer que se trata de uma descrição, narração, dissertação, que o conteúdo é coerente com temática, que a linguagem obedece à norma culta, mas sim buscar entender o uso dos enunciados na construção daquele texto. Isso por que, como assevera Bakhtin, op.cit.,
As pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras (numa acepção rigorosamente lingüística), ou combinações de palavras, trocam enunciados constituídos coma ajuda de unidades da língua [...]
Isso se reflete em nossos atos, em nossas palavras. Nenhuma palavra é “neutra” mais inevitavelmente “carregada”, “ocupada”, “habitada”, “atravessada” pelos discursos nos quais viveu sua existência socialmente sustentada (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.27).
O filósofo russo, Bakhtin, op.cit., postula que a palavra apresenta quatro propriedades definidoras: pureza semiótica, possibilidade de interiorização, participação em todo ato consciente, neutralidade. A pureza semiótica refere-se ao seu valor como signo ideológico dentro de uma esfera. A interiorização dá-se no confronto entre as palavras da consciência e as palavras do mundo exterior. A participação em todo o ato consciente, a palavra funciona pela interpretação e compreensão do mundo do sujeito e também de seus valores exteriores nas esferas ideológicas. A neutralidade é de que a palavra pode assumir qualquer função ideológica dependendo da maneira como ela é usada em determinado enunciado. Como signo, recebe sempre uma carta significativa a cada momento de seu uso. A palavra é, pois, sempre impregnada de uma expressividade do seu enunciador quando usada numa determinada situação, com uma intenção discursiva.
Com esse suporte teórico, buscaremos “os óculos da ressignificação” dos enunciados do texto elaborado pela aluna, em sala de aula, a fim de revelar os valores constitutivos da identidade do sujeito na construção da argumentatividade do texto e a ideologia subjacente a eles.
análise do corpus
Faz-se necessário, a fim de responder às perguntas formuladas na introdução, tecer algumas reflexões sobre as condições de produção e sobre o resultado apresentado pela aluna.
Em uma escola de formação de sargentos especialistas de Aeronáutica, em que se exige o Ensino Médio para o Ingresso, durante três tempos de aula, equivalentes a duas horas e quinze minutos, destinados a um treinamento oficial para a prova de Redação, foram oferecidos dois temas e pediu-se que os alunos escolhessem um, e, em seguida, redigisse um texto descritivo. Cabe lembrar que a nota obtida nesse momento não é computada para o desempenho oficial dos alunos.
Apresentar-se-á a proposta escolhida pela aluna.
![Caixa de texto:](file:///C:/Users/allan/AppData/Local/Temp/msohtmlclip1/01/clip_image003.gif)
O texto se divide em três parágrafos.
A aluna refere-se, no primeiro parágrafo, ao tempo como apressado, agitado, ”tempo impaciente”- do sujeito deste mundo.
No segundo, ao descrever o físico, refere-se às rugas, que me acrescentaram conhecimento; às experiências amargas/doces; ao olhar, que não perdeu o brilho; mãos, já que não possuem a força de antes, mas ainda mantêm o poder criador do tempo. Há, nas orações adjetivas, possivelmente um sentido de que o tempo derrotou o físico, porém não o espírito e também de que o poder criador do tempo transcende o físico.As mãos estão enrugadas, sem forças, mas mantêm o poder criador do tempo.Retomando a idéia de que o espírito supera o físico”não cansam de persistir e acreditar que o prosseguir rege o mundo”. Nos atributivos escolhidos pela aluna, o tempo é impaciente, passa rápido, ”liquido”, porém traz as rugas que para ela são sinais de sabedoria adquirida nas experiências boas e ruins. Pelos atributivos ao olhar e ao sorriso, revela seu espírito feliz. Percebe-se isso quando usa o articulador sintático de oposição ao se referir aos lábios que perderam a cor, mas não perderam a felicidade. As mãos, já não possuem a força de antes, mas mantêm o poder do Criador. O articulador mas mostra o físico derrotado pelo tempo, mas o espírito não.
No último parágrafo, volta a referir-se ao tempo: “... as habilidosas mãos do tempo...”. O tempo que vai moldando as pessoas rapidamente.
Os valores evocados na construção do tema Velhice sustentam a argumentatividade de que o tempo é criador (mãos habilidosas), as lágrimas e sorrisos (experiências boas ou ruins) trazem conhecimento e tornam o homem melhor. O tempo traz conhecimento (... saber tudo que sei...). Assim, para ela o tempo não destrói, mas constrói: ”ao envelhecermos não somos velhos, somos baús de conhecimento...” Acrescenta-se, ainda, não se envelhece, mas desabrocha-se. Ou seja, a Velhice é um novo recomeço, uma nova etapa.
No texto o baú de conhecimentos, a tipologia adotada é descrição. Os enunciados descritivos constroem um auto-retrato e sustentam a argumentatividade implícita no texto: o tema: o tempo derrota o físico, não o espírito. Busca-se valorizar o “saber”, já que não se pode mais o físico. Há uma negação que pressupõe uma afirmação: os valores deste mundo privilegiam o físico. Sustenta-se, portanto, na argumentatividade há necessidade de se buscar o saber durante a juventude para que se possa compensar a perda do físico. Ou seja, os valores sociais vigentes. Ao colocar desabrochar em oposição a envelhecer, tenciona-se corroborar a idéia de que desabrochar significa recomeçar uma outra etapa. Dessa forma, pelo conhecimento, o homem consegue se eternizar.
Os enunciados respondem ao tema no que tange ao exigido pelo comando da proposta e ainda constroem a argumentatividade textual: na juventude, cultua-se o corpo; na velhice, busca-se o conhecimento, como forma de se sobrepor ao físico tão cultuado pela sociedade atual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sob os pressupostos bakhtinianos, a leitura dos textos produzidos em sala de aula, ainda que preocupada com sua tipologia (descrição, narração, dissertação) e também com sua forma (erros gramaticais), deve romper, enquanto processo discursivo, a linearidade do texto, transgredindo-o, desconstruindo-o e construindo-o, a fim de que se possa dar a cada enunciado um novo sentido.
A linguagem, portanto, penetra na vida por meio dos enunciados concretos para atender às necessidades do ser humano, e ela se organiza para isso. Como um fenômeno profundamente social e histórico e, por isso mesmo, ideológico, deve ser usada para construir significado. A unidade básica de análise lingüística é o enunciado, ou seja, elementos lingüísticos produzidos em contextos sociais reais e concretos como participantes de uma dinâmica comunicativa (BAKHTIN, 1997).
REFERÊNCIAS
AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução de Celane M. Cruz e João Wanderley Geraldi. Cad. Est. Ling., Campinas,SP( 19):p.25-42,jul./dez.1990.
BAKHIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 8. ed. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.
_________________.Os gêneros do discurso. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 261-306.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin.1ª ed. São Paulo: Ática, 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário