domingo, 19 de setembro de 2010

RELENDO BAKHTIN[1]: UM PASSEIO PELA BIENAL


Simone de Jesus Padilha[2] (MEEL/UFMT)

            Imaginemos, todos, que estamos numa exposição de arte, como a Bienal de Arte de São Paulo. Durante nossa visita, observamos várias obras, umas aparentemente estranhas, outras nos parecem mais familiares dentro daquilo que imaginamos que seja arte.
            Aquelas obras têm, obviamente, uma estruturação material, são feitas de algum material concreto. Se quadros, são telas de determinado tecido e tintas de determinado tipo. Se esculturas, são feitas de material sólido como mármore, ferro, madeira, pedra ou outro. Muitas formas serão, assim, possíveis de brotar nestes ou com estes materiais.
            Por outro lado, tais obras foram idealizadas e realizadas pelos seus autores-criadores com referência a algo, a algum evento, a algum acontecimento, a alguma pessoa ou ser, que foi esteticamente individualizado naquele objeto. O mundo e suas mazelas é, então, relido pelo artista. Esta individualização traduz-se por determinada forma artística, que está indissociadamente ligada a esta orientação, que é valorativa, do autor em relação àquilo que deseja expressar. Desta maneira, esta forma não pode ser compreendida apenas abstratamente, como a forma de um certo material, como descrevemos acima.
            Bem, essa obra assim abstratamente[3] concebida como um material, como uma forma que também é a do material, é apenas a obra exterior, sobre a qual se pode discorrer, da qual se pode descrever e estudar os elementos que a integram, independentemente daquilo que Bakhtin (1924/1975: 22) denomina objeto estético, que seria, para ele, o conteúdo da atividade estética (contemplação) orientada sobre a obra.
            Em nosso passeio pela Bienal, podemos entrever que todas as obras de arte ali presentes são realizações de visões estéticas, que se propõem como unidades concretamente arquitetônicas, no dizer de Bakhtin em sua Filosofia do Ato (1919-1921). Obras que, em seu processo criativo, de uma forma ou de outra, ou por várias formas, estão orientadas para o homem, para o ser humano, e para tudo aquilo que lhe diz respeito. E nenhum processo deste ato estético está devidamente efetivado no acabamento das obras pelos artistas, mas além, na resposta que os outros - nós, os contempladores - lhes dão, num ininterrupto processo dialógico de construção e reconstrução de sentidos.

Para exemplificarmos, primeiramente, aqui o que compreendemos de Bakhtin por obra exterior e objeto estético, trago a letra da canção de Zeca Baleiro, “Bienal”:

Desmaterializando a obra de arte no fim do milênio
Faço um quadro com moléculas de hidrogênio
Fios de pentelho de um velho armênio
Cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta

Teu conceito parece, à primeira vista,
Um barrococó figurativo neo-expressionista
Com pitadas de arte nouveau pós-surrealista
Calcado da revalorização da natureza morta

Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
"Meu filho, isso é mais estranho que o cu da gia
E muito mais feio que um hipopótamo insone"

Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno

Minha mãe não entendeu o subtexto
Da arte desmaterializada no presente contexto
Reciclando o lixo lá do cesto
Chego a um resultado estético bacana

Com a graça de Deus e Basquiat
Nova York, me espere que eu vou já
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana

Misturarei anáguas de viúva
Com tampinhas de pepsi e fanta uva
Um penico com água da última chuva,
Ampolas de injeção de penicilina

Desmaterializando a matéria
Com a arte pulsando na artéria
Boto fogo no gelo da Sibéria
Faço até cair neve em Teresina
Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria

Com o clarão do raio da silibrina
Desintegro o poder da bactéria


Parece que, em nosso “fim de milênio” (ou começo de um novo), podemos pensar em diferentes valores artísticos que a bem-humorada letra de canção nos traz. Se o artista lê o seu mundo, e se, de certa maneira, a obra de arte é resposta/contra-resposta a ele – num movimento especial, digamos de passagem – os elementos, o material de que vai se servir o autor-criador tende a ser outro e outros também.
Se o nosso mundo parece apresentar-se como um caldeirão em que se amalgamam ali múltiplas informações, dados e todo o tipo de elementos que se possa imaginar, nada melhor que visão da velha bruxa que mistura “fios de pentelho de um velho armênio, cuspe de mosca, pão dormido, asa de barata torta”.
Caso concordemos que haja tal pós-modernidade (em constante devir, diga-se de passagem), como não nos divertir com os versos que misturam estilos artísticos, num conceito barrococó figurativo neo-expressionista, com pitadas de arte nouveau pós-surrealista e calcado da revalorização da natureza morta? Quem mais pode compreender a nossa arte? Ou será compreender o nosso mundo? Já dizia Vygotsky, a arte é o social em nós...
Mas será que Bakhtin previu...ou pensou que um dia pudéssemos fazer arte de coisas simples, inusitadas, estranhas, cotidianas? Tornar arte, ao adentrar numa exposição, numa Bienal, objetos exteriores (de mundos tão longe, tão perto...), contas de água, luz e telefone, o lixo reciclado e o ciclone, anáguas de viúva, tampinhas de pepsi e fanta uva, penico...
Porém, a arte não perderá à ciência, pois dela também se apropriará e reatualizará seus elementos, como moléculas de hidrogênio, injeção de penicilina e para arrebatar, o raio da silibrina a desintegrar o poder da bactéria!!
E nesta brincadeira maravilhosa, cuja audição é imperdível, pois o sotaque nordestino traz toda a ambiência e opulência popular ao recado poético, Zeca Baleiro nos mostra, assim como Bakhtin, que ético e estético se imbricam o tempo todo, no movimento belo e constante da vida de todo o dia e do dia de hoje, principalmente. Os objetos cotidianos, “exteriores”, se atualizam na canção como obras estéticas...o material aqui serve à apreciação valorativa do autor-compositor, como bem imaginava Bakhtin.
E já que os sentidos se realizam plenamente nas interações, cronotopicamente falando, podemos pensar nas artes que nos rodeiam e em nossa recepção delas. Para tanto trago mais um exemplo: o que podemos dizer do artista[4] que tem suas obras ameaçadas de sair da Bienal, por pedido da OAB? Cruzando e misturando espaços e esferas...noções e impressões, ética e estética, por conta desta obra artística, geraram-se muitas contra-palavras.
Segundo depoimento do artista:

"Eu não queria desenhar ninguém matando, eu queria desenhar a mim mesmo matando", afirmou. "Não pouparia ninguém desses assassinatos, de jeito nenhum. Pelo contrário, eu tenho uma lista muito maior, representando vários tipos de poder, em vários lugares do mundo."

E estranhou a recepção:

"Expus em 2005 em Recife, e depois em Natal, em Campina Grande, em Porto Alegre, e em canto nenhum houve esse tipo de reação"





Segundo a Bienal, os desenhos

"traduzem um incômodo do artista diante dos modos de representação política vigentes" e uma "desilusão profunda" sobre possíveis mudanças que às vezes levam a um enfrentamento violento.”

Para a OAB,

“Essas obras, mais do que revelar o desprezo do autor pelas figuras humanas que retrata como suas vítimas, demonstra um desrespeito pelas instituições que tais pessoas representam, como também o desprezo pelo poder instituído, incitando ao crime e à violência.   
Certamente não se pode impedir que uma obra seja criada, mas se deve impedir que seja exposta à sociedade em espaço público se tal obra afronta a paz social, o estado de direito e a democracia, principalmente quando pela obra, em tese, se faz apologia de crime.”


Podemos traz outras vozes à polêmica: para a crítica de arte, Daniela  Labra:

“Uma lástima, pois tal decisão é obtusa além de hipócrita. Perde-se neste debate moralista a oportunidade de se refletir sobre a arte e toda a sua potência transformadora. Desse modo, os desenhos do artista são tratados como meras fotografias sensacionalistas de jornais populares – lidos por milhares diariamente – e que de fato falam de violência sem conteúdo crítico, apenas para fins comerciais, o que deveria ser considerado chocante mas não é mais.”

Em meio a este impasse de opiniões, bem cabe a passagem do belo texto Discurso na vida, discurso na arte (1926):

“A comunicação estética, fixada numa obra de arte, é, como já dissemos, inteiramente única e irredutível a outros tipos de comunicação ideológica, tais como a política, a jurídica, a moral, etc. Se a comunicação política estabelece instituições correspondentes e, ao mesmo tempo, formas jurídicas, a comunicação estética organiza apenas uma obra de arte. Se esta última rejeita esta tarefa e começa a ter o propósito de criar mesmo a mais transitória das organizações políticas ou qualquer outra forma ideológica, então por esse mesmo fato ela deixa de ser comunicação estética e abdica de seu caráter singular.  O que carateriza a comunicação estética é o fato de que ela é totalmente absorvida na criação de uma obra de arte, e nas suas contínuas re-criações por meio da co-criação dos contempladores, e não requer nenhum outro tipo de objetivação.  Mas, desnecessário dizer, esta forma única de comunicação não existe isoladamente; ela participa do fluxo unitário da vida social, ela reflete a base econômica comum, e ela se envolve em interação e troca com outras formas de comunicação.”

Não nos cabe julgar a metáfora, em Zeca Baleiro ou em Gil Vicente, mas apenas podemos a ela impor uma outra metáfora. Desta maneira, concordando com Bakhtin e contemplando seu pensamento, dai ao artista o que é do artista... e ao contemplador ativo, o deleite!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAKHTIN, M. M. (1919-1921). Toward a Philosophy of the Act. Austin, University of Texas Press, 1993. Versão para o português com o título, Para uma Filosofia do Ato, para uso didático e acadêmico, com tradução provisória de Calos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, mimeo.
_____________ (1924). O problema do Conteúdo, do Material e da Forma na Criação Literária.In M. Bakhtin. (1975) Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Editora da UNESP, 1993. p. 13-70.
BAKHTIN, M. M. /VOLOCHINOV, V. N (1926) Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita, Mimeo.

Sites visitados:


[1] RELENDO BAKHTIN, mais conhecido como REBAK, é o nome dado ao nosso Grupo de    Pesquisa e Estudos sobre a obra do Círculo de Bakhtin, que envolve alunos de graduação e pós-graduação interessados em conhecer, (re)ler e discutir os textos bakhtinianos.
[2] Professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem -– Mestrado ( MeEL), da Universidade Federal de Mato Grosso
[3] Já no seu texto Para uma Filosofia do Ato (1919-1921), Bakhtin salientava a cisão, a dissociação entre o conteúdo ou sentido de um dado ato-atividade e a realidade histórica do seu ser, a real e única experiência dele. Aqui, poderemos transpor este pensamento para o terreno do estético, em que a forma está valorativamente orientada para algo que é a experiência real, através do olhar do artista, mas também tem seu momento abstrato, ao qual a estética material se agarra.


[4] Trata-se da série Inimigos, de autoria do artista pernambucano Gil Vicente, que está ameaçada de não ser exposta devido à ação a seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) que, alega apologia ao crime.

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