Luciana Andrade Cavalcante de Castro (UFG)
laccfranca88pc@yahoo.com.br
Alexandre Ferreira da Costa (UFG)
alexanrs@uol.com.br
… mas antes falemos de estruturalismo.
Abordar a relação entre Ética na perspectiva bakhtiniana e caráter emancipatório da Análise de Discurso Crítica (ADC) consiste em uma proposta aparentemente desvirtuante quando se tem empenhado por um certo tempo em um trabalho de análise do viés estruturalista da ADC, e mesmo das teorias de Bakhtin. No entanto, com certo aprofundamento na análise, consideramos possível (e pertinente) reconhecer a produtividade, e quiça relevância, de tal proposta. O presente texto busca ser uma primeira tentativa de aprofundamento. Mas uma pequena revisão do objetivo principal de nosso trabalho convém primeiramente.
Desde 2008, temos observado como se constituiu o viés estruturalista da Análise de Discurso Crítica, mais especificamente as teorias do autor britânico Norman Fairclough, um dos seus principais expoentes. A ADC consiste em uma abordagem teórico metodológica de análise do discurso e das práticas sociais nas sociedades contemporâneas. Por práticas, entende-se modos socialmente estruturados de os sujeitos agirem no mundo e entre si, e o discurso consiste em uma parte essencial das práticas, de forma que em ADC os dois podem ser utilizados como uma mesma noção. Assim o discurso é um modo de ação, utilização da linguagem para determinados fins e em determinados contextos, como também um modo de representação da realidade, quando nos referimos à maneira com que determinados grupos utilizam a linguagem para representarem o que está ao seu redor.
Além de analisar discursos e práticas, a ADC também visa a emancipação de indivíduos desfavorecidos nas relações discursivo-sociais, através de sua conscientização acerca dessas relações desiguais. Conforme Fairclough, assim como para muitos outros analistas críticos e cientistas sociais, grupos sociais dominantes, portadores de mais poder, se utilizam de ideologias para legitimarem sua posição favorável, e a linguagem é o meio mais eficiente para a propagação das ideologias. Podemos considerar que há então uma manipulação dos indivíduos por parte das classes dominantes, e a Análise de Discurso Crítica busca conscientizá-los disso, propondo-lhe formas de mudar essa realidade. Daí temos o caráter emancipatório da ADC.
Pertencendo a uma linha de análise discursiva com intuito de incentivar indivíduos a mudarem estruturas sociais, Norman Fairclough demonstrou uma certa aversão ao paradigma estruturalista, visto que por um certo tempo este foi caracterizado por desconsiderar o fator humano diante das estruturas. Aliás muitos pesquisadores continuam a enxergar o estruturalismo dessa maneira. Entretanto a visão do autor britânico se modificou ao longo de suas obras, sendo que em uma delas ele assume o viés “estruturalista construtivista” de sua abordagem, considerando tanto a força das estruturas quanto a dos sujeitos.
Para realizar nosso trabalho, partimos justamente da premissa de que caráter emancipatório e viés estruturalista não são necessariamente incompatíveis em uma abordagem, e é o que temos percebido claramente nas obras de Norman Fairclough. Inclusive, a adoção de modelos estruturais para a análise de discursos e práticas é extremamente produtivo. Por 'modelo estrutural', podemos entender um conjunto de noções e categorias que o pesquisador utiliza para analisar os fenômenos objetos de seu trabalho. E quando tratamos de 'modelo estrutural', nos referimos a 'estruturalismo metodológico' em contraste com 'estruturalismo ontológico', conceitos presentes em Eco (2001), que foram de grande utilidade para nosso projeto. Por estruturalismo metodológico, entendemos, basicamente, a utilização de modelos estruturais relativamente homogêneos para a análise de fenômenos diferentes, independente deles serem iguais ou não à sua representação em tais modelos. O estruturalismo ontológico, implica acreditar em estruturas reais que regem os fenômenos. Fairclough assume a crença em estruturas em um trecho de sua obra Analysing Discourse:
A posição que assumo é realista, baseada numa ontologia: os eventos sociais concretos e as estruturas sociais abstratas, bem como as práticas sociais menos abstratas são parte da realidade. Nós podemos fazer uma distinção entre o 'potencial' e o 'real' – o que é possível devido à natureza (de permissões e restrições) das estruturas e das práticas sociais, em oposição ao que realmente acontece. Ambas precisam ser distinguidas do que é empírico, do que nós sabemos sobre a realidade. A realidade não pode ser reduzida ao nosso conhecimento sobre a mesma, o qual é parcial e mutável. (FAIRCLOUGH, 2003, traduzido pelos autores)
Percebemos claramente uma relação com a teoria bakhtiniana nesse trecho, especialmente com o que o autor soviético expõe em Para uma filosofia do ato. Entretanto, deixemos para demonstrar essa relação mais adiante. O que nos interessa de imediato é afirmar que na obra de Norman Fairclough constatamos tanto a presença do estruturalismo ontológico quanto do metodológico. Ou seja, o autor crê na existência de estruturas e se utiliza de modelos estruturais para a análise de práticas, e isso não impede sua teoria de ter um caráter emancipatório.
Mas para possibilitar tal conciliação, logicamente Fairclough houve de recorrer a outras teorias que lhe permitissem isso, e dentre elas, temos a teoria bakhtiniana e diversas noções presentes nela.
Apropriação das teorias de Bakhtin em ADC.
Do mesmo modo que ocorre com Fairclough, consideramos também produtivo verificar o viés estruturalista da abordagem de Bakhtin, o que não deixa de soar estranho a princípio, visto que o autor soviético criticava as abordagens objetivistas abstratas da linguagem, estando o estruturalismo saussuriano entre elas. Conforme Costa (2008), em Bakhtin encontramos uma espécie de 'estruturalismo metodológico', perceptível ao observarmos as noções de que o autor soviético utiliza em suas análises. Diferente do objetivismo abstrato, na teoria bakhtiniana o real da linguagem é o enunciado e não a estrutura, e a existência de enunciados se dá por meio de interação, ou diálogo. Logo, é pelo estudo do enunciado que alcançamos a essência da linguagem, entretanto é possível se utilizar de método estrutural para a análise deste, é o que verificamos na proposta de Bakhtin.
Em Para uma filosofia do ato, encontramos pistas de como se constitui o viés estruturalista de Bakhtin. Ao diferenciar em sua obra o 'mundo da cultura' e o 'mundo da vida', Bakhtin vai ao encontro de uma dialética que não deixa de reger as reflexões de muitas abordagens de análise de discurso, assim como de muitas ciências sociais: o contraste entre as noções de 'estrutura' e 'acontecimento'.
Conforme Bakhtin o mundo da vida consiste naquele em que realizamos nossos atos uma e única vez, o mundo da cultura, por outro lado, é responsável pela objetivação e representação desses atos. Quanto a dialética estrutura/acontecimento, tomamos estrutura como um conjunto de normas e convenções que regem o comportamento da sociedade, assim como as representações que esta faz de si mesma e dos fatos a seu redor, e o acontecimento como o conjunto dos eventos que ocorrem de acordo ou não com tais convenções, e tais eventos são acontecimentos únicos e irrepetíveis. Assim, a estrutura é propriedade do mundo da cultura e o acontecimento é propriedade do mundo da vida.
Bakhtin afirma que o mundo da cultura e o mundo da vida se encontram em confronto, sendo mutuamente impenetráveis. Tal oposição entre o mundo da vida e o mundo da cultura, diz respeito a oposição entre 'real' e 'potencial' a que Norman Fairclough se refere no fragmento que expusemos no item anterior. Conforme Fairclough, o conhecimento que temos sobre a realidade, o qual é da ordem do 'potencial', não coincide com o que realmente seja a realidade, por mais que aquele tente estar próximo dessa. Em outras palavras, qualquer representação do mundo que tentarmos fazer, seja de qual maneira for, não dará conta de tudo que o mundo é. Mundo da vida e mundo da cultura são impenetráveis, estrutura e acontecimento não terão sempre relações harmônicas e coincidentes entre si. Mas de qualquer modo, desconsiderar essas oposições não é o mais produtivo para nenhuma ciência ou filosofia da linguagem e da sociedade, e é essa basicamente uma das constatações que Bakhtin faz em sua obra.
Sobre viés estruturalista de Bakhtin e a apropriação que Fairclough faz de sua teoria tem-se ainda bastante para expor, infelizmente isso já seria um desvio do foco principal do presente texto.
Ética e emancipação
Ao tratarmos do mundo da vida, e dos atos concretos que neste realizamos, uma questão relevante a ser abordada é a da responsabilidade e da responsividade que os caracterizam. Atos respondem a outros atos e são realizados por um sujeito responsável e responsivo ativo. Cada sujeito é individualmente responsável pelas ações que realiza e responde às ações de outros sujeitos. E diante deste fato a Ética, a moral, o dever tem papéis relevantes. Entretanto, ao contrário do que parece, estes são propriedades do próprio acontecimento e não da estrutura (convenções). Nas palavras de Costa (2008), “o filósofo russo situa a validade da ética no devir e a do conhecimento na objetividade”. Em outros termos, a definição da Ética se dá quando nos voltamos ao mundo da vida, ou acontecimento, ou devir, e a definição do conhecimento se relaciona com a objetividade, ou mundo da cultura, a estrutura. Poderíamos nos perguntar: se a Ética se enquadra justamente na parte inapreensível de nossas ações, logo, tampouco ela é bem apreendida, e sua objetivação é necessariamente empobrecedora, deixando escapar muito do que a caracteriza? E Se a Ética se encontra na parte inapreensível, única e irrepetível de nosso ato, certamente é problemático atribuir à mesma um valor universal, visto que esta se fará presente em situações únicas e irrepetíveis, relacionada a sujeitos únicos e irrepetíveis, que possam ter visões únicas e irrepetíveis. São algumas indagações pertinentes, embora complexas. De qualquer modo sempre que pensamos em Ética, temos em mente um modo de bem agir. Já que não temos álibi na existência e somos responsáveis pelo que fazemos, que estejamos realizando atos que não prejudiquem o mundo de nossa vida nem da vida nenhum outro indivíduo.
Ao pensarmos na Ética como essência de um bem agir, podemos relacionar a ela o papel do pesquisador na conscientização e emancipação de indivíduos de um dado grupo social, uma das principais metas propostas pela ADC. Aliás questões de Ética devem ser levada em conta por qualquer pesquisador em qualquer área.
Conforme Sobral (2008), o pesquisador não pode sobrepôr seus interesses pessoais aos dados de sua pesquisa, de modo a alterá-los só para que estes favoreçam suas hipóteses. Honestidade para com os dados é fundamental.
Se o objeto revela algo que o pesquisador julga inaceitável ou coisa dessa natureza, é ética a atitude de reconhecê-lo. Se uma hipótese é refutável, é ético, mantê-la como tal, pois este também é o resultado da pesquisa. O pesquisador não nega, naturalmente, sua inserção social e histórica, mas tem a obrigação de manter com relação a ela e ao seu objeto (que podem ser “sujeitos”!) uma atitude exotópica. Por outro lado, não age eticamente o pesquisador que, ao elaborar seu texto de pesquisa, escamoteia as hipóteses refutadas ou as elimina cuidadosamente para manter seu arcabouço, teórico ou de outra natureza.
O pesquisador de ADC ao operar com práticas sociais, necessariamente trabalha com sujeitos, sujeitos que, apesar de inseridos em um mesmo grupo, não deixam de ter suas próprias características, sua eventicidade real, única e irrepetível, e também inapreensível pelo pesquisador. Justamente, a parte inapreensível dos sujeitos possibilita imprevistos nos dados, e é ético do pesquisador reconhecer tais imprevistos e assumir que a pesquisa não estará sempre sob seu controle.
Fairclough expõe como característica do pesquisador crítico a sua reflexividade perante seu trabalho, ou seja, é importante que se reflita sobre os objetivos, dados, e resultados da pesquisa, avaliando o que pode ser modificado na teoria ou nos métodos, observando como a pesquisa deve contribuir para o auxílio de indivíduos desfavorecidos. O pesquisador crítico deve refletir e agir eticamente.
Se há intuito de conscientização de um grupo de sujeitos acerca da hegemonia de uma determinada classe, o pesquisador crítico deve considerar as necessidades desses sujeito até mais que as vontades próprias dele mesmo. É preciso assumir responsabilidade para com os sujeitos-objetos da pesquisa, e saber que todas as ações, tanto do pesquisador quanto dos outros indivíduos, não deixam de estar interligadas durante todo o processo, afinal somos responsáveis e responsivos ativos.
Cremos que a apropriação, ou uma compreensão, da Ética na perspectiva bakhtiniana seria tão produtivo para a ADC, no que se refere ao seu caráter emancipatório, quanto é a apropriação do dialogismo, no que diz respeito ao seu viés estruturalistas.
Infelizmente não deixa de ser fato, que muitas pesquisas se mascaram, assumindo um ideal emancipatório, mas no fundo visando a promoção e reconhecimento dos próprios pesquisadores. Isso é o que possibilita manipulação de dados em favor de interesses pessoais, e termina por ser o que ocorre em boa parte das vezes.
Consideramos que Ética é mais do que o convencionado por nó mesmos, e é possível visualizar de certo modo isso na obra de Bakhtin, entretanto se o seu empobrecimento não é bem seguido, o que se dirá de sua totalidade.
Poderíamos dizer, portanto, que o viés estruturalista da ADC não implica necessariamente na desconsideração dos sujeitos em uma pesquisa. Assim como as outras práticas sociais que a prática de pesquisa focaliza, ela mesma está sujeita às implicações da eventicidade irredutível de seus praticantes.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato. Tradução brasileira inédita.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1981.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
COSTA, Alexandre Ferreira da. O fantasma estruturalista e a Análise do Discurso Crítica. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
ECO, Umberto. A estrutura ausente. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
FAIRCLOUGH, Norman. Language and Power. London: Logman, 1989
FAIRCLOUGH, Norman. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992.
FAIRCLOUGH, Norman. Critical discourse analysis. Boston: Addison Wesley, 1995.
FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
RAMALHO, Viviane; RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In:BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto 2008.
SOBRAL, Adail. Ético e estético: Na vida na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In:BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto 2008.
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