Ao se refletir sobre o tema do “III Círculo - Rodas de Conversa Bakhtiniana 2010” ficam explícitos diversos temas de extrema importância. E apreciação estética, o refrigério da mente ao mesmo tempo em que é estopim do ativismo, de fato liga-se a ética, de uma maneira ou de outra.
Em primeiro plano um conceito interessante a ser relembrado é o de Arthur Schopenhauer em relação à função imprescindível da estética na existência humana. Para o filósofo, nada mais é do que a única maneira de se entender a essência do mundo e o conceito de vontade que, por tantos anos, foi a palavra-chave do autor para seus trabalhos acerca do sofrimento e da dependência que o humano apresenta em relação a seus instintos.
Para Schopenhauer, o único momento de desprendimento é o de apreciação estética. Neste momento, segundo ele, seria como se nosso eu observador se desprendesse do corpo físico e passasse a observar nossa situação de uma maneira externa, de modo que consiga reparar nossas falhas e quanto somos dependentes de nossa vontade.
A questão é: essa noção de desprendimento para a interpretação seria o único comprometimento ético a ser seguido pelas artes? O decorrer das correntes artísticas prova que não.
O cinema é um ponto de observação interessante. A chamada sétima arte que, até hoje não é apontada como arte por certos críticos vorazes, apresenta transformações e comprometimentos éticos variados.
Em épocas intercaladas a briga “diretor versus ator” era uma dos pontos de partida para a discussão. O diretor, em épocas como a da nouvelle vague, era o ponto forte, buscando criar uma linguagem própria para o cinema. O ator, no entanto, é o ponto forte, principalmente no cenário hollywoodiano da época.
Os dois, no entanto, encontraram momentos de convivência harmoniosa, como no neorealismo italiano, onde Marcelo Mastroiani dividindo a atenção dos holofotes com diretores como Fellini e Antonioni. Mesmo um momento da nouvele vague contou com a essa divisão, como por exemplo, entre Jean-Pierre Léaud e os diretores Godard e Truffaut.
Mas qual a questão que liga isso a nossa temática?
A criação de uma linguagem própria. A idéia de criar um estilo autoral, uma assinatura em seus filmes, deu a diversos diretores a premissa de um comprometimento com a criação de uma linguagem, um discurso criado exatamente para a tela do cinema, e que não fosse apenas o reflexo da literatura ou de outra vertente artística. Este era basicamente o comprometimento ético destes diretores.
Mas isso já havia sido questionado desde cedo, por Eisenstein, com seus métodos subversivos de edição e, principalmente, com as temáticas associadas à lutas políticas. Eisenstein, russo, trouxe às telas os ideais do socialismo de uma maneira que até hoje outros diretores tem dificuldade de o fazer. Em “Greve”, questiona a idéia da organização privada, uma das bases do capitalismo. Um filme da década de 20, mudo, que traz ao cinema o questionamento quanto ao seu comprometimento ético com a política. Eisenstein, assim como diversos teóricos contemporâneos, enxergava que não era possível ser neutro ou então ignorar sua posição política em uma sociedade, e nem mesmo nas artes. Seria como se esconder na ficção.
Godard se rende ao cinema político em sua era pós-nouvele vague. O cineasta emplaca diversos filmes na época da revolução estudantil francesa do final da década de 60, como Week-End e La Chinoise, e com eles demonstra uma mescla entre a pura arte e a discussão política. La Chinoise, belo filme de 1968, apresenta um mini-sistema comunista reduzido a um apartamento, onde estudantes debatem as idéias desta vertente sem, no entanto, saber como é colocá-la em prática.
Já na Itália, na mesma época, Bernardo Bertolucci emplaca “Partner“, um filme que traz alternativas ao neorealismo do cinema italiano da época, apresentando não apenas o cinema, mas também o teatro, como o cenário da revolução, onde já não existe palco e cadeiras para o público, onde se confundem artista e platéia, e todos passam a interagir para agir.
A idéia de criar uma linguagem própria, no entanto, ganhou realce de outras maneiras. Tarkovski é prova viva. Um dos cineastas mais completos de todos os tempos demonstrou que poderia fazer com que qualquer um de seus filmes pudesse ser identificado por várias percepções dos sentidos. Gotas de água caindo em uma poça ao longo de suas películas demonstram sempre um ambiente úmido, trazendo uma imersão inimaginável para o receptor. Tarkovski buscava comunicação com o mundo exterior. Ele buscava diálogo. E este também não é um propósito ético essencial?
Utilizar os mecanismos comuns a esta arte em favor de um diálogo aberto com o receptor. Quebrar padrões comuns de observação. Não enxergar, através da câmera, exatamente do jeito que se enxergaria convencionalmente a partir dos próprios olhos.
A falta de diálogo no cinema convencional, até hoje, em certos casos, ainda é evitada.. Seria como gastar dinheiro à toa. Em Tarkovski, ou em Bergman, demonstravam angústia, solidão, incomunicabilidade. A tomada distante, afastando a possibilidade de identificação física do personagem, pode parecer loucura para padrões mercadológicos. Mas pode servir para demonstrar isolamento, distância estabelecida entre o personagem e o mundo.
E assim o autor vai buscando demonstrar a importância e a riqueza de sua individualidade. Busca de todas as maneiras arrastar o receptor para dentro de seu mundo, e o provoca (o desafia) a tentar simular seu ponto de vista, tentar se colocar em sua maneira de ver, interpretar, agir no mundo.
E buscando uma ligação com Bakthin, temos o conceito de transgrediência; a busca pelo deslocamento do seu ponto de vista para o do autor e, finalmente, de volta ao seu, que não será mais o mesmo. Para ele, se este ciclo está completo, o processo de apreciação da obra foi realizado.
Outro conceito bakhtiniano que seria interessante associar a tais idéias é o de exotopia e extralocalidade. Na apreciação estética não posso ser exatamente o ponto de vista da alteridade (do autor), mas a partir de seu ponto de vista é que, fundamentalmente, construo o meu.
E eis o ponto fundamental deste texto: o diálogo “autor versus receptor” e a riqueza no processo da apreciação estética, na tentativa eterna do autor em conseguir, ao máximo, explicitar sua maneira individual no processo criativo. E, diante da obra, o receptor também apresenta a riqueza de seus valores próprios, sua individualidade, e a partir dela busca interagir e criar um diálogo.
E é neste ponto que Bertolucci foi feliz com “Partner“, colocando o personagem Jacob como aquele que quer romper todas as barreiras que possam separar criador e apreciador. Uma tarefa impossível, uma vez que não posso me tornar o outro. Mas uma ficção inteligente, e uma luta utópica que nos dá toda a noção de uma das maiores agonias do artista.
A busca por criar uma nova linguagem, no final das contas, é simplesmente a busca dele por conseguir, o máximo possível, externar o seu “eu”, se livrar parcial e momentaneamente de uma condenação eterna: a prisão dentro de si mesmo.
Em primeiro plano um conceito interessante a ser relembrado é o de Arthur Schopenhauer em relação à função imprescindível da estética na existência humana. Para o filósofo, nada mais é do que a única maneira de se entender a essência do mundo e o conceito de vontade que, por tantos anos, foi a palavra-chave do autor para seus trabalhos acerca do sofrimento e da dependência que o humano apresenta em relação a seus instintos.
Para Schopenhauer, o único momento de desprendimento é o de apreciação estética. Neste momento, segundo ele, seria como se nosso eu observador se desprendesse do corpo físico e passasse a observar nossa situação de uma maneira externa, de modo que consiga reparar nossas falhas e quanto somos dependentes de nossa vontade.
A questão é: essa noção de desprendimento para a interpretação seria o único comprometimento ético a ser seguido pelas artes? O decorrer das correntes artísticas prova que não.
O cinema é um ponto de observação interessante. A chamada sétima arte que, até hoje não é apontada como arte por certos críticos vorazes, apresenta transformações e comprometimentos éticos variados.
Em épocas intercaladas a briga “diretor versus ator” era uma dos pontos de partida para a discussão. O diretor, em épocas como a da nouvelle vague, era o ponto forte, buscando criar uma linguagem própria para o cinema. O ator, no entanto, é o ponto forte, principalmente no cenário hollywoodiano da época.
Os dois, no entanto, encontraram momentos de convivência harmoniosa, como no neorealismo italiano, onde Marcelo Mastroiani dividindo a atenção dos holofotes com diretores como Fellini e Antonioni. Mesmo um momento da nouvele vague contou com a essa divisão, como por exemplo, entre Jean-Pierre Léaud e os diretores Godard e Truffaut.
Mas qual a questão que liga isso a nossa temática?
A criação de uma linguagem própria. A idéia de criar um estilo autoral, uma assinatura em seus filmes, deu a diversos diretores a premissa de um comprometimento com a criação de uma linguagem, um discurso criado exatamente para a tela do cinema, e que não fosse apenas o reflexo da literatura ou de outra vertente artística. Este era basicamente o comprometimento ético destes diretores.
Mas isso já havia sido questionado desde cedo, por Eisenstein, com seus métodos subversivos de edição e, principalmente, com as temáticas associadas à lutas políticas. Eisenstein, russo, trouxe às telas os ideais do socialismo de uma maneira que até hoje outros diretores tem dificuldade de o fazer. Em “Greve”, questiona a idéia da organização privada, uma das bases do capitalismo. Um filme da década de 20, mudo, que traz ao cinema o questionamento quanto ao seu comprometimento ético com a política. Eisenstein, assim como diversos teóricos contemporâneos, enxergava que não era possível ser neutro ou então ignorar sua posição política em uma sociedade, e nem mesmo nas artes. Seria como se esconder na ficção.
Godard se rende ao cinema político em sua era pós-nouvele vague. O cineasta emplaca diversos filmes na época da revolução estudantil francesa do final da década de 60, como Week-End e La Chinoise, e com eles demonstra uma mescla entre a pura arte e a discussão política. La Chinoise, belo filme de 1968, apresenta um mini-sistema comunista reduzido a um apartamento, onde estudantes debatem as idéias desta vertente sem, no entanto, saber como é colocá-la em prática.
Já na Itália, na mesma época, Bernardo Bertolucci emplaca “Partner“, um filme que traz alternativas ao neorealismo do cinema italiano da época, apresentando não apenas o cinema, mas também o teatro, como o cenário da revolução, onde já não existe palco e cadeiras para o público, onde se confundem artista e platéia, e todos passam a interagir para agir.
A idéia de criar uma linguagem própria, no entanto, ganhou realce de outras maneiras. Tarkovski é prova viva. Um dos cineastas mais completos de todos os tempos demonstrou que poderia fazer com que qualquer um de seus filmes pudesse ser identificado por várias percepções dos sentidos. Gotas de água caindo em uma poça ao longo de suas películas demonstram sempre um ambiente úmido, trazendo uma imersão inimaginável para o receptor. Tarkovski buscava comunicação com o mundo exterior. Ele buscava diálogo. E este também não é um propósito ético essencial?
Utilizar os mecanismos comuns a esta arte em favor de um diálogo aberto com o receptor. Quebrar padrões comuns de observação. Não enxergar, através da câmera, exatamente do jeito que se enxergaria convencionalmente a partir dos próprios olhos.
A falta de diálogo no cinema convencional, até hoje, em certos casos, ainda é evitada.. Seria como gastar dinheiro à toa. Em Tarkovski, ou em Bergman, demonstravam angústia, solidão, incomunicabilidade. A tomada distante, afastando a possibilidade de identificação física do personagem, pode parecer loucura para padrões mercadológicos. Mas pode servir para demonstrar isolamento, distância estabelecida entre o personagem e o mundo.
E assim o autor vai buscando demonstrar a importância e a riqueza de sua individualidade. Busca de todas as maneiras arrastar o receptor para dentro de seu mundo, e o provoca (o desafia) a tentar simular seu ponto de vista, tentar se colocar em sua maneira de ver, interpretar, agir no mundo.
E buscando uma ligação com Bakthin, temos o conceito de transgrediência; a busca pelo deslocamento do seu ponto de vista para o do autor e, finalmente, de volta ao seu, que não será mais o mesmo. Para ele, se este ciclo está completo, o processo de apreciação da obra foi realizado.
Outro conceito bakhtiniano que seria interessante associar a tais idéias é o de exotopia e extralocalidade. Na apreciação estética não posso ser exatamente o ponto de vista da alteridade (do autor), mas a partir de seu ponto de vista é que, fundamentalmente, construo o meu.
E eis o ponto fundamental deste texto: o diálogo “autor versus receptor” e a riqueza no processo da apreciação estética, na tentativa eterna do autor em conseguir, ao máximo, explicitar sua maneira individual no processo criativo. E, diante da obra, o receptor também apresenta a riqueza de seus valores próprios, sua individualidade, e a partir dela busca interagir e criar um diálogo.
E é neste ponto que Bertolucci foi feliz com “Partner“, colocando o personagem Jacob como aquele que quer romper todas as barreiras que possam separar criador e apreciador. Uma tarefa impossível, uma vez que não posso me tornar o outro. Mas uma ficção inteligente, e uma luta utópica que nos dá toda a noção de uma das maiores agonias do artista.
A busca por criar uma nova linguagem, no final das contas, é simplesmente a busca dele por conseguir, o máximo possível, externar o seu “eu”, se livrar parcial e momentaneamente de uma condenação eterna: a prisão dentro de si mesmo.
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