domingo, 19 de setembro de 2010

Deveres e atividade na escola: é possível uma "pedagogia do ato"?



Marisol Barenco de Mello
Universidade Federal Fluminense/UFF

A sala de aula estava repleta de crianças e jovens, na sua maioria afrodescendentes, cada qual procurando fazer algo diferente, na sua maioria brincadeiras para implicar com os colegas ou provocar as professoras. A turma era de quinto ano, que regularmente atende crianças entre 10 e 12 anos, mas os jovens que ali estudam tem entre 13 e 15 anos, e seus corpos muitas vezes parecem ter mais que essa idade. São rapazes e moças que não tiveram uma escolaridade regular, sofrendo várias repetências nesses anos em que permanecem na escola. A professora, subindo as escadas junto comigo, vinha me recomendando que eles eram bastante bagunceiros. Iniciamos o trabalho apresentando o projeto, uma iniciativa da Capes para formação de professores – PIBID – que prevê uma parceria da Universidade com uma escola pública, para o desenvolvimento de projetos de trabalho. Nossa área, a alfabetização, nossa unidade, a Faculdade de Educação da UFF. Assim, começamos na escola a trabalhar com as turmas de primeiro a terceiro anos, mas a turma 503 nos foi entregue com um pedido de ajuda.  Nesse dia que era o primeiro do projeto com a turma do quinto ano, preparamos uma atividade para apresentar o projeto como um todo. Abri a fala apresentando o projeto e perguntando quem gostaria de trabalhar conosco. As meninas não responderam, quietas, e alguns meninos disseram logo que não iam fazer nada. Continuei tentando explicar as vantagens do projeto, mas só extraí do grupo uma pergunta: “quem não quiser participar tem que fazer dever?” A professora acenou com a cabeça que sim, e dessa forma todos os alunos aderiram ao projeto.
Pelo segundo dia consecutivo a palavra dever circulava nas nossas conversas, na escola. Na primeira vez uma menina de outra classe nos dizia que o que ela mais gostava de fazer no mundo era dever. Ao perguntar a ela o que significava isso, ela disse, sorrindo: “não sabe não? Coisas de colégio, ora!”
Dever é o nome convencionado pela cultura escolar ao se referir às atividades realizadas, de cunho curricular. Exercícios, cópias, produções textuais, leituras, toda sorte de tarefas envolvendo a escritura na escola é considerado um dever. Existe dever de aula, que são as atividades que são desenvolvidas no período em que a criança está na escola, e dever de casa, tarefas e atividades que a criança deve realizar, de preferência, com a ajuda de sua família.
A idéia deste texto surgiu a partir desse primeiro estranhamento da palavra dever. Aparentemente inocente na descrição da tarefa escriturística escolar, chamar-se dever evoca os sentidos múltiplos da palavra, que interagem no interior dessa relação social, e nos permitem dialogar com o desafio cotidiano da escola: as crianças, jovens e adultos vivem os deveres de modo pouco engajado, muitas das vezes os realizam sem de fato envolverem-se no ato como sujeitos do conhecimento, mas passivamente realizam as tarefas que possuem comandos, na escritura de sua proposição. Na maioria das vezes o tempo verbal utilizado é o imperativo (Descreva; Disserte; Arme e efetue; Separe; Resolva; Dê; Cite, etc), que nos fornece um importante indício da relação contida no dever: um adulto, especialista, autoridade, ordena que uma criança ou jovem, aprendente, (a)luno, realize por escrito alguma coisa que supostamente foi vivenciada na situação de ensino-aprendizagem, mas que é apresentada a todos em uma unidade de produção. Ou seja, ainda que cada um tenha experienciado a situação de ensino-aprendizagem de um modo, o dever é o mesmo, para todos.   
Há muito tempo e em muitas diferentes frentes de trabalho vimos enfrentando o problema da defasagem entre os objetivos da escola e o engajamento dos sujeitos a que a escola se destina. A fala dos dois meninos, no nosso projeto, aceitando qualquer coisa que não fosse o dever, nos fez tentar elaborar uma reflexão, ainda que arriscada porque buscará um diálogo com a obra de Bakhtin – Para uma Filosofia do Ato – na busca da compreensão do efeito amortecedor que o dever desempenha no interesse das crianças e jovens pelo conhecimento escolar. Talvez Bakhtin não se escandalizasse, pelo apreço ao jogo das palavras e dos diálogos possíveis, mas ainda assim anunciamos esse nosso fazer como uma tentativa alegórica de pensar nossa questão utilizando a formulação bakhtiniana como uma analogia, para que possamos talvez melhor pensar essa questão já meio embotada no universo escolar. Tirar o pó das explicações antigas e renovar o pensamento através da colocação da palavra em outro contexto, talvez seja de acordo com o que Brecht dizia da arte como deslocamento.
Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin dialoga com a posição kantiana sobre o dever, e apesar de se referir a este como a obrigação moral que ele discorda dever ser universal, na descrição do que o dever não é delineiam-se pistas para que possamos pensar o dever escolar. Entre as páginas 22 e 23, Bakhtin critica o dever teórico, ou o dever que antecede o ato, e afirma que ele “surge apenas na correlação da verdade (...) com nosso ato real de cognição, e esse momento de estar correlacionado é historicamente um momento único” (p. 22). Bakhtin refuta a norma moral, qualquer dever com um determinado conteúdo:
O dever é uma categoria característica de atos ou ações em processo [postuplenie] ou do ato realmente realizado (...); é uma certa atitude de consciência, cuja estrutura nós propomos desvelar fenomenologicamente. Não existem normas morais (...) mas existe um sujeito moral com uma determinada estrutura (...) e é nele que nós temos de nos apoiar: ele saberá o que está marcado pelo dever moral e quando, ou, para ser exato: pelo dever como tal. (Bakhtin, s/d, p. 23-24)

O dever criticado como categoria universal relativo a um conteúdo e como critério da verdade da ação aplica-se a nossa própria crítica do dever escolar. Também aqui no nosso caso há uma compreensão pouco explicitada de que a verdade do conhecimento e sua eficácia de ensino-aprendizagem está contida no dever. Ele já é o receptáculo a ser preenchido da verdade do saber escolar, por isso o valor que tem sua elaboração. Os estudantes, porém, principalmente os que já receberam a verdade do não-saber como rótulo e veredicto, o realizam com a passividade e superficialidade de quem não se encontra naquele lugar. O resultado é a aversão, a pena, o trabalho detestado por quem não se vê expresso nele, e apreciado por quem através dele recebe o reconhecimento da professora. Em ambos os casos, a ação do sujeito ou é passiva e desprezada, ou é obediente e aceita, ou seja, não é verdadeiramente uma ação, sequer no sentido psicológico do termo, ou como Bakhtin vai dizer: “nós não estamos mais presentes nele [no ato cognitivo] como seres humanos individualmente e responsavelmente ativos” (idem, p. 25).
Na escola, porém, após conseguirmos a adesão no negativo das crianças ao projeto, uma das duas professoras aprendentes começou o planejamento que organizamos para o primeiro dia: a leitura de uma síntese de um livro infanto-juvenil, que narrava as aventuras de dois grupos de meninos, rivais das ruas de cima e de baixo. Elaine, a professora aprendente, resumiu a história e distribuiu as cópias para os jovens. Começou lendo o resumo, mas pelo segundo parágrafo desistiu, apesar de todos procurarem seguir a leitura no papel, e continuou contando a história. O que houve foi surpreendente. Todos os jovens pararam e prestaram uma atenção ativa na história, que narrava travessuras dos meninos. Eles paravam, em determinados momentos, e comentavam, entre si e conosco, partes da narrativa. Durante quase 40 minutos aqueles jovens descritos como “desinteressados de tudo” ouviram ativamente a história narrada. A própria professora me disse jamais ter visto seus estudantes naquele nível de atenção e participação. O que houve? Difícil explicar, teorizar, o que vivemos em ato. Os rostos, as expressões, os comentários e conexões, os sorrisos e as caras de nojo, crianças, jovens e adultos viveram um momento de diálogo pelo/no texto que articulou. Irrepetível o momento, ele aconteceu. Pudemos descrever como uma experiência, mas cada um de nós ali a viveu de seu modo. Estávamos ali, vivendo de modo que Bakhtin consegue descrever: “essa relação da experiência comigo como aquele que é ativo tem um caráter sensual-valorativo e volitivo – realizador – e ao mesmo tempo ela é responsavelmente racional” (idem, p. 54).
A experiência escolar, imersa em suas crenças na universalidade dos conhecimentos e da cultura, desperdiça as experiências humanas que acontecem cotidianamente e a sua revelia. Utiliza as palavras dever e atividade de um modo enraizado em matrizes psicológicas e filosóficas que precisamos questionar. Precisamos pensar novas relações no interior das próprias palavras. Gostaríamos de pensar a possibilidade de um diálogo com o texto bakhtiniano que nos proporcionasse um lugar fértil para nós mesmos experienciarmos, como sujeitos que reinventam-se como pesquisadores-que-participam, pois ocupam “um lugar no Ser único e irrepetível. Eu, também, existo realmente no todo, e assumo a obrigação de dizer esta palavra” (idem, p. 58). Gostaríamos de dialogar essas idéias que vivemos, experienciamos – cada um de nós de modo único e singular – mas que delas podemos falar, ouvir outras histórias e juntos pensar.


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