É difícil falar de um autor desconhecido do grande público, falar de um autor regional em um evento nacional, falar de um estrangeiro em sua própria terra, um erradicado de seu próprio lar, desconhecido por pessoas que ele conhecia, desconhecido pelos próprios moradores da cidade, do estado onde nasceu, viveu e morreu. Mas então, por quê falar de alguém desconhecido? Por quê remexer essa terra seca do cerrado, do centro geodésico da América latina? Por quê reviver os mortos que viveram no silêncio, morrem no ostracismo e agora não permitir que descanse em paz? Falar de Dicke, é falar de uma parte de mim, de um Outro que me compõe, me completa, é também reconhecer-me; é falar de paixão, paixão pulsante, que sangra, que vibra a cada acorde de viola de cocho, que se expande e condensa trazendo chuva para florescer o cerrado e tornar verde a “Cidade verde”. E com sua obra, transformar novamente em mar o que hoje é um cerrado, um mar verde, imenso, repleto das culturas em que Dicke nos faz mergulhar através de suas obras. Devo advertir o leitor que são águas profundas, caudalosas, ora verde clarinho onde vemos o fundo, ora um azul petróleo, quase negro, que confunde, engana e distorce a visão. Todo leitor de Dicke deve ter plena consciência disso, é um caminho sem volta, é como o canto da sereia que enlaça, enfeitiça e nos faz ir cada fez mais fundo nesse emaranhado de palavras que conduzem a culturas cada vez mais distantes.
Nesse texto alcancei uma expectativa maior daquela que pude imaginar. Os símbolos e os sentidos que são amarrados no andamento da narrativa, traçam elementos indefinidos mediante um primeiro olhar. Posso dizer, por pequena experiência, aos marinheiros de primeira viagem, que navegar pelo mundo da palavra de Dicke é ao mesmo tempo, experimentar a tormenta e a calmaria do oceano. O naufrágio quase foi o meu fim: romper nas pedras invisíveis e traiçoeiras das águas rasas. Contudo, sobrevivi e as voltas e sucessões ao texto me fizeram navegar em um mar de proporções infinitas, um mar dickeano de multiformes planos que se chocam e se divergem abrindo novos planos, novas visões de mundo.
Voltando os olhos para a literatura contemporânea de nossa região, temos em Mato Grosso o escritor Ricardo Guilherme Dicke[3]. O autor é de certa maneira, um elemento estrangeiro em nossa própria cultura, ele retrata em suas obras o olhar do outro, o caracterizando como um fundador constituinte de nossa cultura. Ele faz uso do nosso cenário para nos mostrar estrangeiros em nossa própria terra, em nossa cultura. Alguns estudiosos de sua obra classificam sua literatura como universalizante devido a esse caráter[4].
Apesar de todo o reconhecimento intelectual (Dicke foi descoberto por Guimarães Rosa em um concurso literário, aclamado e elogiado por inúmeras personalidades) sua obra continua no ostracismo, sendo rejeitada pelo mercado. No momento de sua morte Dicke possuía inúmeros romances inéditos aguardando a publicação; no entanto, o escritor fugia dos holofotes da mídia e do olho do mercado. Em nosso contexto globalizante a literatura já se transformou em uma mercadoria, ela pode ser produzida, empacotada, distribuída como qualquer outro material, e somente para esse fim.
Na aldeia global, além das mercadorias comerciais, sob as formas antigas e atuais, empacotam-se e vendem-se as informações. Estas são fabricadas como mercadorias e comercializadas em escala mundial. As informações, os entretenimentos e as idéias são produzidos, comercializados e consumidos como mercadorias (IANNI, 2008, p.16)
A exclusão de Dicke do mercado provavelmente tem sua origem nessa questão. O sucesso de um determinado produto depende do quanto ele consegue cativar seu público, ele depende necessariamente de seu poder de aceitação. Parte da literatura contemporânea é uma espécie de fast-food literário, onde os leitores encontram uma escrita fácil, agradável e, acima de tudo, rápida: para ser apreciada sem qualquer reflexão ou introspecção, em qualquer lugar e a qualquer momento. Ao contrário, Dicke tende a construir sua literatura densa, repleta de signos de outras literaturas. Seria como reunir o mundo num livro, onde pode-se dialogar com escritores e filósofos já falecidos, mas que ainda continuam vivos no Grande Tempo.
O conto Proximidade do mar foi publicado no ano de 2002 em uma coletânea de contos organizada por Juliano Moreno e Mário Cesar Silva Leite. A história narrada é a de um homem, Beldroaldo, que demonstra a todo instante seu desejo intenso pelo mar, em conhecê-lo. É uma vontade que no decorrer da leitura se mostrará quase obsessiva.
O mar: entre azul e verde, profundo, abarcando a vista, encharcando os olhos. Onde quer que se olhe é apenas o mar, será que tanto mar tem fundo? Deve ser como uma maçã mordida: a parte que ficou no fundo, mergulhada sob as águas salgadas. Quem te fez, ó mar? Mas talvez nem o mar soubesse que o fez, sua memória quase infinita de bilhões e bilhões de séculos de tempestades e calmarias alternadas. Tanto tempo ecoando, ele não se lembraria nunca mais, sua recordação de águas imersas pastava os ecos dos milênios primevos, na sua paz de rebanho de bois espalhados entre colinas aquáticas, sobre os dias e as noites sem começo nem fim. (DICKE in: CARVALHO/ LEITE (org), 2002 p. 137)
E é aparentemente esse desejo intenso e absoluto que move sua vida pacata. Enquanto cuida da chácara da família, localizada próxima a Chapada dos Guimarães, aguarda ansiosamente a passagem do amigo caminhoneiro, o grego Manólios Vesselios, que entre as entregas de mercadorias sempre passa pela chácara para conversar com Beldroaldo.
E ele contava, narrava, explicava paciente. E Beldroaldo nunca se fadava de ouvi-lo na sua língua estropiada, ele que já conhecia tudo das histórias mitológicas. E lhe indagava como era mesmo que as ondas tombavam na areia após subir tanto e tão alto, de que cor eram. E as espumas eram mesmo aquela imensidão de como que sucessões de jardins de flores brancas no sem fim do mar?(...) O grego a tudo ouvia pacientemente, bebericando de seu copinho de água ardente, explicava e tentava fazer compreender àquele ingênuo rapaz. (DICKE in: CARVALHO/ LEITE (org), 2002, p. 123)
Entre sonhos e devaneios ele imagina como seria conhecer o mar, e o leitor tem contato com um mar de culturas, misturadas entre as linhas do conto que, em sua extensão oceânica, alcança povos e culturas transcendendo a história e o decorrer do tempo.
N’A proximidade do mar, pode-se ver um texto rico, linguisticamente multidimensional, que possui um alto grau de plurilinguismo devido ao emaranhado de vozes que se cruzam. Essas vozes, que assumem dialetos e até línguas, também dialogam entre si, criando uma ponte intercultural.
Acabada a música, o locutor começou a falar sobre a política, não parava de falar na maldita política, parecia que a política era uma torneira frouxa e desconcertada, por onde um jorro sem fim se soltava e molhava a todo mundo que escutava, porque el pacto de la Moncloa, y porque el rey Juan Carlos hizo esto e aquello, y esto y aquello y más esto y más aquello y todavia aquello y aquello Allá y después de todo esto más esto y Adolfo Suares que asignó uma comisión para redactar el gran estatuto e não sei o que mais. (DICKE, 2002, p 141)
O plurilinguismo também é parte essencial da estética do autor narrador, com ele, pode construir e modelar personagens, assim como dar limites a narrativa, e dizer na voz do outro seu próprio ponto de vista. O plurilinguismo seria uma conjunção de culturas, entrelaçadas, tecidas na malha dos signos para apresentar uma cultura já hibridizada. Os romances trazem em seu cerne a representação de um novelo de culturas, e estudá-los, mesmo que sob o risco da ficção, seria conhecer os processos culturais de uma dada época e um dado tempo. O antropólogo argentino Canclini, estudioso dos processos de hibridações, menciona que as hibridações seriam os “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. (2008, p. XIX)
A hibridação enriquece e torna a cultura um todo orgânico, que se movimenta com os processos de relações sociais e interação do homem. No decorrer da narrativa o autor preenche as lacunas entre personagem e autor com diálogos culturais, diálogos que contornam a narrativa criando zonas particulares (Bakthin,1993, p. 120). Dicke busca traçar sua narrativa trazendo o mundo nas mãos, o diálogo é a sua principal fonte, um devir que o orienta para dar alicerce a narrativa e enriquecê-la. O trecho que se segue evidencia o plurilinguismo e sua construção. Demonstra Nina Simone[5], uma norte-americana, cantando em francês com seu sotaque carregado, uma música originalmente interpretada por Edith Piaf.
Nina Simone cantando em francês com seu sotaque carregado de americana Ne me quittes pas, e o carro a oitenta quilômetros por hora e ele pensando nesses discos voadores que aparecem derrepente na frente dos carros solitários, no meio da estrada e dele saem seres estranhos e o motorista se desmaia por um foco de luz astral no corpo e é levado para viagens interplanetárias e volta dizendo que teve origem em outras estrelas de outras galáxias e de outros sistemas solares. (Dicke, 2002, p. 149)
Dicke constrói um texto fluido e disforme que lembra o mar e sua mobilidade, sua imensidão azul sem forma, que une os continentes por milênios. Tal proximidade com o mar poderia ser uma menção aos processos globalizantes que buscam cortar o espaço e evidenciar o tempo, reduzindo-o a instante.
Esse aspecto dialógico torna a literatura de Dicke uma literatura liquida, que envolve e carrega signos históricos e culturais cadenciados pelo dialogo e pelo Grande Tempo. E é assim, por meio do diálogo que Dicke constrói uma narrativa ondeada, cheia de sentidos, de outras culturas, com “mundos temporais” distantes. Com o diálogo ele rompe com o espaço utilizando o poder do tempo para chamar Homero na Grécia do século VIII a.C, Baudelaire na França do século XIX e até Nara Leão do Brasil no final do século XX. Evoca demais ícones da arte enriquecendo e transgredindo o mero narrar, aliás, talvez nos mostra que o narrar vai além de um apanhado de palavras, de um ato isolado no tempo, que pode quebrar as leis da física e nos fazer reviver períodos da história sem sair do lugar, uma viagem pelo mundo sem sair de si. O cenário de seus enredos é via de regra o estado de Mato Grosso, todo o invólucro de sua obra tem como pano de fundo nosso cerrado, nossas adversidades, enfim nosso Mato Grosso, porém, em Dicke o regional vai além, a linha divisória de seu cenário é Mato Grosso, é como se ele desenhasse no chão com giz os traços de Mato Grosso e colocasse dentro desse desenho não apenas elementos característicos da nossa cultura, mas também coloca o mundo todo dentro desse desenho. É como se nosso estado fosse um imã gigante que atraísse as mais variadas culturas para dentro de si. É isso o que Dicke faz com o regional em suas obras, é justamente esse diálogo intenso, ininterrupto e cheio de conflitos. Esse diálogo dentro da obra ultrapassa o tempo, uma volta ao passado em milhões de anos, quando o território geográfico do estado ainda era um oceano. E da mesma forma que o submarino Nautilus, comandado pelo capitão Nemo e sua tripulação, que navegou 20 mil léguas pelo oceano, Dicke navega o mundo para trazê-lo até Mato Grosso com suas palavras.
De qualquer forma o que fica é a certeza do constante movimento presente na obra de Dicke, constante movimento que enriquece dando a ela o sabor da terra, os trejeitos mato-grossenses. Um movimento que somente Bakhtin e o Círculo podem dar sentido. Por essa razão, quero lembrar que este texto não é uma análise encerrada em si mesma, é mais uma tentativa, uma busca de ler os signos da literalidade, assim como na vida buscamos ler os signos uns dos outros. É nesse sentido que a vida e arte se misturam, aqui fica minha responsabilidade, meu ato responsivo.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. 4ª edição – São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
DICKE, Ricardo Guilherme. Cerimônias do Esquecimento. Cuiabá, Editora da UFMT, 1995.
_______. A proximidade com o mar, in: CARVALHO, J. M. K. / LEITE, M. C. S. Na margem esquerda do rio: contos de fim de século, São Paulo: Via Lettera, 2002
IANNI, Octavio. Teorias da Globalização. 15ª edição. Rio de Janeiro, Brasileira, 2008.
VOLOCHINONOV, V./BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9ª Ed, São Paulo, Hucitec, 1999.
[1] RELENDO BAKHTIN, mais conhecido como REBAK, é o nome dado ao Grupo de Pesquisa e Estudos sobre a obra do Círculo de Bakhtin. O grupo é coordenado pela profª. Dra. Simone de Jesus Padilha.
[2] Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade Federal de Mato Grosso. Aluna do programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO) pela mesma instituição de ensino.
[3] Dicke nasceu em 1936, em Raizama, município de Chapada dos Guimarães. Bacharelou-se e licenciou-se em Filosofia. Fez especialização em "Heidegger e o Problema do Absoluto" e "Fenomenologia" de Merleau Ponty. Trabalhou como professor, tradutor, copy-desk e jornalista para várias editoras e jornais de grande circulação no Rio de Janeiro e Cuiabá. Faleceu em 2008 na cidade de Cuiabá. Dentre suas obras destacam-se: Deus de Caim; Como o Silêncio (1968); Caieira (1978); Madona dos Páramos (1981); Último Horizonte (1988); A Chave do Abismo (1989); Cerimônias do Esquecimento (1995); O Salário dos Poetas (2000); Rio Abaixo dos Vaqueiros (2000); Toada do Esquecido & Sinfonia Eqüestre (2006).
[4] Destaco aqui o nome da pesquisadora Gilvone Furtado Miguel (UNEMAT).
[5] Sob o nome artístico de Nina Simone, Eunice Kathleen Waymon (1933-2003) foi cantora, compositora e pianista norte americana. Seu estilo variava entre o gospel, soul, folk, jazz e blues. Por ser mulher e negra foi perseguida, lutou contra o racismo atuando ao lado de nomes como Martin Luther King., suas músicas tornaram-se hinos da causa negra. Em 1997 fez uma apresentação ao lado de Maria Bethania.
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