terça-feira, 21 de setembro de 2010

BAKHTIN e a LINGUÍSTICA TEXTUAL

                                                                                  Lícia Heine
                                                                                  Universidade Federal da Bahia

O objetivo deste trabalho é mostrar que a Linguística Textual (LT), a partir dos meados da década de 90 do século XX, em especial no Brasil, ampliou o seu escopo teórico, ao considerar também algumas das reflexões do grande filósofo russo Bakhtin, dentre as quais mencionam-se: a enunciação, os gêneros do discurso e o dialogismo. Ressalta-se que, embora a literatura vigente da LT tenha de fato incorporado essas concepções inerentes ao tentacular lastro bakhtiniano, as pesquisas hodiernas da LT parecem não apresentar implicações resultantes da   presença de Bakhtin na LT, que, direta ou indiretamente, vêm imprimindo uma ressignificação substantiva nos seus pilares básicos, a ponto de (parecer) dar respaldo teórico para o surgimento de uma quarta fase da Linguística Textual.  Pretende-se aqui discorrer, de forma lacônica, sobre essa provável fase da LT, sob a preponderante ótica  bakhtiniana, em especial.
            A LT surgiu, na Alemanha, nos anos sessenta do século XX, momento em que o paradigma formal da linguagem, vigente naquela época, centrado na análise exclusivamente interna ao sistema lingüístico, deixava de responder adequadamente a vários problemas que se foram instaurando na linguística por uma plêiade de pesquisadores de diferentes linhas de pesquisa. Dentre esses, destacam-se os questionamentos dos neófitos da LT que discutiam o pendor da linguística formal ao ater-se, dentre outras, ao estudo de morfemas {menin - o}, {am – a – va - mos}, fonemas [m, e, n, i, n, a] e frases (centradas no contexto linguístico stricto sensu), arguindo que a linguística devia voltar-se para o estudo do texto. Na tradição, a LT passou por três fases: a análise transfrástica, a construção de gramáticas de textos e a construção das teorias textuais. Contudo, as pesquisas do final do séc. XX e princípios do séc. XXI vêm apontando um quarto momento, como se verá mais adiante.
            Nos dois primeiros momentos, a análise transfrástica e a construção de gramáticas de texto,  a preocupação inicial da LT era apenas de descrever os fenômenos sintático-semânticos que ocorriam entre as seqüências de frásticas” (KOCH, 2003, p. 3). Daí, o texto,  seu objeto de estudo, ter sido concebido apenas a partir das tessituras frásticas correferenciais, estabelecidas por diferentes elos coesivos textuais (anáforas, elipses, repetições). Trata-se, pois, de “um sistema uniforme, estável e abstrato” ao estender os sistemas já construídos pela “lingüística predominante” (BEAUGRANDE, 1997, p. 259-260).  De acordo com Koch (2003), tem-se aí um sujeito assujeitado pelo sistema, cujo  foco de análise recai exclusivamente ao texto enquanto código, apenas, excluindo, destarte, o indivíduo e todo conhecimento a ele inerente. No caso de uma interpretação textual, por exemplo, o sentido é visto como algo que provém da estrutura, isto é, pela imanência do sistema linguístico.
Das gramáticas de texto, segue-se à fase Construção das teorias textuais, o seu terceiro momento, em que o contexto pragmático ganha relevância para a compreensão do texto. Quando se fala em pragmática, faz-se mister informar, ainda que de forma  lacônica, que ela surge a partir de inquirições filosóficas, instauradas na transição entre os séculos XIX e XX, momento em que diferentes ramos da filosofia e correntes do pensamento debruçaram-se a questões da linguagem, estabelecendo, pois, investigações filosóficas que se distanciavam da ortodoxa filosofia clássica, voltada para reflexões abstratas, como a explicação da essência do mundo, da realidade, do ser, do conhecimento, dentre outros (MARCONDES, 2004). Esse movimento é comumente denominado de filosofia Analítica que, no século XX, floresceu por meio de duas vertentes, dentre as quais a Escola de Oxford, que se instaurou com a tese de que era necessário examinar a linguagem a partir do uso, ou seja, estudar a linguagem ordinária, a linguagem comum do dia-a-dia, a linguagem em seu processo de comunicação. Caracteriza-se sobremodo por contemplar a seguinte tese: “o significado de uma expressão (palavra, frase) é “ o seu uso ou aplicação na linguagem”. […] “As palavras só adquirem significado no fluxo da vida; o signo, considerado separadamente de suas aplicações, parece morto, sendo no uso que ele  ganha seu sopro vital” (WITTGENSTEIN apud COSTA, 2007, p. 38).
A pragmática traz em seu bojo “a concepção de que a linguagem é uma atividade construída pelos/as interlocutores/as, ou seja, é impossível discutir linguagem sem considerar o ato de linguagem, o ato de estar falando de si” (AUSTIN, 1990, apud PINTO, 2006, p. 5).  Alicerçado nos princípios pragmáticos, o texto “passa a ser estudado dentro do seu contexto de produção e a ser compreendido não mais como um produto acabado, mas como um processo, resultado de operações comunicativas e processos lingüísticos em situações sociocomunicativas” (BENTES, 2001, p. 247). Ele é opaco e não transparente semanticamente, ou seja, o sentido não está nele, visto que “a interpretação de um enunciado não pode levar em consideração apenas a informação lingüística” (MAINGUENEAU; CHAREAUDEAU, 2004, p. 394). Registra-se que, enquanto  entidade processual, a concepção de texto diz respeito, tanto à língua falada como à língua escrita.
            Quanto   ao   sujeito,   trata-se   do  sujeito  pragmático,  que  se apóia, evidentemente, nas
concepções de linguagem inerentes à própria pragmática, na qual a linguagem é vista como “uma
prática social concreta e também complexa, pois, enquanto tal, envolve elementos do contexto de
uso, convenções de uso e de  intenções  do  falante” (AUSTIN, 1962). Esse falante — o  sujeito
pragmático, marcado pela intencionalidade, emerge das suas manobras, estratégias discursivas que
ele mobiliza para conseguir seus intentos comunicativos (BRANDÃO, 2001, p. 60). Por outras 
palavras,  emerge  da   enunciação,  consoante  Benveniste   (1989, p. 82),   entendida    como   o  
colocar  em  funcionamento a língua por um ato individual de utilização”. É, pois, um sujeito
individual, de vontade própria, que visa,  de  algum  modo,  agir conscientemente  sobre  o  seu
interlocutor na instância discursiva, defendendo a tese de que ele se processa a partir da intenção do
falante, um ser consciente de suas ações, livre para fazer suas próprias escolhas lingüísticas e
sociais, capaz de discernir por si próprio e de perceber que as questões contextuais são importantes.
Nas palavras de Possenti (2004, p. 363 ), “a pragmática seria uma forma de solucionar a questão do
sentido invocando a intenção do falante”.
A transição entre os séculos XX e XXI aponta avanços na Linguística Textual que dão sinais de se tratar de um novo momento, configurando a possibilidade do surgimento do seu quarto momento, depreendido, inclusive, por Koch (2004), apesar de ela não tecer considerações pontuais sobre o surgimento dessa nova etapa da LT. As pegadas que sustentam a caminhada da LT rumo a um novo momento ligam-se, em especial, às seguintes reflexões: a consideração de aspectos da obra do filósofo Bakhtin (2003), a exemplo do dialogismo, dos gêneros do discurso, da concepção de enunciação, do conceito do sujeito social, a noção de referenciação (MONDADA, 1995),  etc. Para o momento, focalizar-se-ão algumas das ideias de Bakhtin.
O arcabouço teórico bakhtiniano conduz à substituição da noção de sujeito pragmático por uma outra concepção – a de sujeito social, que se apresenta constituído  de duas faces: uma face social e uma individual. Para chegar-se à referida concepção, pautou-se de início, no seguinte excerto textual:

                        Todos  os  diversos  campos  da   atividade  humana estão ligados ao uso da linguagem.                            Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes              quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de              uma língua. O emprego da língua efetiva-se em forma de enunciados (orais e escritos),                                    concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade                              humana (BAKHTIN, 2003, p. 261).


Bakhtin (2003) deixa claro o liame entre o uso da linguagem e os diversos campos da atividade humana, que gera conseqüentemente as heteróclitas formas lingüísticas, visto que elas emergem do indivíduo inserido nos campos da atividade humana. E esse uso realiza-se através de enunciados que, nas palavras do referido filósofo, são concretos e únicos, haja vista serem processados durante o uso linguístico exatamente por um sujeito em um determinado momento da instância discursiva, mas, por outro lado, “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, ou seja, os seus gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 261).
Portanto, o sujeito social possui uma face individual[1] e uma face social. Esta última refere-se à entidade estável de cada campo da atividade humana, o que já registra a sua posição sócio-histórica inerente a todo e qualquer enunciado; a face individual, por tratar-se de um enunciado particular, proferido por um único ser, expressa o estilo de quem o produz, depreendido sobretudo através de escolhas léxico-gramaticais. O enunciado é, pois,  ideológico,  entendendo a ideologia  como “as crenças de um grupo e seus membros” (VAN DIJK 2008, p. 14-15).
Portanto, o sujeito social, enquanto entidade ideológica, não é autônomo, porque é eminentemente social, não sendo pois livre, visto que “usar a linguagem é sempre engajar-se em alguma ação [...]. Essas ações não são simples realizações autônomas de sujeitos livres e iguais” (KOCH, 2004, p. 25).  Mas isso não significa que ele passe a ser um sujeito inconsciente, a ponto de negar-se a si próprio. 
            A linguagem é vista como atividade dialógica, constituída de ato singular, irrepetível, concretamente situado, que emerge de uma atitude  responsiva, ou seja, não se trata de um sujeito passivo, mas de sujeito que é compelido a agir face ao contexto  axiológico, carregado de valores  ideológicos. No Círculo de Bakhtin, a palavra “Ideologia” é usada para o universo da chamada cultura imaterial, que engloba a arte, a ciência, a filosofia, a religião, a ética, a política”, dentre outras (FARACO, 2006, p. 46). Ainda consoante o referido linguista, “não tem, pois, nenhum sentido restrito e negativo. Será, portanto, inadequado lê-lo com o sentido de “mascaramento do real”, comum em algumas vertentes marxistas”  (FARACO, 2006, p. 46).
            Para finalizar, ressalta-se que o cadinho que vem impulsionado essas inquirições que evidenciam um avanço singular da Linguística Textual em direção a um quarto momento, foi a presença do filósofo Bakhtin, através de suas pesquisas voltadas sobremaneira para a realidade discursiva dos seres humanos, tendo como alicerce teórico as reflexões sócio-históricas que, por sua vez, poderão vir a nortear uma ampliação significativa na compreensão da coerência textual, haja vista a necessidade de considerar, como um dos fatores essenciais à interpretação  de um texto, a ideologia — “as crenças de um grupo e seus membros” (VAN DIJK 2008, p. 14-15).

REFERÊNCIAS

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do russo Paulo Bezerra; introdução à edição francesa Tzetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins
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BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Tradução Eduardo Guimarães et al. Campinas, SP: Pontes, 1989.
BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Da língua ao discurso, do homogêneo ao heterogêneo. In: BRAIT, Beth (Org.). Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. São Paulo: FAPESP, 2001. p. 59-69.
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[1] Bakhtin (2003) reconhece o traço individual presente em um enunciado; contudo, ressalta que há gêneros propícios e não propícios a esse traço. De qualquer forma, ele reconhece sim a presença da individualidade nos gêneros do discurso.

Um comentário:

  1. Muito bom, ajudou muito no esclarecimento da presença de Bakhtin na LT.

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