terça-feira, 21 de setembro de 2010

O LEITOR E ATO RESPONSÁVEL EM RAYUELA


Weslei Roberto Cândido[1]

Rayuela, de Julio Cortázar é um dos livros mais importantes da literatura Hispano-americana. Sua inovadora proposta de dupla leitura convida o leitor a participara da construção de sentidos dentro do romance. Na apenas o escritor é responsável pelo conteúdo veiculado, mas o receptor também, pois deixa de ocupar a mera posição passiva de receber para ser um elemento ativo na arquitetura do texto literário.
Dentro deste romance, o ato de pensar a obra artística, de fazer arte não fica relegado ao autor isoladamente, este divide sua responsabilidade com o leitor, que passa a ocupar um papel ativo e, portanto, torna-se responsável pelos significados construídos a cada capítulo. As pistas deixadas pelo autor, as citações que surgem em todas as partes de nada servem se o leitor não as reconhece e não as coloca em diálogo com a tradição literária.
A busca pela verdade, pelo “Absoluto”, que empreende o personagem Horacio Oliveira é a meta do leitor também. O narrador explicita, no capítulo 79, o tipo de leitor que espera, e este desejo implica um:

Lector cómplice, camarada de camino. Simultaneizarlo, puesto que la lectura abolirá el tiempo del lector y lo trasladará al del autor. Así el lector podría llegar a ser copartícipe y copadeciente de la experiencia por la que pasa el novelista en el mismo momento y en la misma forma(CORTÁZAR, 1984, p. 448).

            Assim, a busca pela verdade, pelo compromisso de pensar não só o conteúdo, mas o próprio fazer literário é dividido entre o ”novelista” e “lector cómplice”, o companheiro de caminho que divide com o romancista a responsabilidade daquilo que é dito. Em outras palavras o leitor fica sem um álibi, não é dado o direito de recusar ao receptor, pois ele como cúmplice se tornou tão culpado pela obra quanto o autor. A responsabilidade pelo significado do texto literário está dividida, uma vez que o material artístico é construído pelo romancista e pelo “cómplice”.
            Desta maneira, a leitura deixa de ser uma mera ação, uma atitude de devaneio guiada pelas mãos do romancista e o leitor é chamado a participar, a praticar o ato de ler e, a partir do momento que a leitura passa ao âmbito do “ato”, da consciência absoluta e responsável daquilo que se lê, o receptor passa a autor também, portanto, será responsabilizado tanto quanto o romancista.
            Marília Amorim ao pensar “Para uma filosofia do ato”, de Bakhtin, afirma que: “O ato é um gesto ético no qual o sujeito se revela e se arrisca por inteiro. Pode-se mesmo dizer que ele é constitutivo de integridade. O sujeito se responsabiliza inteiramente pelo pensamento. (2009, p. 23).
            É este tipo de leitor que Cortázar defende para seu livro. Um sujeito que se responsabilize por completo pela leitura que faz, sendo ético o suficiente para assumir os significados que constrói ao longo do romance. O leitor é convocado a arquitetar o texto literário arriscando-se por inteiro, de forma a não abandonar o autor no meio do caminho, aí a imagem do camarada de viagem, com quem se pode dialogar e trocar ideias pelo caminho, cada um responsabilizando-se pelo que diz e assumindo eticamente seu pensamento. O sujeito é constrangido a pensar, a assinar junto com o autor o romance que se escreve.
            Como afirma Cortázar: “solo vale la materia en gestación, la inmediatez vivencial” (1984, p. 449). O romancista não espera compor a obra toda para depois ser compreendido, o entendimento só é possível no ato de “coparticipación” entre leitor e autor, ambos são convidados a pensar, a assumir a postura ética pelo texto que se constrói.
            Citando novamente Amorim(2009): “Ninguém mais pode pensar aquilo que penso. Ninguém mais pode prestar contas de minha posição e realizá-la, por isso não existe nenhum álibi para que eu não pense e não assuma o que penso.” (p.24). Exige-se, assim, um sujeito consciente, capaz de realizar o ato de pensar seu próprio pensamento, que se sinta constrangido a pensar, que não fique na ausência de sentido, mas que assuma seu papel de intérprete da realidade que o cerca, fazendo-o de maneira ética, compromissado com a verdade e com o pensar esta verdade.
            O leitor em Rayuela desde o início é provocado a tomar uma atitude, a assumir uma posição, a ler de uma determinada maneira ou não. A proposta de uma dupla leitura, embora haja diversas outras, como alerta o próprio autor, convoca o leitor a optar, coloca-o na posição incômoda de se alienar ou de ser crítico e caminhar com o autor. Quem comprou o livro é espremido, jogado contra a parede, quase obrigado a assumir sua responsabilidade quanto ao jogo:
El primero se deja leer en la forma corriente, y termina en el capítulo 56, al pie del cual hay tres vistozas estrellitas que equivalen a la palabra Fin. Por consiguiente, el lector prescindirá sin remordimiento de lo que sigue.
El segundo se deja leer empezando por el capítulo 73 y siguiendo luego el orden que se indica al pie de cada capítulo. (CORTÁZAR, p.4, 1984).

            Assim, logo no início do romance, antes mesmo de iniciar sua leitura o leitor é obrigado a optar por um dos dois tipos de caminho, sabendo pelo autor que se opta pela forma tradicional, corrente, na qual assume uma atitude passiva de apenas receber, sentirá falta da parte que não leu. Já por outro lado, se escolher o caminho sugerido pelo romancista, terá de ser o companheiro de viagem, pensar junto com o autor toda a construção do romance.
            Cortázar supõe que dois tipos de leitores podem adquirir seu romance: os tradicionais, “lectores hembras”, acostumados a uma leitura linear, corrente, sem grandes sobressaltos e os “cómplices”, aqueles que aceitarão a proposta do autor e assumirão um papel ativo de leitura, buscando significados, jogando amarelinha, levando em conta que no jogo se pode perder ou ganhar, mas deve-se estar consciente de que se entrou no jogo.
            No primeiro caso, o leitor está no campo da ação, compra o livro e o lê correntemente, tudo o que é veiculado no romance é de responsabilidade do autor, assumindo a mera postura de receptor, escondendo-se até mesmo atrás da leitura, não se responsabilizando por ela, delegando ao romancista toda culpa pelos significados do texto literário. Este tipo de leitor não quer responsabilidade, age quase inconscientemente, toma o livro e o lê de forma mecânica, quase por distração, como fuga do real, para não ter necessidade de pensar.
            Já no segundo caso, o leitor é “desplazado” de seu lugar comum. É mobilizado a ler, a participar, a construir a trama junto com o romancista. O leitor-autor é chamado à necessidade de pensar, de organizar suas ideias, de caminhar ao lado do autor ou não, de negá-lo ou assumi-lo como camarada de viagem. De certa maneira, cria-se ou se estimula uma necessidade ética no leitor em pensar a obra literária com sua também.
            Estabelece-se, deste modo, uma relação entre leitor e autor, assumindo a necessidade de que os dois se imbriquem e se impliquem na construção do texto literário. A presença do Outro é constante, nem autor nem leitor se constroem em suas cômodas posições estanques, ambos são convidados a trocar de papéis constantemente. E como num diálogo, os dois assinam o resultado do ato de pensar. A busca pelo “Absoluto” não é apenas de Horacio Oliveira, mas também do leitor-autor, que se tornou cúmplice, portanto, culpado da obra de arte que ali se erige.
            Mesmo quando não é avisado, o leitor é pressionado a participar do romance em Rayuela. O capítulo 34 é um ótimo exemplo desta postura do autor, que exige de seu cúmplice uma participação total. Nesta parte do romance, o leitor é obrigado a ler, a princípio, o mesmo capítulo duas vezes, pois os períodos estão organizados em forma de amarelinha. Lê-se a primeira linha, pula-se a segunda e continua na terceira e assim sucessivamente; no entanto, ao chegar ao final, o leitor percebe que ficaram inúmeras linhas sem ler e ao voltar, descobre nas entrelinhas, literalmente, uma teoria sobre o próprio romance.
            Cortázar, numa atitude pós-moderna, assume o romance como romance, ou seja, deliberadamente apresenta seu texto como uma produção artística que se constrói a cada capítulo e a cada um se revela como obra de arte, tornando o ato artístico arte em si mesmo. Não há a preocupação em ocultar a representação da realidade, mas sim de mostrar os caminhos desta representatividade, colocando na boca de Horacio Oliveira considerações que torna seus pensamentos em ato, pois o personagem o tempo todo está refletindo sobre suas atitudes e relações que estabelece com seus amigos e companheira Maga.
            Linda Hutcheon em Poética do Pós-Modernismo afirma que: “muitas vezes as convenções fictícias ou ilusionistas da arte são reveladas com o objetivo de desafiar as instituições nas quais encontram abrigo – e sentido”. (p. 26, 1991).
            Ora, assumir o romance como construção artística e sua forma como convenção literária, desafia não só as instituições a ver determinado texto  como romance, como também desafia o leitor a participar desta construção; esse já não é mais inocente, não pode mais ver o romance como mera ilusão, mas deve trabalhar para arquitetar este efeito estético.
            O pós-modernismo conscientiza o indivíduo de poder do discurso, deste como constructo, portanto, passível de ser questionado ou ser reconstruído. Se o sujeito moderno vive a angústia existencial, cujo ser perder as bases das sociedades pré-modernas, nas quais os sujeitos estavam pré-determinados, nem havia espaço para o livre arbítrio , o sujeito pós-moderno foi além, concebeu o mundo como espaço em permanente construção e que precisa ser revisto em todas suas bases tradicionais, não negando-as, mas re-significando-as a cada ato discursivo.
            Em Rayuela, Cortázar não abandona a forma romance, mas a re-significa, dialogando com o romance tradicional e propondo um novo modo de leitura e exigindo um novo tipo de leitor, consciente de seu papel ativo na construção do próprio gênero romanesco. Exige-se do leitor uma atitude consciente, quase que seja um co-autor com quem é possível estabelecer um diálogo por meio de experiências de leitura do leitor e do romancista, criando assim um campo onde inúmeras vozes se completam e se embatem, por meio de citações, intertextualidades, paródias de forma tradicionais dos romances.
            Deste modo, o leitor é obrigado a praticar o ato da leitura, o que pressupõe, dentro da teoria bakhtiniana, uma responsabilidade de sua fala, a assinatura daquilo que se pensa, um fazer ético compromissado com a verdade, que no caso de Rayuela implica o personagem Horacio Oliveira e o leitor na mesma busca pelo Absoluto.
            Por isso, Cortázar exclui o “lector-hembra”, aquele que lê inconscientemente, que está mais no campo da ação, que pratica mecanicamente e quase de forma servil uma leitura ditada pelo autor ou simplesmente não lê, abandonando o livro no meio do caminho: “[...] que por lo demás no pasará de las primeras páginas, rudamente perdido y escandalizado, maldiciendo lo que le costó el libro[...]” (1984, p. 447).
            A necessidade ou a necessitância de que fala Marília Amorim em pensar, em ativar o ser como um sujeito consciente de suas atitudes, que para ela ao analisar Bakhtin, está associado à “impossibilidade de viver na ausência de sentido”. p. 34, surge o  tempo todo em Rayuela, colocando autor e “lector cómplice” na obrigação de assumir a responsabilidade por aquilo que falam: “No, viejo, eso se hace bien del otro lado del mar, que no conocés. Hace rato que no me acuesto con las palabras. Las sigo usando, como vos y como todos, pero las cepillo muchísimo antes de ponérmelas.” (CORTÁZAR, 1984, p. 115).
            Encerro, assim, o texto em primeira pessoa, assumindo a palavra, não deixando espaço para o álibi, assinando as palavras de que me apropriei ao longo deste texto. Deixo, portanto, a citação acima e o desafio que ela propõe como uma conclusão momentânea, inacabada. Assumo aqui, as palavras de Cortázar e as faço minhas, por citação, no mesmo desafio proposto pelo autor de que nós não nos deitemos com as palavras, mas que sigamos usando-nas como você, como eu, como nós, mas que as esfreguemos, lustremos bem antes de colocá-las. Nós somos as palavras e existimos enquanto emissores conscientes delas.

REFERÊNCIAS

BRAIT, Beth.(org.) Bakhtin Dialogismo e Polifonia.  São Paulo: Contexto, 2009.
CORTÁZAR, Julio. Rayuela. 6 ed. Barcelona: Bruguera Editorial, 1984.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. História, teoria e ficção. Tradução:  Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.


           







[1] Weslei Roberto Cândido é Doutorando em Letras pela Unesp de Assis e professor do IFSP – Campus Sertãozinho. 

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