terça-feira, 21 de setembro de 2010

Letramentos para a vida: ler e escrever como atitude ética e estética


José Sena Filho
Mara Rodrigues Tavares


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.
Mario de Sá carneiro


Ao tratar das variadas esferas da atividade humana, como espaço central de onde advêm os gêneros do discurso, os textos e a própria construção da expressividade, Bakhtin estabelece um conjunto complexo e rico de relações que fundem os textos, nas suas diversas materialidades e constituições sígnicas, com a vida. A vida, enquanto evento único, processo inacabado e inacabável de experimentar o mundo, de reconstrução do eu na atividade ética frente ao outro, dispõe diante dos sujeitos uma espécie de liberdade, utópica, mas sempre impregnada de um universo de possíveis.
Foi a partir da compreensão de que a linguagem é um fenômeno implicado nas atividades cotidianas, do qual participam seres humanos concretos, que os estudos sobre os usos e as funções da leitura e da escrita, ou seja, os estudos sobre letramento ampliaram sua área de abrangência, nos autorizando falar em “letramentos sociais”.
Nessa atmosfera, ler e escrever podem ser compreendidos como práticas sociais que marcam, a um só golpe, dois aspectos que perpassam nossas ações de sujeitos leitores no mundo: nossa expressividade e a nossa apreciação fenomenológica, valorativa, sobre as coisas no mundo. No que toca a questão da expressividade, seu fundamento está nas relações de outridade, os vários outros que singularizam a existência do ser. Já no que concerne a apreciação fenomenológica, há sempre um processo de olhar sobre algo que passa da experiência sensível imediata à apreciação valorativa contextualizada.
 Tais processos podem ser percebidos tanto na ação individual e particular de quem lê ou escreve, do sujeito leitor ou escritor como um aprendente em situações concretas da vida, quanto no processo de ensino de leitura e de escrita, o que envolverá mais de um sujeito concreto. É no cerne desse processo que a atitude ética, de seres respondentes, frente a outros, pode ser identificada na sua relação de juízo de gosto e de valoração ideológica. A possível questão estética aqui implicada está no ato, na pratica do ser frente ao outro, unido a resposta do outro frente à prática que a ele se apresenta. Dessa interação, produzir textos, orais, escritos, verbais, não verbais, podem efetivar essa percepção estética.
Abre-se assim para a discussão a relação entre textos produzidos e as experiências estéticas vividas. Tendo em vista que cada comunidade tem seus próprios modos de letramentos, conhecer a orientação de letramento do grupo social sobre o qual se desenvolve uma determinada atividade, para então se proceder a uma intervenção, em termos de ensino, se faz necessária, e é nesse âmbito que o ético e o estético poderão ser compreendidos, investigados.
Nesse sentido, a concepção enunciativa insurge como uma possibilidade de focar a linguagem como produção expressiva e cultural, que caracteriza o individual como fruto do social, apresentando o mundo e os discursos proferidos sob uma perspectiva dialógica e dialética. Com isso, torna-se possível alcançar objetivos centrados na relação individual e mundo cultural; nas práticas de leitura e escrita pautadas em valores estéticos e éticos; na teoria associada à realidade vivida.
É sob esses signos dos éticos e dos estéticos que se diz sobre a construção da arquitetônica do humano, ceifando em uma de suas expressões sobre o mundo: a escrita e a leitura. Uma sendo caminho para outra, vieses de sentidos para dar sentido ao mundo, para dar sentido ao homem. As leituras do mundo. Leituras dos verbais, leituras das imagens, composições que permitem ao homem se situar enquanto sujeito, permitem, nesse processo de apreensão do mundo, a inscrição dos atos teóricos, cognitivos, práticos e estéticos entre outros.
Nessa condição humana de significar o mundo, de experienciá-lo, é que se instaura o processo de como agir sobre ele. Cria-se, assim, de uma relação intensa e fluida de conexão entre o geral e o particular, o individual e o coletivo, na concretude social-histórica dos fenômenos cotidianos, das “áureas” perdidas quando representadas, a possibilidade da escrita de uma realidade já posta, para imagem já produzida, para o filme rebobinado, para uma composição de eventos únicos e irrepetíveis, que pela dinâmica e necessidade de fixa-los são ressurgidos e lançados nos arquivos humanos de nossas memórias, de nossos gêneros, tipos, estruturas, matrizes.
O home faber, fabricante de si, mas cuja fabrica é senão o espaço social de sua criação, fala de um agir, de um forjar-se, de uma experiência. Procura nas sensações, unir, instaurar uma conectividade com o mundo, buscando em suas “coisas concretas” os sentidos da existência, nas leituras dos signos – oráculos contemporâneos de suas próprias criações. Passa, assim, a busca incessante de ser um “perfomer”, um Homo ludens, cuja vivência, sensações, experiências está para além das coisas materiais.
   A partir dessa reflexão coloca-se como ponto de partida para a discussão, como a atitude ética e a atitude estética podem ser compreendidas nesse processo concreto de leitura e de escrita? Se a ética está baseada na atitude responsiva e responsável, como a estética enquanto cruzamento do sensível e do valorativo se localiza no campo fluídico do ato de aprender?


Leituras de Referencia

BAKHTIN, M. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: contexto, 2005.

FLUSSER, V. O mundo Codificado - por uma filosofia do design e da comunicação. Org.: Rafael Cardoso, Trad.:Raquel Abi-Sâmara.São Paulo: Cosac Naify, 2007.

KLEIMAN, A. (Org.) Os significados do Letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2003.

MOITA LOPES, L. P. (org). Por uma lingüística aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.






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