INTRODUÇÃO
A teórica e educadora italiana Maria Montessori (1966) e o cientista social Frederick Elkin (1968) concordam em um ponto: o ser humano em eu complexo social, histórico e lingüístico não é um ser acabado, pronto. É alguém em constantes mutações, um sujeito em trânsito. Nesse sentido, o educar se configura como um ato de troca de informações, não só do educador para o educando, mas também do educando para o educador, do educando para os colegas de sala de aula e vice-versa; tudo, claro, sempre em simultâneo, em um processo interacional construído pelos atores envolvidos no contexto.
Dessa forma e conforme coloca Maria Montessori, o comportamento social das crianças se desenvolveria no convívio entre si e junto à figura do educador em sala de aula. Assim, elas teriam possibilidade de trocar experiências e, desta forma, serem construtoras de si mesmas. Contudo, para que isso seja possível, segundo a teórica, um método educativo deveria englobar quatro pontos fundamentais: o ambiente da sala de aula, a criança, material didático e o professor. Montessori (1965) não acreditava que a socialização pudesse ocorrer de uma maneira formal e impositiva: os alunos sentados um ao lado do outro, em sistemas de fileiras, escutando o professor falar à frente e principalmente com a divisão das crianças por sexo e séries com idades iguais.
A partir deste pensamento de Montessori, pode-se afirmar que, a sala de aula, sem dúvida alguma, se apresenta como um dos mais importantes espaços de socialização para o ser humano, tal como na fala de Ferreira (2009), quando diz que “a sala de aula configura-se como um espaço de troca de experiências entre docentes e discentes” e que, geralmente, “vem a ser o primeiro lugar de socialização da criança”.
Nesse espaço plural que é a escola, em especial a sala de aula, as relações de gênero entre as crianças da Educação Infantil são estabelecidas, e assim “...podemos nos deparar com um ambiente prazeroso ou hostil, por exemplo”, ou “um ambiente acolhedor e ao mesmo tempo instigante que tem uma relevância ímpar no processo de aprendizagem” e também de compreensão das diferenças existentes entre os indivíduos conforme Macedo dos Santos (2009).
Ao pensar sobre estas afirmações quanto ao que representa a escola no processo de socialização da criança por meio das relações de gênero fez-se necessário colocar em discussão o conceito de socialização e de como nele se faz presente a questão das relações de gênero no âmbito do discurso.
Quando se trabalha com linguagem e sua conseqüente interpretação, trabalhamos com discurso e uma entidade capaz de encerrar e veicular sentidos por si mesma, de expressar o pensamento dos sujeitos envolvidos no processo. Na linguagem, na perspectiva do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), está a presença do ser, tendo o ser humano, em seu próprio tempo e espaço, o único significado autêntico do ser.
Ou seja, por meio da linguagem, característica essa, intrínseca ao ser humano e pela qual se fundamenta, o ser humano sustenta e trava suas relações sociais em um dado tempo histórico definido
MAS AFINAL, O QUE É SOCIALIZAÇÃO?
Elkin (1968, p.14) conceitua socialização como “[...] o processo pelo qual alguém aprende os modos duma determinada sociedade ou grupo social a fim de que possa funcionar dentro dele”. Com isso, ele suscita a hipótese de que para que o sujeito esteja socializado, ele necessita estar inserido em um
ambiente que lhe seja familiar e a fim de que não lhe pareça estranho e sim, comum, em outras palavras, fazer parte de Comunidades de Prática (CoP), que, de acordo com McDermott (1999, p.3) podem ser definidas como
Grupo de pessoas que compartilham e aprendem uns com os outros por contato físico ou virtual, com um objetivo ou necessidade de resolver problemas, trocar experiências, desvelamentos, modelos padrões ou construídos, técnicas ou metodologias, tudo isso com previsão de considerar as melhores práticas (McDERMOTT, 1999, p. 3)[1]
Mas, como bem disse o autor, para que esta adaptação ocorra é necessário haver uma familiaridade e similitude com o local a fim de que ele não lhe pareça mais estranho e sim, comum. Ligado a esta questão o autor expõe ainda que, “a socialização inclui tanto a aprendizagem quanto a apreensão de padrões, valores e sentimentos próprios de sociedade” (ELKIN, 1968, p.14). Um exemplo disso é a chegada dos imigrantes japoneses no Brasil, vindos do oriente, para viver no ocidente, uma cultura e costumes bem diversos de sua terra natal.
Elkin, no entanto faz uma ressalva:
Primeiro não é problema de socialização explicar e especular como começou certa sociedade dentro da qual a criança nasce, com suas esperanças, modos de fazer as coisas, padrões de certo e errado e tendências comuns, é o resultado duma evolução histórica única e existe antes de a criança entrar nela. ... Segundo, a socialização não se preocupa com o impacto de novos membros sobre a sociedade ou determinados grupos. ... Terceiro, não é problema da socialização explicar particularidades de indivíduos. ... Finalmente, não é problema da socialização explicar como as tendências básicas e necessidades dum indivíduo são desenvolvidas e elaboradas (ELKIN, 1968, p.15).
Com isso, chega-se à premissa de que no processo de socialização focalizam-se padrões e processos de semelhança e não, padrões e processos individualizantes. Ou seja, nessa perspectiva do individual, a criança é percebida como um ser único e singular, o qual possui necessidades biológicas e emocionais a serem satisfeitas e capaz, em seu desenvolvimento, de aprender e apreender o contexto real e simbólico do mundo que o cerca e, dessa forma, tornar-se construtora de si mesma. Sobre isso, Montessori (1966, p.24) afirma: “E eis que uma verdade se impõe: a criança não é um ser vazio que nos deve tudo o que sabe e de que a enchemos. Não, a criança é construtora do homem e não existe homem que não haja sido formado pela criança que uma vez foi”.
Ao refletir sobre a citação de Montessori, percebe-se que o que ocorre em algumas escolas de educação infantil é a massificação dos sujeitos, ou seja, as crianças são colocadas e vistas de maneira igual. A maioria das atividades propostas não leva em conta a diferença e, por isso são defeituosas e inadequadas do ponto de vista pedagógico e metodológico. A conseqüência disso é a concepção de um ambiente que não propicia à criança a possibilidade de ser construtor de si mesmo. A proposta da “Casa dei Bambini”, criada na Itália por Montessori e que anos depois inspirou a criação de escolas espalhadas pelo mundo baseadas no sistema montessoriano de educação, vem com o objetivo de romper com este pensar.
Mais do que verdadeira e propriamente uma escola, a nossa é uma “Casa das Crianças”, ou seja, um ambiente especialmente preparado para a criança onde ela assimila qualquer cultura difundida pelo ambiente sem necessidade de ensino (MONTESSORI, 1966, p. 14).
Nessa mesma perspectiva é possível salientar o quanto Montessori é categórica ao referir-se à necessidade de a escola se apresentar como um ambiente preparado e adequado para criança, capaz de despertar o interesse pelo novo e na absorção (ou não) das coisas que a cercam e, ainda, como fator importante no processo de socialização na escola.
Como pode a criança absorver o seu ambiente? Exatamente por uma das particulares características que nela descobrimos: um poder de sensibilidade tão intenso que as coisas que a rodeiam estimulam nela um interesse e um entusiasmo que parecem penetrar-lhe a própria vida (MONTESSORI, 1966, p. 35).
O fato de a criança se apropriar de hábitos, de costumes, da linguagem verbal dos meios por onde circula (como escola) e de absorver as construções feitas a partir destes dados os quais auxiliaram no processo de socialização (MONTESSORI, 1966), faz da primeira infância (dos 0 aos 6 anos) período de grande importância na vida dos ser humano. De acordo com Montessori (1966, p. 33), “... neste período se forma a inteligência, o grande instrumento do homem. E não só a inteligência, mas também o complexo das faculdades psíquicas”.
Pré Condições para a socialização
Assim, se a socialização ocorre por meio de relações sociais, ela “é uma função de interação social” (ELKIN, 1968, p.16) assim como o diálogo, numa perspectiva bakhtiniana (1999). Dessa forma, Elkin (1968, p.17-20) coloca como fundamentais três pré-condições para a socialização: “existir uma sociedade em funcionamento, a criança possuir herança biológica necessária e a necessidade de ‘natureza humana’[2] por parte da criança”.
A primeira destaca alguns componentes formadores do cenário social pelos quais podemos olhar a questão da socialização: a vigência de normas e valores; a posição e o papel que cada pessoa assume no contexto social em que vive; as instituições com as quais mantém (ou manterá) vínculo tais como família, escola, local de trabalho, etc; classe social; grupo étnico e mudança social (por exemplo, guerras, troca de Governo, etc.).
Quanto à segunda pré-condição, é levado em consideração que os fatores biológicos constituintes e inerentes ao ser humano, colocam-se na posição de elementos essenciais no processo de socialização. “Nossa herança biológica permite a socialização... com o desenvolvimento do cérebro, dos órgãos físicos e do sistema nervoso, tornamo-nos capazes de atividades complexas e profundas... Nossa herança biológica não apenas permite a socialização, mas a exige”. (ELKIN, 1968, p. 21)
Em relação à terceira pré-condição, referente à natureza humana, Elkin (1968, p.24) compartilha da idéia de Cooley (1902) e diz que “ela (a natureza humana), não faz parte de nossa herança original”; mas que, no entanto, “ela se desenvolve nos grupos primários – a família, ou os companheiros de brinquedos duma criança – nos quais as relações se encontram face a face e onde os sentimentos são próximos, íntimos e intensos”. Quando esta relação dialógica se estabelece entre os sujeitos, nasce, segundo Bahktin (1999) a linguagem, essencial durante o período de socialização na escola.
Os Mecanismos de Socialização
Ao falar-se em socialização na escola (assim como das pré-condições para tal), um fator de grande importância que deve ser levado em conta é, conforme Elkin (1968, p. 83), a existência de “mecanismos de socialização” praticados pelas pessoas que conduzem o processo: as chamadas “autoridades escolares”, que podem ser professores, diretores, monitores e etc.
Autoridades escolares procuram motivar a criança dando-lhe aprovação condicional, recompensando-a e punindo-a, de acordo com seu comportamento e desempenho. Também, consciente ou inconscientemente, citam modelos de comportamento para a criança e se tornam eles próprios modelos (ELKIN, 1968, p. 83).
Situações como essas colocadas por Elkin aparecem constantemente no processo de socialização das crianças, definindo, assim, padrões comportamentais que seriam “adequados” e “normais” tanto para meninas como meninos. Esta afirmação da autora mostra-se também, contrária à noção de autonomia e de sujeito construtor de si mesmo, proposta por Montessori (1988, p.144). A autora acredita que nem punição e nem recompensa são mecanismos capazes de agregar conceitos ao cenário de socialização da criança:
Se é evidente que a sociedade deve exercer um benéfico controle sobre o indivíduo humano, e se é também verdade que a educação se considera como ajuda à vida, este controle não deverá nunca ser constrição e opressão, mas deverá oferecer uma ajuda física e psíquica (MONTESSORI, 1966, p. 22).
No mesmo viés de Montessori, Foucault (2004, p. 76), em seu livro “Vigiar e Punir”, diz que “o direito de punir deslocou-se da vingança do soberano à defesa da sociedade. Mas ele se encontra então recomposto com elementos tão fortes, que se torna quase mais temível”. Em outras palavras, ao professor cabe corrigir a criança de tal forma que ela tenha a possibilidade de perceber o seu erro, sem claro, necessitar ser castigada para isso.
A ausência de prêmio e castigo é uma característica do sistema Montessori, porque o prazer derivado do que é aprendido tem mais valor do que qualquer recompensa. A partir de então, não se distribuíram mais prêmios nem castigos. O mais surpreendente foi a freqüente rejeição do prêmio. Tratava-se de “um despertar da consciência, de um senso de dignidade que antes não existia” (MONTESSORI, 1966, p. 144).
Por isso, os professores em sala de aula necessitam assumir uma postura de facilitadores desta difícil passagem na vida do ser humano que é a socialização na escola, levando em consideração as multifacetadas infâncias existentes e particularidades de cada indivíduo.
Descobrimos assim que a educação não é aquilo que o professor dá, mas é um processo natural que se desenvolve espontaneamente no indivíduo humano, que não se adquire ouvindo palavras, mas em virtude de experiências efetuadas no ambiente. A atribuição do professor não é a de falar, mas preparar e dispor uma série de motivos de atividade cultural num ambiente expressamente preparado (MONTESSORI, 1966, p. 15).
Logo, para que o aluno seja construtor do seu saber, ele necessita de suporte que lhe permita o ser. Nesse sentido, a partir de uma pedagogia relacional-construtivista, (onde professor e aluno determinam-se mutuamente, sendo que o professor concebe a criança, seu aluno, como tendo uma história de conhecimento já percorrida), é a que propicia um melhor trabalho, uma melhor abordagem das relações de gênero na escola enquanto espaço de socialização.
Por isso, antes de falar em como o entendimento das relações de gênero na sociedade influencia no modo como se dará o processo de socialização na educação infantil, se faz necessário falar da historicidade do gênero no Brasil.
As Relações de Gênero no processo de Socialização
O nascimento do termo gênero para as feministas brasileiras surgiu em meados dos anos 90 assim como o início das discussões acadêmicas sobre o que é gênero. Em âmbito mundial, as primeiras discussões em torno das relações de gênero ocorreram em um encontro feminista em Nova York , em julho de 1990. Este evento teve grande importância para a criação, no Brasil, do Núcleo de Estudos do Gênero Pagu (NEGP), junto à UNICAMP. Com Margareth Rago, antes de iniciarem as atividades do NEGP, as intelectuais feministas Adriana Piscitelli, Elisabeth Lobo e Mariza Corrêa formaram um grupo de estudos do gênero. Nesse contexto, o seminário que fora realizado em um hotel-fazenda em Itu, São Paulo, chamado “Uma Questão de Gênero”, por meio de debates entusiastas sobre as novas propostas epistemológicas do feminismo, reforçou ainda mais as discussões (RAGO, 1998).
Após a fundação do NEGP, iniciou-se a publicação do periódico Cadernos de Pagu[3] , inspirado na mulher símbolo do Movimento Antropofágico e militante do Partido Comunista na década de 20-30 e ex-esposa do poeta Oswald de Andrade. Desde então, a categoria gênero, ainda que não esteja vinculada somente aos estudos da mulher (tal como a revista Gênero e Meio Ambiente), a maioria das pesquisas nesse campo têm como foco a mulher. Essa categoria, caso considerada como epistemologicamente neutra pelo fato de a sociedade atuar sobre o corpo biológico (sem assim negar a função desse), acaba por “obrigar a uma reflexão sobre a relação específica entre corpo e psique e, consequentemente, uma teoria da constituição da identidade humana” (MORAES, 1998).
Ainda, conforme Moraes (1998, p. 100),
A expressão relações de gênero, tal como vem sido utilizada no campo das ciências sociais, designa, primordialmente, a perspectiva culturalista em que as categorias diferenciais de sexo não implicam no reconhecimento de uma essência masculina ou feminina, de caráter abstrato e universal, mas, diferentemente, apontam para a ordem cultural como modeladora de mulheres e homens. Em outras palavras, o que chamamos de homem e mulher não é o produto da sexualidade biológica, mas sim de relações sociais baseadas em distintas estruturas de poder.
As palavras da autora nos fazem perceber que, quando pensamos em gênero, antes de mais nada, estamos falando de relações humanas e falar das diferenças (aquelas dadas biologicamente ou construídas em cada grupo social entre mulheres e homens) é reconhecer que o masculino e o feminino estão presentes nos seres humanos – tanto na mulher quanto no homem.
De posse dessas noções, os profissionais envolvidos na educação infantil, em especial os professores e monitores que lidam diretamente com as crianças em sala de aula, têm a chance de auxiliar atores sociais ativos e cientes dos seus papéis enquanto indivíduo na sociedade. Sobre isso, Finco (2008) diz que
A Educação Infantil marca o início do processo de aprendizagem social das crianças, quando estão pela primeira vez convivendo num grupo social mais amplo, com características diferentes das do meio familiar. As relações das crianças na Educação Infantil apresentam-se como uma importante forma de introdução de meninos e meninas na vida social, quando passam a conhecer e aprender seus sistemas de regras e valores, interagindo e participando nas construções sociais (FINCO, 2008, p. 261).
Assim, é possível perceber que cada vez mais é preciso que as instituições que trabalham com turmas de Educação Infantil analisem o trabalho desempenhado por elas e seus colaboradores assim como o seu papel educacional na socialização de meninos e meninas. Conforme Finco (2008, p. 261):
(...) se pretendemos construir uma sociedade realmente democrática, onde a igualdade entre mulheres e homens exista de fato e não apenas na lei, mas também nas relações e práticas cotidianas, é preciso que estejamos atentos em promover uma prática educativa não discriminatória desde a primeira infância.
A utilização do gênero enquanto categoria de análise no processo de socialização da criança na educação infantil implica conhecer mais sobre cada indivíduo (biologicamente falando) assim como, compreender como esse biológico é organizado cultural e socialmente nas relações entre homens e mulheres. Sendo assim, segundo Scott (1990, p. 14), gênero é “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. E é nisso (a partir disso) que as identidades dos seres humanos se formam.
Episódio “O Bombeiro”, do desenho animado Caillou
A presente pesquisa, vinculada ao artigo final da disciplina do mestrado em Letras da Universidade Católica de Pelotas, surge no cenário da Comunicação e da Educação com a proposta de auxiliar a compreender melhor a escola enquanto espaço de socialização e construção das relações de gênero.
A idéia para construção deste artigo teve origem no mês de julho de 2009, quando assistindo ao desenho animado Caillou, junto aos meus filhos (cujas atitudes em relação ao desenho variavam do sorriso de felicidade - quando começava a música de abertura do mesmo – a imitação de atitudes gestuais e de fala dos personagens) Alonzo, então com três anos e sete meses, e Valquíria, com um ano e um mês, senti necessidade de compreender como, no processo de socialização na escola são retratadas no desenho animado Caillou as relações de gênero. Por isso, a escolha de trabalhar na pesquisa uma temática que estivesse relacionada à infância e gênero e cujo objeto fosse um desenho animado foi conseqüência de uma identificação com o meio televisivo[4] e da possibilidade de um diálogo entre a base para tal.
O desenho animado Caillou foi lançado no contexto televisivo em 29 de agosto de 1998 no Canadá, na capital Quèbec. É baseado nos livros escritos por Christine L'Heureux e ilustrados por Hélène Desputeaux. Caillou foi idealizado primeiramente para crianças com idade entre dois e seis anos e foi criado por psicólogos do desenvolvimento da criança. Tem como objetivo transmitir um conteúdo de cunho educativo.
O personagem principal, Caillou, é um garoto de quatro anos, que vive com sua família, a qual é composta por uma irmã menor chamada Rosie, pelo pai Boris e pela mãe Dóris e avó e a avô.Tem como amigos principais um menino chamado Leo e duas meninas chamadas Clemèntine e Sarah. Há ainda os ursinhos Teddy, Deedee, Rexy e Gilbert, o gato.
O cotidiano de Caillou é comum ao da maioria das crianças retratadas no desenho: brincadeiras ao ar livre, ida à escola, momentos de pirraças, convivência com familiares, etc. As temáticas mais freqüentes nos episódios envolvem a chegada de amigos novos, experiências de independência para realizar determinadas tarefas e comemorações tais como Natal, Ano Novo e aniversário. Nos Estados Unidos, ele é veiculado em canais de televisão aberta. No Brasil, no entanto, ele é transmitido tanto na televisão aberta (TV Cultura) e na televisão por assinatura (Discovery Kids). No Brasil, os horários de exibição são variados e flexíveis: de segunda a sexta-feira, às 11h45min (na TV Cultura) e sábados e domingos às 16h30min no Discovery Kids[5].
Ilustração 13 - Caillou e sua família
Ilustração 2 - Amigos de Caillou: De pé: Clementine, Sarah; na frente: Gilbert, Caillou, Leo, Rosie.
Na tabela abaixo, constam sete momentos retratados no episódio e que configuram o espólio de análise da pesquisa:
Episódio de análise: Caillou, o Bombeiro Duração: 6’53’’ |
o A figura da mulher enquanto professora reforça a noção de que esse “não é o lugar do homem” (ANEXO 2); |
· De joelhos diante do bombeiro, a menina mostra sua fragilidade pois naum tem forças pra pegar o “chapéu pesado” que o homem lhe dá (ANEXO 3-4); |
o Demonstração de “superioridade” dos adultos (em pé) em relação às crianças (sentadas) por meio do “poder” das profissões exercidas (mulher: professora e homem: bombeiro; o que acaba por reforçar a idéia de profissões tipicamente femininas e masculinas) ANEXO 5 |
· A menina, quando responde certo ao questionamento, não recebe nenhuma “recompensa”. ANEXO 6 o O menino, por responder corretamente, recebe um “certo”. ANEXO 7 |
Outras situações observadas:
- No decorrer do episódio, foi possível observar que há uma tentativa de igualdade entre os gêneros no que tange como as atividades se desenrolam. Em meio à disputa por brinquedos os irmãos gêmeos aprendem que devem ser fortes e equilibrados emocionalmente e que devem ceder o brinquedo um para o outro, oportunizando que o outro brinque também. Caillou também passa por situação semelhante ao ter que emprestar o chapéu de bombeiro para Léo.
- Os meninos são estimulados à atividades físicas bem mais que as meninas; Na hora de organizar a sala para recepcionarem o visitante que estava por chegar, meninos e meninas trabalham juntos a fim de que tudo fique organizado na sala;
- As meninas são mais delicadas para conversar, enquanto que os meninos bagunçam mais e entram em conflitos constantemente (ora por disputa de brinquedos ora por “manter-se em destaque” em determinada situação).
Com base nos resultados obtidos, apresentou-se algumas situações observadas na escola no processo de socialização na educação infantil e estabeleceu-se relações com o conceito de gênero. As imagens captadas (em anexo) do desenho animado têm como objetivo aproximar nossa atenção para como certas questões estereotipadas vinculadas às relações de gênero, apresentam-se simbolicamente naturalizadas na sociedade e reforçada por certas atitudes da (e na) comunidade escolar (por professores, monitores, direção ou pelas próprias crianças).
Com efeito, pode-se dizer que durante todo o tempo de exibição o desenho animado se percebe o comportamento das meninas em geral como estimulado à passividade, companheirismo e de ajudantes na sala de aula e nas atividades de demonstração do trabalho do bombeiro palestrante. Esse agir encontra respaldo, quando Ferreira (2009), ao falar sobre socialização faz uma colocação que traduz uma limitação aplicada pelo educador em relação ao educando, atitude esta que pode acabar por massificar os sujeitos e inibir o seu processo de socialização. “É um espaço sociocultural mediado por um conjunto de normas e regras que buscam unificar e delimitar a ação dos sujeitos” (FERREIRA, 2009, linha 2-4).
A autora pontua, ainda que implicitamente, algumas condicionantes importantes no processo de socialização da criança: “é um ambiente que possibilita a transformação dos processos de aprendizagem, em que o aluno constrói sua identidade que desenvolve habilidades de compreensão, emoção, comunicação, etc” (FERREIRA, 2009, linha 5-8).
Conforme as teorias norteadoras deste artigo, o que se percebeu é que a escola, em simultâneo reproduz e transforma as diferenças latentes das relações de gênero. Mas a escola também se revela um espaço rico no que diz respeito às diversidades culturais e sociais.
Segundo Finco (2008, p. 265-6), “ultrapassar o sexismo implica compreender seu significado e seu funcionamento”. Ou seja, pela análise das observações feitas em relação ao episódio Caillou, o Bombeiro, supõe-se que ainda que se diga que não, impera sim, um olhar estereotipado sobre quais atitudes e comportamentos que a sociedade acredita serem mais apropriados tanto para meninas como meninos. As atividades pedagógicas propostas não são imunes a essa visão e assim, carrega crenças (sobre o que é ser mulher e homem) que estão naturalizadas pelo senso comum na sociedade de forma geral.
Considerações Finais
A partir das teorizações feitas e análise dos textos feitos na disciplina, é possível chegar a dizer que, ainda hoje, apesar de todos os avanços tecnológicos que trouxeram a possibilidade de uma nova configuração ao ensino, a escola ainda mantém um status de papel de vital importância na vida das crianças, ainda mais se a colocarmos como um dos mais importantes espaços de socialização na primeira infância, que estende-se dos 0 aos 6 anos, e que pode ser denominada também como educação infantil.
Como é bom poder estudar em um local que tenha como princípios fundamentais de seu método de ensino o respeito às necessidades e interesses da criança, já que nenhuma é igual a outra e cada uma tem um ritmo biológico e mental de aprendizado diferenciado. Assim, é dever de todos os envolvidos no processo garantir que este espaço de socialização respeite as individualidades e preserve os interesses de cada aluno pois somente desta forma possibilitar-se-á que educando tenha a possibilidade de firmar-se como um ator social e contribuir com o bem da coletividade.
O fato dos professores representarem, frente à criança, uma autoridade adulta, com linguagem polida e estabelecedora de ordem e disciplina, não significa que estes, devem ser vistos detentores únicos do saber, o que em uma perspectiva dialógica, nos coloca a importância da troca de informações não-verticalizada e sim, em sistema de feedback, com vistas à construção da socialização escolar. Quando Montessori concebe a educação da criança como um todo, não só sobre o valor específico da aprendizagem de símbolos e representações, mas também da educação do corpo e da mente, ela faz referência ao fato de que, desta maneira, a criança se prepara também para a vida em sociedade. E isso é que deveria ser a escola enquanto espaço de socialização na educação infantil.
A escola, por meio de seu ambiente sala de aula, tem em sua essência o dever de exercer um papel humanizador e socializador, além de desenvolver habilidades que possibilitem o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, conforme propõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96 artigo 2º).
Enfim, pode-se afirmar que é impossível traçar historicamente a infância sem articulá-la às influências que o mundo da mídia exerce sobre as crianças e desta forma, a modificação de comportamentos, criação de estereótipos nas relações de gênero e ideologias de agir e pensar se tornam evidentes. Sobre a televisão se diz muito (contra ou a favor). Ela se configura como um meio de comunicação amado por uns e odiado por outros muitos. Digo com isso, que os desenhos animados veiculados nela, por si só não produz/veiculam conteúdos de péssima qualidade, mas quem neles atuam sim.
As análises demonstram que as relações de gênero que se estabelecem no processo de socialização na escola (apresentadas por meio do episódio desenho animado Caillou), de meninas e meninos, trazem latente a todo momento a tensão entre igualdade e diferença. Os estereótipos de gênero criados do que é ser menina e menino, acaba então, por se converter em uma questão social.
O que fica claro com este artigo é que toda e qualquer atividade pedagógica proposta na escola transmite às crianças, normas, valores e significados. Tão logo, não somente professores, mas os pais também, precisam visualizar a nova formação social que se apresenta e consequentemente propõe um novo olhar do que é ser menina e menino). Essa é uma atitude necessária na construção das relações de gênero no âmbito do processo de socialização na infância de cada indivíduo.
REFERÊNCIAS
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CLAPARÈDE, Édouard. A escola sob medida. Trad. Maria Lúcia do Eirado Silva. 3ª
Ed. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1973.
COOLEY, Charles Horton. Human nature and the social order. New York : Charles Scribner‟s sons, 1902. Disponível em: <http://www.us.archive.org/GnuBook/?id=humannaturesocia00cooluoft#1902> Acesso em: 15 mar. 2009.
ELKIN, Frederick. A criança e a sociedade: o processo de socialização. Tradução de A. Blaustein. Rio de Janeiro: Bloch, 1968.
FERREIRA, Mônica. Como defino a sala de aula. 2009. 1 f. Artigo (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, 2009.
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FRANÇA, Júnia Lessa; VASCONCELLOS, Ana Cristina. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. 8ª Ed. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
MACHADO, Luiza. Como defino a sala de aula. 1 f . Artigo (Mestrado em Letras) – Programa de Pró-Graduação em Letras, Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, 2009.
McDERMOTT, Richard. Learning across teams: How to build communities of practice in team organizations. Knowledge Management Journal 8:32-36 May/June. 1999.
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MORAES, Maria Lygia Quartim de. Usos e limites da categoria de gênero. Cadernos Pagu, Campinas, v. 11, p.99-105, 1998.
RAGO, Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu, Campinas, v. 11, p.89-98, 1998.
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WENGER, Etienne. Communities of practice: learning, meaning, and identity. New York : Cambridge University Press, 1998.
ANEXOS
ANEXO 5
[1] Tradução livre de McDermott (1999, p. 3): “A community of practice is a group that shares knowledge, learns together and creates common practices. COPs share information, insight, experience and tools about an area of common interest. This could be a professional discipline (such as reservoir engineering or biology), a skill (like machine repair), a topic (such as technology), an industry or a segment of a production process. Consulting companies usually organize COPs around both disciplines, such as organizational change, and industries like banking, petroleum or insurance. Community members frequently help each other to solve problems and develop new approaches or tools for their field. This makes it easier for community members to show their weak spots and learn together in the “public space” of the community”.
[2] Elkin define (conforme no termo este estabelecido por C. H. Cooley) como a capacidade de estabelecer relações emocionais com outros e experimenta sentimentos tais como amor,
simpatia, vergonha, inveja, piedade e espanto.
[3] Patrícia Rehder Galvão, conhecida pelo pseudônimo Pagu foi uma escritora e jornalista brasileira. Militante comunista teve grande destaque no movimento modernista iniciado em 1922.
[4] Minha formação inicial é bacharelado em Comunicação Social – habilitação em jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas
[5] Dados obtidos nos sites: http://www.tvcultura.com.br/caillou/ e http://tiny.cc/DhJKV .
[6] Anexo 1
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