Luciane de Paula
Ceci n’est pas une pipe
(Magritte)
Introdução
Ética e estética são duas concepções indissociáveis na perspectiva do Círculo de Bakhtin. Refletir sobre elas significa pensar suas relações (diálogos, no sentido amplo concebido pelo Círculo) com outras concepções (aliás, como toda a filosofia do Círculo, essas duas noções compõem o que podemos chamar de o pensamento do Círculo de Bakhtin), como sujeito e enunciado, entre outras. Assim é que o ato ético pode ser compreendido como ato responsável e como ato responsível. O fazer estético, por sua vez, pode ser entendido como o fazer elaborado, um dos gêneros discursivos secundários (como também o são a filosofia, a ciência, entre outros), representativo, semiótico. Desse ponto de vista, pensar a ética e a estética sob a perspectiva do Círculo de Bakhtin significa compreender o seu pensamento dialógico.
Para pensar a questão da ética e da estética, mote central da conversa bakhtiniana a qual nos propomos, precisamos pensar as condições de produção do Círculo (a Rússia dos anos 20 aos 60, com todas as suas modificações e conflitos) e a sua constituição (a formação do Círculo por muitos pensadores, de diversas áreas e com alguns interesses comuns e outros distintos). O primeiro passo, talvez, seja afirmar o que parece óbvio a nós, estudiosos da linguagem: a realidade existe por meio da e na linguagem. A linguagem é histórica e constituída por sujeitos. Por sua vez, o discurso reflete e refrata a realidade e seus valores. O segundo passo é o que propomos dar aqui: refletir sobre as concepções ética e estética na perspectiva do Círculo com base na realidade (a construída pelos discursos e a realidade per se). Essas duas concepções se encontram esparsas, mas presentes ao longo de toda a obra de Bakhtin.
Para tratar da estética, embasaremo-nos, especificamente, nos textos Estética da Criação Verbal (1992) e Questões de Literatura e Estética (1988). Quanto à ética, nossa discussão fundamentar-se-á, especialmente, em Para uma filosofia do ato responsável e Arte e Responsabilidade. Nossas reflexões estão calcadas ainda em Discurso na vida e Discurso na arte, tanto no que diz respeito à ética quanto à estética, concepções impossíveis de serem pensadas isoladamente, como mencionamos. Para auxiliar nossas reflexões, partimos ainda da leitura de Sobral (In Ético e Estético – Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas , 2005) acerca da ética e da estética. Além disso, este texto revisita, de um outro ponto de vista, um outro texto nosso (O dizer estético e (anti)ético da mídia: a veridictoriedade à luz da perspectiva bakhtiniana, 2008).
Ética e estética
O posicionamento ético do sujeito diante do mundo e a criação de uma arquitetônica estética (uma unidade coesa e dotada de sentido) são, segundo Sobral (2005, p. 117), “faces de um Jano tríplice”. Podemos pensar que o sujeito pode (e deve) afastar-se (o suficiente para poder ter um olhar parcialmente extraposto) de sua própria contingência, construir-se a si mesmo nela, a partir do concreto e do abstrato, do coletivo (outro) e do individual, do fazer (ético) e do refletir sobre o agir (elaboração estética), do que há de único em cada ato e do que há de comum a todos os atos. Essa é a posição exotópica (o excedente de visão ou olhar extraposto) preconizada por Bakhtin.
O ato ético se refere ao processo – o agir no mundo, o que se liga diretamente à realidade; enquanto o ato estético, à valorização – a reflexão elaborada, portanto, com acabamento – e não necessariamente acabada – acerca da ação ética realizada pelo sujeito. Esses dois elementos ligam-se às concepções de responsabilidade e responsividade, estudadas pelo Círculo.
Para o filósofo russo, o uso que uma comunidade faz de um código, com suas nuances ideológicas, ou o que ele denomina de “código ideológico de comunicação”, forma uma “comunidade semiótica”. Nesse sentido é que, segundo Fiorin, os discursos constituem os sujeitos e os sujeitos, por sua vez, tecem os discursos (daí o dialogismo ocorrer entre sujeito-sujeito; sujeito-enunciado; e enunciado-enunciado). Por isso, podemos dizer que a linguagem é tão construtora da “realidade” social quanto os elementos da ordem do sensível (e o que é sentido e percebido, é semiotizado, ou seja, quando há o homem, há semiotização. Se o homem percebe, o que é percebido é semiotizado), haja vista que as relações sociais são realizadas pela e na linguagem, bem como os lugares sociais adquirem existência na medida em que estão inscritos numa rede discursiva – realidade per se e realidade semiótica.
Em seu artigo “Discurso na vida e discurso na arte” (1926), Bakhtin/Volochinov dedica-se à diferença entre a comunicação verbal na arte e no âmbito da vida cotidiana. No ensaio, o autor afirma que “a arte é um ato de comunicação” e propõe o que, mais tarde Medvedev, em O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica, desenvolve: um método poético-sociológico, ou seja, a explicitação da proposta de impossível desvinculação entre ética e estética, um estudo do quanto o discurso estético (calcado, especificamente, no poético como corpus de análise) está vinculado, parte, reflete e refrata, o real, construindo-o de outra maneira, mais elaborada. A linguagem, para Bakhtin, Volochinov e Medvedev, não é um sistema acabado, mas um processo em construção (um vir-a-ser) ou, como afirmam Bakhtin/Volocinov em Marxismo e Filosofia da Linguagem, um “organismo vivo”. Afinal, o homem não nasce e recebe uma língua pronta, acabada e fechada em si mesma. Ao contrário, ele ingressa sua trajetória na viagem da vida numa corrente móvel. Pega o bonde no meio do caminho da comunicação verbal e tem que seguir com ele sua travessia, não apenas sua, particular, pois passa a compartilhar dela com todos, sendo ela, portanto, coletiva. Melhor, dialógica.
O signo, para o Círculo, é o “signo ideológico”, uma vez que a linguagem é plurissignificativa e se encontra sempre grávida de sentidos e valores ideológicos que servem a um dado sujeito e ao grupo social ao qual ele pertence. Daí a responsabilidade e responsividade do sujeito do discurso.
Segundo Sobral (2005, p. 118), a “responsabilidade inalienável” do sujeito se refere à sua falta de álibi, a “a sua falta de escapatória, de sua inevitável condição de ser lançado no mundo e ter ainda assim de dar contas de como nele agiu”. Bakhtin pensa sobre isso em várias de suas obras, em diversos momentos. Responsabilidade e responsividade são, então, categorias que se associam ao agir ético e estético do sujeito. Mais, relacionam-se com a consciência ética e estética do sujeito.
Tratar da ética e da estética na perspectiva do Círculo significa pensar a integralização arquitetônica das dimensões do sujeito humano estudadas pelo Círculo, “na unidade da responsabilidade”. Responsabilidade de todo e qualquer sujeito humano. Bakhtin afirma que todo discurso é responsível porque todo discurso é dialógico e como o sujeito responde por seus atos no mundo, ele é responsável por eles.
A associação entre cultura e realidade, entre mundo sensível e mundo inteligível, entre conteúdo e processo, entre repetibilidade arquitetônica e irrepetibilidade composicional é a vida complexa humana, composta pelo diálogo entre o agir concreto dos sujeitos (ética) e o pensar sobre o agir dos sujeitos (estética). Como afirma Sobral (idem), a proposta do Círculo reflete sobre a relação entre o particular (a ocorrência irrepetível do ato/atividade – aquilo que só nele se faz presente) e o geral (o conteúdo do ato/atividade – aquilo que cada ato tem de comum com outros atos), a vida e a arte, uma relação de interconstituição dialógica que não privilegia nenhum desses termos, mas os integra na produção de atos, enunciados, obras, enfim, de dizeres que produzem o real.
Junto com as propostas dialógicas acima, o Círculo propõe a interconstituição entre o enunciado e seu contexto, sujeito discursivo e sujeito humano e realidade discursiva (criada no e pelo discurso) e realidade per se – ainda que sem utilizar esses termos específicos. Essa aproximação ocorre porque a concepção de sujeito do filósofo russo (que se aproxima da concepção de Vygotsky) compreende o sujeito como agente de sua consciência; e a consciência depende da linguagem para se formar e manifestar. Na verdade, o sujeito (eu) se constitui por meio de e a partir do outro. Em outras palavras, os sujeitos se constituem por meio do(s) outro(s), dialogicamente, numa interatividade complexa e dinâmica, com suas próprias orientações ideológicas.
Ao escutar outrem, o “eu” também traz em seu bojo palavras interiores, seu discurso interior. No quadro desse discurso interior se efetiva a apreensão da locução do outro, bem como sua compreensão. Dessa forma “a palavra vai à palavra”. A partir do momento em que o indivíduo se constitui, ele também se altera, constantemente. E esse processo se consolida socialmente, por meio das relações, das palavras, dos signos.
À guisa de inconclusão
A ética bakhtiniana (Para uma filosofia do ato responsável) é o espaço de decisões cronotópicas no hic et nunc (agora e então) concretos do agir humano. Assim, a ética, para Bakhtin, é um conjunto de obrigações e deveres concretos. Já a concepção de estética resulta de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica (lugar de fora, ainda que um fora relativo, pois uma posição de fronteira, lugar móvel, sem uma de-limitação pré-determinada, de onde o sujeito vê o mundo com certa distância, a fim de trans-figurá-lo na construção de seu discurso – sua veridicção – estética) do sujeito, fundada no social e no histórico. A posição exotópica é a posição a partir da qual é possível o trabalho estético, a ação de construir o objeto estético.
O cachimbo de Magritte não é real, mas tão bem representado que custamos a compreender a inscrição que no quadro se apresenta abaixo da representação (“Ceci n’est pas une pipe” – “Isto não é um cachimbo”). Uma vez que olhamos a obra representada e vemos, ali, um cachimbo, esquecemos de notar que aquele objeto discursivo não é o objeto empírico, ainda que bem o represente.
Ética e esteticamente, o sujeito é responsável por seu dizer, sempre responsível. A ilusão de realidade paira no ar tanto quanto o dizer “real” sobre a realidade per se, sempre por meio do discurso, constituído pela linguagem e esta, pelo signo (ideológico).
Bibliografia
BAKHTIN, M./VOLOCHINOV. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução: Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita (Mimeo).
___. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BAJTIN, M. M./MEDVEDEV, P. N. El método formal em los estudios literarios: introducción crítica a una poética sociológica. Madrid: Alianza, 1994.
BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal . São Paulo: Martins Fontes , 1992.
___. Questões de literatura e estética : a teoria do romance . São Paulo : Hucitec/ USP, 1988.
___. “Les études littéraires aujourd’hui”. In Esthétique de la creation verbale. Paris : Gallimard, 1984.
___. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.
___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
PAULA, L. de. “O dizer estético e anti-ético da mídia - a veridictoriedade à luz da perspectiva bakhtiniana”. In: OSÓRIO, E. M. R. (org.). Bakhtin na prática. São Carlos: Pedro e João Editores, 2008.
SOBRAL, A. “Ético e estético – Na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas ”. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário