BRENO LUIS DEFFANTI (UNICAMP)
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GERALDI (1991) diferencia “redação” e “produção de texto”. No primeiro, escreve-se para a escola e, no segundo, escreve-se na escola. Obviamente, as diferenças não se encerram no jogo de preposições.
No uso da preposição “para”, escrever é um fim em si mesmo, sem nenhum outro objetivo. Não se escreve como forma de posicionar-se perante determinado assunto ou para se constituir como autor. Não se escreve porque se tem algo a dizer. Escreve-se, porque, no final das contas é o que se deve fazer nas escolas. Não é, no entanto, qualquer escrito. A atividade de escrever deve revelar que o aluno domina a norma culta da Língua Portuguesa e que compreendeu todas as estratégias de como dizer que a escola ensinou. Se a escola ensinou ao aluno as estratégias de como dizer o que deve ser dito através de uma dissertação, escrever para a escola significa que o aluno deve mostrar que aprendeu e assimilou o como deve ser dito e se sujeita ao que deve ser dito. O escrever está voltado essencialmente para a escola. Para GERALDI (IDEM), a redação prepara o aluno para depois escrever (e o autor ainda comenta: “um depois que provavelmente não acontecerá. É interessante essa afirmação de GERALDI, é como se houvesse uma dissociação entre a redação e o ato de escrever efetivamente.)
No uso da preposição na (escrever na escola), a escola torna-se um lugar privilegiado para o trabalho com a escrita. Na escola, a escrita é o meio para que o aluno constitua-se como aluno na escola, como filho na família, como cidadão na sua comunidade. Escreve-se porque há um sujeito que tem o que escrever sobre o local em que vive e estuda. Escreve-se porque há um sujeito constituído por uma história particular e única, que tem uma visão particular e única do mundo em que vive e é na escrita que essas particularidades serão materializadas. Escreve-se porque, há um aluno que é um sujeito de fato e que encontra sujeitos, mesmo que reduzido ao professor, leitores e a dialogadores do texto. Escrever na escola significa aprender que as diversas possibilidades para que o aluno signifique aquilo que deseja significar.
De acordo com Bakhtin (1993), o ato ético é a assunção de nossa unicidade e singularidade no mundo e negação de um álibi para nossa existência. Ser ético é assumir a responsabilidade pelos significados que significamos, assumir a responsividade de nossos enunciados perante outros enunciados. É entender-se arquitetonicamente e constituir-se a partir do outro. O ato estético, por sua vez, é a representação do mundo organizada a partir do outro. O ato estético é o acabamento do ato ético.
Produzir um texto na escola, tornar-se um interlocutor de fato e efetivo significa que o aluno deve assumir também sua unicidade, irrepetibilidade e não-álibi de sua existência também na escola. Se ético na vida, ético na escola. O texto produzido pelo aluno, então, deve refletir a assunção de sua unicidade, de seu posicionamento singular perante o mundo, deixar que ele signifique o que desejar significar e que assuma sua responsabilidade perante o que significou.
O aluno, ao se tornar um interlocutor de fato e efetivo, ao escrever um texto para o outro e perante o outro, também atua esteticamente, escolhendo recursos composicionais que “aticem” a percepção estética, dialógica e ideológica de seus interlocutores. Enfim, quando um aluno produz um texto na escola, ele realiza-se arquitetonicamente.
A seguir, mostrarei dois textos produzidos por um mesmo aluno de uma escola particular em Campinas (SP). Na época de produção dos textos, ele tinha 15 anos e freqüentava a sexta série. O aluno em questão é MK e sua escola é conhecida por seguir os postulados educacionais do educador francês Célestin Freinet, prevalecendo conceitos como o Texto Livre (em rasas palavras, Textos Livres são textos espontâneos produzidos pelos alunos e trabalhados na escola. Além de valorizar o momento único de produção de textos pelos alunos, o Texto Livre pressupõe um papel social dentro na escola ao circular entre os alunos.) e a Imprensa Escolar (também em rasas palavras, é a publicação dos textos dos alunos). É uma escola que conceitualmente valoriza a produção do aluno e abre espaço para que ele assuma o seu papel dialógico dentro da escola. A atividade em que o aluno estava inserido era a produção de Textos Livres para fosse publicado em um livro de textos dos alunos.
A figura ao lado é um dos primeiros textos produzidos por MK durante esse trabalho de publicação do livro. Ele fala sobre suas férias, o lugar onde foi viajar e, principalmente, que gosta de trabalhar com o pai na sua oficina executando serviços diversos, como embrulhar presentes para os clientes. Para reforçar seu gosto pelo trabalho, ele termina o texto listando todas as peças que compõe um compressor.
É inegável o trabalho ético e estético de ser único, singular e responsável executado pelo aluno nesse texto. Tudo aquilo que constitui MK está presente. O aluno não se furtou de colocar no texto sua posição perante o mundo ao trazer para o texto aquilo que gosta de fazer. Ao escolher terminar seu texto com uma lista, o aluno quis mostrar ao seu interlocutor o quanto realmente conhecia o ambiente da oficina de seu pai.
Entretanto, mesmo descontando algumas questões ortográficas, o texto não foi publicado da maneira como ele foi produzido pelo aluno. Ele sofreu cortes e alterações por parte da professora que fizessem com que o texto ficasse mais próximo dos textos escolares comuns, como podemos ver abaixo.
Minhas férias |
Eu gosto de minhas férias porque elas são muito boas. Eu queria mais férias para trabalhar na oficina de meu pai. Eu arrumo peças de caminhão e carretas e equipamento de ônibus. Eu gosto de embrulhar as agendas para os clientes, as agendas especiais, e as cachaças também. Todos os sábados eu vou para a oficina de meu pai. Lá eu monto compressor denso de ônibus. As peças do compressor são: pistão, biela, chaveta, rolamento traseiro, rolamento dianteiro, placa, cabeçote, sensor, visor de óleo, tampa de sucção, tampão óleo denso, conjunto de chaveta, válvula pino de pistão, palheta, sucção, parafuso, fixo, palhetas, limitador, arruela de pressão, porca, tampa nos cilindros, pinos, guias, plug de óleo conjunto, selo mecânico, filtro, bloco de cilindro, borracha, meião, conjunto de válvulas, anel, elástico, rolamento, carcaça, porca, anel de borracha isolante. Nessas férias, eu também fui viajar para uma praia que se chama Indaiá |
O texto acima foi, então, organizado. No primeiro parágrafo, está o trabalho que o aluno gosta de executar na oficina de seu pai. No segundo parágrafo, a listagem (que antes terminava o texto) dos componentes do compressor perde o destaque que tinha no texto anterior. No terceiro parágrafo, o texto é finalizado com “o aluno dizendo” que ele também gosta de viajar para Indaiá.
As modificações feitas nos texto de MK foram além das de ordem ortográfica ou de adequação de linguagem. Mexeu-se na estrutura composicional do texto, na maneira como a descrição de mundo de MK relaciona-se dialogicamente com os outros interlocutores. Mexeu-se no ato estético do aluno.
Para encerrar essa reflexão, fica a pergunta: quanto que um professor, ao mexer na composição estética de um texto, ao tentar corrigir esse texto, distancia o texto do seu significado inicial, da visão de mundo do aluno? Quanto que a força de adequar um texto de um aluno aos padrões escolares não afasta o texto do significado que ele se responsabilizou anteriormente e enfraquece sua atuação como sujeito de fato e efetivo na escola?
BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN, M. Towards a Philosophy of the Act, University of Texas Press, Austin: 1993 (Trad. Carlos Alberto Faracco e Cristovão Tezza)
GERALDI, V. Portos de Passagem, Martins Fontes, São Paulo: 1991
SOBRAL, A. Ético e Estético – na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas In: Brait, B. (ORG.) Bakhtin Conceitos-Chaves, Contexto, São Paulo: 2008
PONZIO, A. Filosofia Moral e filosofia da literatura In: A revolução Bakhtiniana, Contexto, São Paulo: 2009
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