Eliana A. Albergoni; Elizangela Patrícia M. Costa;Shirlei N. Santos;Rute A. e Silva
O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida mas também penetrar uns nos outros na unidade da culpa e da responsabilidade (BAKHTIN, 1919, p. 34)
Para início de reflexão, tomando como ponto de partida a epígrafe, afirmamos que Bakhtin é um grande humanista. Ele coloca o ser humano no centro do seu agir (do humano) não importa a forma em que se apresenta (físico, discursivo) etc. Porém, esse agir não se dá num vácuo ou numa individualidade absoluta, mas sempre na relação com outros. Cada ato humano representa a atualização dessa relação que é histórica, social e ideológica, daí seu caráter ativo e alteritário[1] que não se anula perante o social, mas com ele mantém uma relação constitutiva e responsiva.
Bakhtin, além de nos fornecer uma perspectiva do ato humano integral, liberta o ser humano do individualismo pela responsabilidade em um dado domínio da cultura, e, por outro, o livra da submissão total ao social pela responsabilidade situada. O sujeito em Bakhtin não tem álibi na existência, é ético, em outras palavras, ainda que ele não queira agir, ele age (e, nesse caso, de forma irresponsável). Ainda assim, responde por seus atos e dá conta deles perante os outros: o sujeito, ao agir, deixa por assim dizer uma “assinatura” em seu ato e por isso tem de responsabilizar-se pessoalmente por seu ato e se responsabiliza por ele perante a coletividade de que faz parte (SOBRAL, 2009, p. 30).
A título de exemplificação, tomamos três enunciados veiculados na mídia nacional que, pela apreciação valorativa do seu autor, evidenciam a elaboração dessa atividade ético-estética assumida pelos participantes envolvidos nesses eventos. Vejamos o primeiro enunciado que se refere à intenção de votos dos brasileiros para a presidência da república nas eleições 2010, no início do mês de setembro[2]:
Dilma Rousseff (PT) vai de 49% para 50%; José Serra (PSDB) passa de 29% para 28%; Marina Silva (PV) ficou estável com 10%; Pretendem votar em branco ou anular 4%; Mostram-se indecisos 8% (Datafolha, 2010).
Por estes dados, podemos ver o movimento de intenção do agir dos brasileiros no que respeita à escolha do candidato que os representará na presidência da república. À parte os 88% que assumem que vão agir responsavelmente e 8% indecisos, focalizemos dentre os 4% os que pretendem “eximir-se” dessa responsabilidade. Legalmente, os votos nulos não têm validade na decisão do pleito eleitoral. Entretanto, seus sujeitos irão agir na forma de não concordância com todas as opções oferecidas e, inclusive, seus atos provocarão respostas ainda que eles não queiram como a eleição de um dos candidatos ofertados e, posteriormente, nas formas de suas ações políticas que irão afetá-los diretamente.
Assim, a atividade ética é um ato responsável em seu estar fazendo-se num momento único e concreto de sua instauração, praticado por alguém não transcendente e endereçado a outro envolvido nesse evento, por isso, seu caráter responsável e participativo:
[...] o sujeito que toma decisões éticas o faz em sua vida concreta, cujas especificidades incidem sobre sua decisão, em vez de aceitar a proposição de que a forma e o conteúdo dessas decisões estejam fundados numa moralidade transcendente... (SOBRAL, 2005a, p. 23)
Nesse sentido, na perspectiva bakhtiniana, o mundo concreto é a vida de sujeitos concretos em seu estar-fazendo-se permanente num aqui e agora único, base para a categorização teórica, filosófica, estética, etc. do mundo e, uma vez assim, apreendido, perde seu caráter de transitividade e assume um sentido abstrato. Segundo Ponzio (2008), os atos singulares devem estar em comunhão com os atos genéricos, único caminho possível para a superação entre vida e cultura e a comunhão dá-se pela unidade do sentido, da responsabilidade.
Sendo assim, a responsabilidade, para Bakhtin (1919), é a unidade que une os atos gerais e singulares, o mundo cotidiano e o mundo da cultura, a vida e a linguagem. Assim, o ato em sua concretude implica um sujeito que o realiza e o direciona a outro num contexto sócio-histórico específico que estabelece limites e possibilidades de formas de realização de atos. Como isso acontece? Pela atividade organizadora e estruturadora do sujeito ativo. Pensemos no campo da linguagem, o sujeito-autor, ao agir discursivamente, tem como ponto de partida um querer dizer que está orientado para os conteúdos do mundo ético (ditos e possíveis) e para os outros.
Vejamos o segundo exemplo desta atividade ética, trata-se de uma declaração do ex-goleiro do Flamengo, Bruno, numa entrevista a várias redes de televisão, quando tentava defender seu amigo Adriano (então atacante do mesmo time). Ao ser questionado sobre o ato de o colega ter agredido sua noiva, Joana Machado[3], Bruno responde o seguinte: "Quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher?". Tal declaração causou uma repercussão negativa e uma onda de atos responsivos discordantes.
Poderíamos afirmar que o goleiro posicionou-se de forma preconceituosa, arraigada e inadequada para o contexto da sociedade brasileira hoje. Entretanto, como afirma Sobral (2005b), se muitos atos humanos não se justificam, como no caso, por outro lado se explicam. O goleiro Bruno, enquanto sujeito ético, inserido no espaço-tempo do seu “Ser evento único” assume na responsabilidade e na culpa o seu ato-declaração. Deste modo, não podemos ler tal declaração apenas como um ato isolado de um goleiro, mas a declaração de um sujeito-autor que, com toda sua história, atualiza, no evento único do seu ato, discursos sociais e históricos associados ao machismo e constituídos na cultura de parcela da sociedade brasileira, que tende a naturalizar a violência contra a mulher. Vemos neste discurso como a mulher é representada para o sujeito-autor Bruno e como foi objetificada por uma sociedade por anos a fio: emerge a imagem da mulher-objeto e submissa ao seu senhor, que tem, como todo “possuidor de humanos”, o direito de puni-los, inclusive com agressões físicas.
Continuando, o sujeito-autor, mantendo certa distância do conteúdo do objeto, vai organizá-lo pela atividade de arquitetar, estruturar, em um material e em uma forma composicional, contornadas de acordo com o seu projeto discursivo inserido em condições de produção dadas (inclusive, do material), formando uma totalidade unificada pela orientação valorativa mobilizada na inter-relação autoral, isto é, pela unidade do sentido/da responsabilidade. O resultado desse processo discursivo é um objeto estético, isto é, representação ou transfiguração dos conteúdos do mundo ético moldados pelo querer dizer do autor em material e forma composicional específicos. Tomemos novamente o enunciado-declaração anterior. Sua apreensão na forma de réplica-comentário "Quem nunca brigou ou até saiu na mão com a mulher?" por um jornalista, que o vê de fora, vem moldada verbalmente pelas aspas, que podem indicar tanto afastamento discursivo (dizer de outro) como valorativa (dizer de outro cujos valores não compartilham).
Nesse sentido, com seu querer dizer valorativo, o autor vai unindo aspectos e parcelas do mundo ético (conteúdo) através da mobilização dos elementos do mundo estético (forma e material). A atividade estética envolve o trabalho de representação da vida, seus sucessos, seus problemas do ponto de vista da ação exotópica do autor, que atua enquanto agente organizador dos discursos unindo vida e linguagem na tessitura de conteúdo, forma e material por sua apreciação valorativa. O produto desse processo discursivo, “o evento único do Ser”, é uma forma arquitetônica onde estão integrados os planos do material, da forma e do conteúdo unificados no espaço e no tempo únicos do seu vir-a-ser pela unidade de sentido.
Pensar o sujeito ético nos remete ao contexto de sua atuação que é sempre dado na relação com o outro e com a sociedade de que faz parte, relações de graus e amplitudes variadas, sempre marcadas nos atos humanos, dentre eles, os discursivos. Tais relações são denominadas por Bakhtin de dialógicas. Para Padilha (2009), o conceito de dialogismo de Bakhtin traz em seu bojo essa ideia de interação entre o eu e o outro (representados, físicos, imaginados) contrapondo palavras, trocando diálogos, compreendendo e respondendo (na forma de aceitação ou recusa), ativamente, por seus atos discursivos num tempo e espaço (mediatos ou imediatos), mas valorados socialmente, emotivamente.
Tais relações dialógicas estão presentes também como princípio de construção dos atos discursivos: o querer dizer do sujeito-autor situado é um diálogo com o estar-aí dos conteúdos discursivos e com o vir-a-ser desses conteúdos na forma da resposta ativa que espera dos seus interlocutores. Vejamos o terceiro enunciado, proferido pelo Presidente do Conselho de Ética, Senador Paulo Duque, em Julho de 2009, sobre as acusações contra José Sarney, Presidente do Senado: “Nepotismo existe no país desde que o Brasil é Brasil".
Tal enunciado amplamente veiculado em diversos meios de comunicação, proferido por um cidadão comum não produziria os mesmos efeitos de sentidos quando proferido por um cidadão que ocupa o cargo de Presidente do Conselho de Ética do Senado. Tal declaração, ainda que situada cronotopicamente e axiologicamente, teria que provocar certa efervescência em alguns setores da sociedade tendo em vista que, considerando o espaço-tempo único de onde se posiciona seu sujeito-autor, tal ato adquire status de irresponsabilidade, portanto, merecedor de reprovação social. Este ato foi refratado e apreciado na forma de imprecações e indignações por outros (jornalistas, principalmente) que o viram como “anti-ético”.
Segundo Sobral (2009), o sujeito-autor, ao agir, deixa sua assinatura pessoal, por isso, é não-indiferente e responsável pelo que diz e responde por ele perante a coletividade de que faz parte. A declaração-apreciação de Paulo Duque sobre o favorecimento de emprego a familiares, por parte do presidente do Senado, justifica tal comportamento tratando-o como aspecto inerente à cultura da política brasileira, e, nesse sentido, “quem nunca praticou tal ato que atire a primeira pedra”. O sujeito-autor nega, para defender seu grupo, a possibilidade da mudança, recorrendo à repetição do mesmo.
Por outro lado, podemos inferir que tal declaração revela um querer dizer que busca, a partir da memória do passado, “mostrada como sempre presente sem possibilidades de mudanças”, amenizar o evento que envolve a prática de nepotismo no Senado, a fim de levá-lo ao esquecimento, afinal, como diz o ditado, “brasileiro tem memória curta”. No entanto, seu projeto discursivo provoca efeitos de sentido outros na forma de contra-palavras não concordantes com o discurso enunciado.
Concluindo, a concepção de atividade ético-estética que Bakhtin nos oferece coloca o ser humano como centro de valores e, se tudo que é, perpassa ou se constitui pela atividade avaliadora concreta dos sujeitos situados em relação não-indiferente com os outros, temos, assim, que Bakhtin abre caminhos para possibilidades de transformação do que está aí pelo vir-a-ser do agir humano responsável. Por pensarmos concretamente, podemos aceitar, reivindicar, contestar, imprecar, enfim, agir sempre responsivamente, tecendo, na base do que é o que pode vir-a-ser outro. Podemos ter sido mulheres “objetificadas”, mas hoje não aceitamos mais, podemos ter sido um povo infenso ao nepotismo, mas hoje podemos não ser mais. Assim, Bakhtin nos faz acreditar na transformação através do processo de realização das ações humanas com base nas quais podemos construir um mundo outro. E isso é liberdade de escolha responsável.
Referências
AMORIM, A. Cronotopo e exotopia. In: BRAIT. B.(org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.
BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade (1919). In Estética da Criação Verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BAKHTIN, M, MEDVEDEV. O problema do gênero. In O método formal nos estudos de linguagem (1928). Trad. Acadêmica mimeo, 2008.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
MARCHEZAN. R. C. Diálogo. In: BRAIT, B.(org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008.
PADILHA, S. J. Relendo Bakhtin: Reflexões iniciais. Polifonia, Cuiabá: EdUFMT (19), p. 103-113, 2009.
SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: BRAIT. B. (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008a.
PONZIO, A. Filosofia moral e filosofia da literatura. In: A revolução bakhtiniana. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
SOBRAL. A. Ético e estético. In: BRAIT. B.(org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2008b.
SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.
[1] Caráter alteritário do sujeito remete ao fato que o sujeito é o que é a partir das relações que estabelece com os outros que, por sua vez, também o define.
[2] Pesquisa nacional realizada pelo Datafolha nos dias 2 e 3 de setembro, retirado de: http://datafolha.folha.uol.com.br, Acessado em 09/09/2010.
[3] O casal estava em um baile funk na favela Chatuba na zona norte do Rio quando se desentendeu e o jogador agrediu fisicamente a namorada, na sexta-feira, do dia 05/03/2010. Retirado de: http://globoesporte.globo.com/Esportes/Noticias/Times/Flamengo, Acessado em 09/09/2010.
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