segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Relendo Bakhtin:[1] O Eu profundo e outros oitenta Eus



Gustavo José Jordan Prado[2]
ECCO/UFMT


Certo dia, demasiado quente, pude acordar desperto de mim. Acordei de um devaneio aspirando a baforada do dia: foi uma sensação nova, que me fez olhar estranhado para meu próprio corpo. Diferente de Gregor Samsa, não havia me metamorfoseado num inseto monstruoso, mas acordei - posso dizer - um sujeito frankensteiniano: dotado de retalhos heterogêneos, um conjunto híbrido de fragmentos da realidade. Estava desesperado com as suturas recém descobertas, como se tivesse acabado de ganhar vida pela genialidade de Victor; não que o romantismo inglês havia me arrebatado, mas a obra: o monstro de Shelley, seu Prometeu artesão, me fez indagar a constituição humana e apreciar signos antes imperceptíveis. Signos culturais já entalhados na minha vida e configurando minhas atitudes, minhas ações, meu todo. Tinha na verdade signos tatuados na pele, textos culturais inteiros que se deslocavam pelo corpo, entre corpos. Lembrei-me então do filósofo tcheco Vilém Flusser, que afirmava que a “pele é aquela região indefinível e ambígua que separa o Eu do Não-eu, e que comunica entre ambos.”[3] Uma fronteira de mundos. A pele me coloca dentro de mim, onde me vivencio por dentro, mas ela se dissolve no mundo com as relações sociais, com os signos que carrego. Sou parte do contexto, enquanto o contexto me pertence.
Por um momento tresloucado viajei mundos no dorso do vento e dos grãos de areias nômades, na verdade, ao lado de Cortázar dei A volta ao dia em 80 mundos e conheci oitenta Eus distintos, que se convergiam somente na palavra, no enunciado. Uma experiência única, como atravessar o espelho ou entrar na toca do coelho; ou mais especificamente, percorrer como Oliveira uma Rayuela labiríntica de signos dialógicos e atravessar seus mundos possíveis: Del lado de allá, Del lado de acá, De otros lados. Um deslocamento de si e dentro de si; um perturbar do mundo dual de Aristóteles e seus princípios lógicos.
Acordei com o sopro instantâneo de Clarice e como ela, teria que “ter paciência para não me perder dentro de mim”[4]. Nesse instante, como se deslocado de meu próprio corpo – suspenso num balão de ar quente -, pude notar que não era uma construção do Eu, da identidade iluminista, mas uma construção de Outros, das relações. Era um ser humano projetado e construído por mim e por outros seres humanos. Alguns até vomitariam perversão ou prepotência com tal afirmação e isso, de fato, me enlouqueceu por instantes (quase) infinitos. Havia perdido meu Ego? Havia perdido a razão? A memória? Não, havia perdido as rédeas de minha personalidade freudiana e a sensação dessa liberdade me sufocou até me jogar fora de mim. Sim, fui expulso, deportado para uma região estrangeira, como diriam Blanc e Bosco, “num rabo de foguete”. Um sobressalto que me fez observar um Eu desconhecido, que sentado e de pernas cruzadas, sorria com olhos oceânicos. Na verdade, percebi que estava diante dos oitenta Eus, todos distintos, como fragmentos de um jarro ao chão.
Olhei rapidamente a minha volta e percebi o universo que se desdobrava à la Van Gogh. Em uma sala imensa, com sofás, mesas, bancos, carpetes e algumas estátuas cubistas - todos vibrantes e difusos -; descobri que havia heterônomos vivos e que bailavam mascarados, sorridentes, carnavalescos: uma reunião do Eu profundo e os outros Eus. Confesso que fiquei assustado, mas logo extasiado com as cores que se convergiam em suas risadas. Havia até um Cronópio, uma Esperança e uma Fama (Talvez todos tenhamos os três)
Incredibile est!  Seríamos todos construídos de partes, de peças individuais, trançados e unidos para ganhar vida e viver como um ser estranho de nossa própria condição? Seriamos múltiplos dentro de um? Seria na verdade um desatino? Não, peças de mim.
Essas questões, sob o calor de um dia seco em Cuiabá, me levaram a refletir por um longo tempo. Levaram-me a uma nova apreensão intuitiva da realidade; dotado, é claro, de olhos inquiridores que não eram meus, mas de outro, de outros. Foi assim que recorri ao pensador russo Mikhail Bakhtin que, sabendo dos oitentas mundos, disse (talvez com uma xícara de chá nas mãos): “O eu esconde no outro e nos outros”[5]. Um eu-signo incisivo e sutural: “um fragmento material da realidade. [onde] Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer.”[6]
Desta forma sou um enxerto de signos e os Outros são meus enxertos. Enxertos que são suturados na minha pele porosa, prosaica, poética, quimérica, pele que me cerca e me dá forma, me transforma num livro de histórias sobrepostas, alinhadas caoticamente em mundos particulares. Sou lido e leio o mundo. Traduzo pessoas e sou traduzido, posso dizer que somos etnógrafos de berço - integrando progressivamente na língua materna -, e fazemos sempre a descrição densa a moda geertziana (todos temos um antropólogo interior). Temos um discurso social que confundem vozes, signos da comunicação entre Eu, Eus, Outro, Outros; um plurilinguismo que se manifesta num único ser, transformando-se numa Hidra de oitenta cabeças.
Sou uma peça de construção do outro, dos outros e de todos que me cercam, mais exatamente, sou um grande quebra-cabeça de signos em movimento contínuo e ininterrupto, que à medida que confronta com Outros, vou me desenhando como um texto-caixeiro-viajante, um quebra-cabeça extensivo, que se transfigura numa Quimera impossível a qualquer Belerofonte.
Engraçado como a mitologia permeia a língua e dela se mantém viva. Ela sempre exprimiu a hibridação, os signos sobre os signos, justapostos e mesclados ao corpo, assim também nasceu o centauro, o minotauro, a sereia, a medusa, a esfinge, a harpia, a fada e as demais divindades egípcias, gregas, chinesas etc. Homens-animais ou animais-homens mesclados, únicos: sujeitos frankensteinianos criados por algum Cronópio.
Utilizando os manuscritos bakhtinianos como bússola, percorro o mundo montado num Náutilus dialógico trazendo filósofos, pensadores de todas as estirpes para um grande diálogo, uma confissão de signos que discorre pela vida, entre vidas. Eles me preenchem de significado, me trazem acabamento.
Assim percorro mais de vinte mil léguas de signos culturais, que vivem em “essência sobre fronteiras”[7], se transformando continuamente. Em silêncio absoluto, desfruto dos mundos secretos que carrego dentro de mim, no consciente. Mundos culturais que são refletidos e refratados nos signos. Moléculas inteiras de signos em quantum. Deslocado de mim e solto no tempo - talvez um mero e ousado devaneio - pude perceber que Bakhtin havia construído uma arquitetônica sígnica dialogando com o princípio da incerteza de Heisenberg e o princípio de complementaridade de Bohr: um signo-quântico que, dependendo do observador e do contexto, se materializa revelando seu significado.
A voz cartesiana cogito ergo sum desaparece dando lugar ao Jazz, ao Blues: ao improviso harmônico das vozes que se entrelaçam ritmando a música, embalando a organicidade dialógica do signo interior, na consciência (meus Eus) e exteriores (Outros), viventes das fronteiras, como objetos materiais, palpáveis, onde “a realidade externa invade a consciência a cotoveladas”[8] Nesse momento pude até ouvir Robert Johnson toar em sua guitarra cantante Cross Road Blues cheio de agudos estalados, na verdade, dizia repetidamente Everybody passed me by com um largo sorriso.
Meu celular, relógio, óculos, camiseta, calça, tênis, brinco (etiquetados ou não: anunciados pela poesia de Drummond) são expressões de mim; signos exteriores que me compõem e me traduzem para Outros. São Eus, peças que me delimitam. Entretanto, sem eles, sou outra coisa qualquer, mas contínuo sendo “Eu”. Esse movimento de mim me coloca na incerteza, na complementaridade, no diálogo entre signos. Na realidade sou composto pela diferença, pelo observador. O outro me dá acabamento. Sou um signo multifacetado de significados, mas somente descoberto na relação, no diálogo, na contrapalavra.
Voltando à literatura vitoriana de Shelley, Victor Frankenstein ao criar sua criatura, se debruçou sobre a necessidade de reunir diversos órgãos de outros seres humanos para dar vida a um “monstro-humano” único. Carregou-o de variadas peças: músculos, fibras, nervos, ossos, sangue, cartilagem; enfim, composições anatômicas acrescidas da fisiologia para juntar e formar um único ser, diferente e com suas próprias particularidades. De fato, esse despertar de mim, de minhas partes, me fez crer que todos somos Criadores e Criaturas. E a criação está na palavra, na apreensão do signo do Outro, pelo Outro. A eletricidade que Victor utiliza para dar vida ao seu monstro está na verdade dentro da palavra, das palavras que são fiadas para dar vida ao tecido social. Bakhtin me criou, assim como Cortazar e os demais escritores/pensadores que me cercam, vivem dentro de mim. Foram signos enxertados na minha carne, órgãos que pulsam na minha consciência construindo meus Eus, meus oitenta mundos.
 “Palavras são pedaços de tempo. Falar é soltar instantes pela boca.”[9] Instantes que não passam de reflexos ideológicos da realidade. Ao conhecer meu próprio mundo, no momento da exotopia (ao acordar), descobri que minhas palavras não são minhas, elas são do outro, vivem no terreno interindividual das relações, unindo, criando pontes entre consciências, entre Eus e Outros. Minhas palavras são discursos anteriores, assim como os sucessores. “Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda minha vida é uma orientação nesse mundo; é uma reação às palavras do outro”[10]
Além da sensação kafkiana me senti rapidamente num romance de Virgínia Wolf, confundido, entre Eus e Outros. Tive a oportunidade de conhecer a Sra. Dalloway e suas idiossincrasias, vivenciar o elo da vida e dos enunciados agenciados.
O acordar estranhado me fez viajar entre Eus desconhecidos, oitenta mundos em um dia, tudo transcrito em um texto desvairado, cheio de signos de Outros. Descobri nessa viagem a literatura, que significa minha vida e além; um Júlio que se tornou sutura de minha composição, parte de minha carne; e descobri que sou muito além do projeto iluminista, onde “Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade.”[11]

Bibliografia
AMORIN, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Ed., 2004.
BAKHTIN, Mikhail M. Estética da Criação Verbal. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
________. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Unesp, 1993.
________. Marxismo e filosofia da linguagem. 9ª ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec, 1999.
CORTAZÁR, Julio. Rayuela. Edición critica, Julio Ortega y Saúl Yukievich (Coord.) 2ª Ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, 1996.
________. A volta ao dia em 80 mundos. Tomo I. Trad. de Ari Roitman e Paulina Wacht. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
PONZIO, Augusto. Revolução bakhtiniana. [Coord. da Trad.] Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008.
MOSE, Viviane. Desato. Rio de Janeiro/ São Paulo: Editora Record, 2006.
LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida. Editora Nova Fronteira, 1978.



[1] Relendo Bakhtin – ReBak - é um Grupo de Estudos coordenado pela Prof.ª Dr.ª Simone de Jesus Padilha.
[2] Graduado em Letras/Espanhol pela Universidade Federal de Mato Grosso e aluno vinculado ao Programa de Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO/UFMT.
[3] 1998, p. 166
[4] Lispector, 1979, p. 13
[5] 2003, p. 383
[6] ibidem, 1999, p. 33
[7] Bakhtin, 1993, p. 29
[8] Cortázar, 2010, p. 99
[9] Mosé, 2006, p. 86
[10] Bakhtin, 2003, p. 379
[11] Idem, p. XXXIV

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