Neiva de Souza Boeno
professoraneivaboeno@gmail.com[2]
A vida por sua natureza é dialógica.
Viver significa participar de um diálogo. (Bakhtin, 1979)
Refletir a vida na contemporaneidade requer a busca de sentidos como unidade para as ações éticas nas diversas esferas da atividade humana. O todo relacional disso compõe a arquitetônica do mundo, assim na arte como na vida. De acordo com Bakhtin, a arquitetônica da visão artística organiza tanto o espaço e o tempo, quanto o sentido, as conexões significativas e constitutivas do ser. Esse “todo” tem relação com o acabamento, que se vincula ao excedente de visão como elemento constitutivo basal tanto da interação quanto da atividade autoral. Entenda-se essa arquitetônica do pensamento bakhtiniano como diálogo em todas as categorias.
Assim, a reflexão inicial propõe-se a analisar as relações na vida, pois a vida, como um todo arquitetônico, é dialógica. E, nesse contexto, o eu-no-mundo, enquanto sujeito, é responsável por todos os momentos constituintes de sua vida porque seus atos são éticos.
Por estas razões, quero considerar a necessidade ética, numa dada esfera que utiliza a linguagem telemática como recurso para sua formação profissional, dentre as muitas possibilidades presenciais, pois se tem o fundamental compromisso humano que é o ato de pensar, que deriva ações éticas.
Muitos profissionais da educação se interessam e se inscrevem para realizarem o seu compromisso de estudos e melhorarem sua prática em sala de aula. Nesse contexto, tem-se o surgimento de múltiplos cursos virtuais de formação continuada por meio do uso da telemática3. Tomarei como exemplo o Curso Virtual de Artigo de Opinião do Programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro[3].
Quando o curso abre inscrições, logo as turmas são completadas, pois o interesse é grande, o compromisso humano e profissional é registrado. Mas quando analiso alguns resultados, percebo ausências e presenças, em índices diferentes, dos profissionais inscritos. Porém, tanto na ausência ou presença, as relações dialógicas são estabelecidas, segundo as concepções bakhtinianas. Assim, justificarei meu entendimento.
Pensando nas ações humanas, que tem seu álibi na própria existência e que toda ação requer uma reação, seja responsiva ou não, o ser é totalmente ético. Desejo aqui esclarecer o termo ética, segundo a visão bakhtiniana, que trata do ato de viver, como atitudes simples da vida singular, individual e em sociedade, em pares, onde o ser ousa, compromete-se, deixa sua assinatura, sua impressão, sua história nesse viver, que requer muita responsabilidade e responsividade. Conceitos que abordam toda a obra de Bakhtin e que aqui nos interessa.
Dessa postura bakhtiniana, pode-se depreender duas possíveis leituras que demonstrarão as conexões e produções de sentidos estabelecidas nas relações entre a mediadora e os cursistas do Curso Virtual Artigo de Opinião, como atos éticos, cada um na sua responsabilidade e responsividade de ser na vida, como já dito anteriormente,
Primeiramente, é inevitável considerar, neste mundo contemporâneo, a influência das tecnologias e mídias enquanto instrumentos essenciais às várias esferas da atividade humana. Pensando desse modo, o mundo em que se predomina a ideologia da produtividade e da eficácia, o uso dessas tecnologias e mídias define a arquitetura do século XXI, concernentes à vida e as ações humanas éticas provenientes da interação dialógica tecida entre os seres no mundo.
A utilização das novas tecnologias da informação é importante também para gerir cada vez mais a quantidade de informação disponível, e a utilização da telemática[4] permite que o trabalho seja partilhado ou compartilhado muito facilmente, levando em consideração a não necessidade da presença física para o sujeito se constituir, se formar.
O curso virtual, que ora analiso, utiliza-se de todo tipo de ferramentas disponibilizadas pela Internet, desde o correio eletrônico, adequado para troca de mensagens de caráter particular ou coletivo, o blog para respostas das atividades nos módulos, vídeos ilustrativos e orientativos, entre outras. Os textos e imagens podem ser facilmente transferidos entre os interlocutores e a informação pode ficar disponível para que, mais tarde, outros cursistas possam consultar. O discurso escrito, vivenciado e compreendido pelos cursistas fica registrado, e pode ser visualizado pelos demais e receber comentários.
De acordo com Bakhtin (1992), as atividades humanas, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com o uso da língua e os enunciados, sejam orais ou escritos, concretos e únicos, são emanados pelos integrantes relacionais em cada esfera. Daí o sentido para o dialogismo, o diálogo (dia – através/entre; logo: discurso) dos seres em todas as esferas da atividade humana e principalmente em relação ao objeto aqui citado.
Penso que a interação e a relação dialógica, entre mediadora e cursistas, é permeada de sentido, afetividade, conexões, mesmo que sem a presença física, tanto quanto valorosa esteticamente, se comparada a uma sala de aula presencial.
Vejamos o discurso de duas cursistas que demonstra a riqueza das conexões e produção de sentido, via uso da telemática.
Primeiramente gostaria de pedir desculpas por não justificar antes o atraso de minhas tarefas. Pensei que por não realizá-las no prazo, as mesmas não seriam avaliadas. Em segundo lugar, não faço nenhuma tarefa antes de ler todo o material, embora já tenha certa experiência com o artigo de opinião. Estou achando fantástica a forma de encaminhamento do curso. Estou muito atribulada com um projeto de produção de textos para o ENEM, pois tenho 5 turmas de terceiro ano. Tenho duas tarefas prontas e não consigo tempo para digitá-las. Realmente me entristece não poder neste momento participar mais ativamente e interagir com os colegas do curso. Com o feriado pretendo colocar tudo em dias. Enfim, agradeço pela atenção e por me permitirem continuar mesmo nestas condições. Sei perfeitamente que esta é uma oportunidade que de forma nenhuma pode ser desperdiçada.
Muito grata, Abraços (Curso Artigo de Opinião, AGO 2010)
O segundo discurso, de outra cursista da mesma turma:
Ok professora, acho que estou em dia com minhas atividades, não estou? Estou engatinhando no quesito tecnologia (estou no curso TICs), mas o que consegui entender, fiz. E até agora gostei. Abraço. (Curso Artigo do Opinião, AGO 2010)
Visivelmente, percebe-se que essa relação que se dá num outro espaço, e num outro tempo, que a cada ser lhe é facultado (conforme suas necessidades), não anula o ser individual, seu histórico-social de vida, ele é constituído no transcorrer do tempo e do desenvolvimento de competência, principalmente quanto ao uso da telemática e, que passa a ser constituído também na relação que se estabelece de confiança, de alegria e de prazer em ser constituído no outro ou pelo outro.
Acredito que, nessa abordagem, é necessário falar da alteridade, tão fundamental nas concepções de Bakhtin, outro tema recorrente em sua obra e que dá o tom de humanismo nas relações éticas do ser, a qual primo, principalmente por se adequar tão bem à questão da educação.
A alteridade define o ser humano e suas relações cotidianas. É impossível pensar no homem fora das relações que o ligam ao outro ser humano, e nas comunicações virtuais, mesmo que na ausência da corporeidade, materialidade dos seres face a face.
Vejamos agora o discurso da mediadora, tutora do curso virtual de Artigo de Opinião, já citado.
Olhe, confesso que estou um pouco decepcionada com a mediação. Eu tenho me esforçado tanto, enviado e-mails sempre, orientações com detalhamento em slides, tiro dúvidas com exemplos, envio exemplos para que façam as atividades, mas o retorno não tem sido dos melhores. (desabafo da mediadora com a responsável estadual pelo Curso Virtual, AGO 2010)
Mesmo que aparentemente seja tido como um discurso que apresente marcas negativas de apreciação de um fato, no caso da ausência de cursista, ele apresenta outras conexões, a meu ver. Primeiramente ele está imbuído por inúmeros discursos, os discursos interiores da mediadora, enquanto ser-no-mundo, isto é, discurso recheado por seus pensamentos, suas ansiedades, sua história, sua vida, e inevitavelmente são diálogos. O diálogo não é uma proposta, uma concessão, um convite do eu, mas uma necessidade, uma imposição, em um mundo que já pertence a outros.
Além disso, no diálogo explicitado da mediadora, percebe-se outra dimensão, a complexidade do ser, do eu em relação a si e ao outro, pois o locutor sempre pressupõe algo do seu interlocutor. O que dizer da ausência de um cursista virtual? O que houve em sua vida cotidiana que não possibilitou sua efetiva participação no referido curso ao qual se inscreveu? Mesmo sem saber a resposta, ou de não a receber materializada, sabe-se que a ausência do cursista produzirá sentidos na mediadora e na sua vida. Ela se constituirá também nesse ato ético do outro.
Como Bakhtin alertou-nos, o diálogo acontece mesmo que a resposta não seja verbalizada, em nosso caso, telematicamente registrada como se pretendia, devido ao conceito, ao juízo abstrato da consciência dos interlocutores. Dessa forma, é possível entendermos a dialética no nível da consciência humana. Refletindo na constituição da consciência humana, para explicitar a concepção bakhtiniana de estético, reporto-me ao seguinte trecho de Ponzio, p. 108, que trata:
"de um processo que busca representar o mundo do ponto de vista da ação exotópica do autor, que está fundada no social e no histórico, nas relações sociais de que participa o autor"
Eis o estético da vida!
Por isso, no discurso da mediadora, nada mais contemporâneo do que se ela esperar que o outro esteja conectado em seu eu, nessa interação por meio da telemática, ou seja, da interação virtual mediada pela escrita digitalizada.
Nesse contexto, que traz a noção de interação virtual à linha de frente, mesmo que alguns cursistas não participem efetivamente, outro pressuposto importante é de que uma formação não se faz apenas com um único tipo de discurso, e por meio da telemática, quantos são possíveis, vejam só: links, hipertextos de natureza explicativa, orientativa, prescritiva, sequência de palavras de ordem, quer se trate de fóruns, de chats, blogs, e-mails, vídeos, entre tantas outras ferramentas que possibilitam novos discursos.
Compreender melhor essa relação, virtual, de vivência estética que gera nos interlocutores envolvidos sentimentos diversos, ansiedades, angústias e alegria quando se vê a resposta e a participação do outro, o outro que está responsivo, responsável e ativo no processo de aprendizagem virtual é uma outra necessidade ética, seja no nível particular, individual ou institucional.
Para finalizar, concluo que as conexões e os sentidos estão presentes na interação entre os interlocutores, seja por meio da escrita digitalizada ou ausência dela (refletida no desabafo da mediadora), no curso ora analisado, garantida, não pela presença de um corpo, mas por uma nova possibilidade de relação dialógica, de um diferente modo de presencialidade, e que está tão crescente em nossa sociedade.
Assim, tanto a mediadora quanto os cursistas produziram sentidos no outro, explicada nas ações que desempenham no mundo estético. Por mais, que as conexões e os sentidos produzidos nessa interação dialógica não sejam percebidos no cotidiano por esses interlocutores, tenho certeza que no decorrer do tempo e espaço, serão referenciadas no presente e quando se fizerem necessárias, produzindo novas conexões e interações que se estabelecerão com outros.
Além disso, essas conexões não têm acabamento, pois na arquitetônica da vida é possível vislumbrar a rede de outras novas conexões que partiram dessa, ora analisada, pois os resultados refletiram nos gestores do curso virtual, nas instituições parceiras que apóiam o projeto, e nos seres humanos que representam essas ações éticas.
A relação dialógica por meio do uso da telemática produz sentido, produz conexões e se abre para novas possibilidades de interações, seja no nível particular, individual, institucional, no social como um todo. Esse todo referendado por Bakhtin como arquitetônica da vida, em que os atos éticos conscientes ou não, enriquecem e renovam o círculo da vida.
Referências:
AXT, M. Linguagem e Telemática: tecnologias para inventar-construir conhecimento. Educação, Subjetividade & Poder, 1998.
BAKHTIN. M. Os gêneros do discurso. In BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_______ (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.
PONZIO, A. Filosofia moral e filosofia da literatura. In: A revolução bakhtiniana. Trad. Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2008
[1] Relendo Bakhtin (REBAK) é um Grupo de Estudo coordenado pela professora doutora Simone de Jesus Padilha e que tem a participação de alunos da pós-graduação em Estudos de Linguagens do MeEL-UFMT.
[2] Integrante do grupo Relendo Bakhtin (REBAK), formada em Letras pela UFMT, professora efetiva da rede pública e atualmente trabalha na Coordenadoria de Projetos Educativos, na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso.
[3] Programa de Educação organizado pelo CENPEC – Centro de estudos e pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária e Fundação Itaú Social, adotado como Política Pública pelo MEC e desenvolvido por meio de parceiros, entre eles: CONSED, UNDIME, CANAL FUTURA e Universidades públicas.
[4] Conjugação dos meios informáticos com os meios de comunicação à distância em som e imagem, in: http://wiki.dcc.ufba.br/NEPEDI/OconceitodeTelematica acessado 18 de setembro de 2010.
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