segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Aspectos da eficiência da carnavalização na heteroglossia



Luísa Leite S. de Freitas*



Tanto o carnaval – e seu riso festivo – presente na literatura quanto a vivência efetiva do mesmo, para Bakhtin, são essenciais para o ser humano pela interação única que promovem, em que não há separações nem constrangimentos comuns à vida cotidiana. Há, ao contrário, uma união geral

[...] que liberta do medo, aproxima ao máximo o mundo do homem e o homem e do homem (...), com sua alegre relatividade opõe-se somente à seriedade oficial unilateral e sombria, dogmática, hostil aos processos de formação e à mudança, tendente a absolutizar um dado estado da existência e do sistema social (BAKHTIN, 2005, p.161).

Tem, portanto, capacidade de influenciar na vida alheia e na celebração carnavalesca em si. Além da importância essencial que Bakhtin atribui ao riso festivo na vida em geral, há uma particularização dessa relevância para o homem da Idade Média. Todos os atos cômicos dos festejos carnavalescos eram essenciais e se apresentavam como uma contraparte dos ritos oficiais – da Igreja e do Estado –, a eles se opondo no caráter funcional e no modo de realização. Essa dualidade, que tem como centro a diferença entre o sério e o humorístico é, aos olhos de Bakhtin, inegável.
A heteroglossia – que supõe uma visão complexa da cadeia de comunicação, com uma visão dinâmica dos pontos significativos – parece se alojar, na carnavalização, de forma absolutamente confortável, estando inserida em contexto perfeito para que a identifiquemos certos aspectos com amplo leque de abordagens. Isso deriva-se do fato de que, na carnavalização, existem diversos sujeitos – e não um sujeito e um ouvinte (aos moldes de Jakobson, um emissor e um receptor). O diálogo é amplo e não polarizado, não havendo uma visão de mensagem sem visão do contexto em que ela é formada e transmitida. Abrem-se uma série de pontos em vez de ver dois pólos com um receptor passivo e um emissor isolado. Além disso, a heteroglossia na carnavalização é tão eficiente graças ao processo de aterrissagem, da planificação dos sujeitos.
Tal planificação, tratando-se de uma nivelação – ou melhor, uma ausência de níveis que normalmente existem, como nas hierarquias sociais presentes no cotidiano, constantemente modificando e direcionando as relações com noções explícitas ou subentendidas de autoridade, respeito etc. –, coloca-nos defronte a especificidade da carnavalização que mais contribui para que a defendamos como a forma mais criativa de heteroglossia. Nela, é possível a igualdade entre todos os seres humanos graças a essa ausência de mediadores nas relações que alteram o comportamento, reprimindo certas atitudes em nome de convenções a que estamos submetidos na maior parte do tempo, mas não no ambiente do riso festivo. Essa igualdade permite não apenas a visão (e vivência) temporária de um ideal utópico, mas permite acima de tudo que desapareça a alienação que reprime: “O indivíduo parecia dotado de uma segunda vida que lhe permitia estabelecer relações novas, verdadeiramente humanas, com os seus semelhantes” (BAKHTIN, 1965).
Assim, um indivíduo, sentindo-se em igual patamar em relação aos demais, poderia tratá-los – e criticá-los – livremente, ao contrário do que o cotidiano permite. Essa possibilidade é universal naquele ambiente, por ser irremediavelmente mútua em seu próprio caráter generalizante. Até mesmo a ausência da distinção de atores e espectadores, palco e platéia, reforça tal planificação. Tal importância tem relevância especial no contexto de intensas hierarquias da Idade Média.
Sendo um acontecimento rico em trocas, a carnavalização tem enorme potencialidade crítica. Não deve ser incluída, portanto, em classificações de utopias conservadoras e tradicionais, em que a referência a um passado venerado não induz a modificações na sociedade em seu formato vigente. É alvo de críticas por parte de Bakhtin a “usurpação da imagística utópica (...) pelo reforço ideológico de uma ordem social centralizada e repressiva em termos bem parecidos com aqueles descritos por Jameson, Godwiin e outros” (GARDINER, 2002, p.233).
Então, a capacidade crítica é intrínseca, corrobora a visão de heteroglossia e, obviamente, é de extrema relevância para a visão da carnavalização alinhada a todas as atividades de função constantemente autorreflexiva. Não reforça nem se submete à vigência social, qualquer que seja, pois se livra de muitas de suas amarras, com a igualdade libertadora. Tem, então, um forte caráter oposicionista e a possibilidade de relativização da ordem estabelecida, por trabalhar com uma segunda dimensão que flexiona os valores do cotidiano. Gardiner compara essa capacidade com as vanguardas modernistas e cita Bauman dizendo que há a possibilidade de encontrar possíveis alternativas a problemas concretos do presente vivido. Este, em sua obra Socialism: the active utopia, coloca que “utopias compartilham com a totalidade da cultura a qualidade de uma faca cuja ponta está apontada contra o futuro.” (BAUMAN, 1976 p. 12). Em um trecho posterior, menos metafórico, diz: “Qualquer que seja a natureza de um homem, a capacidade de pensar de uma forma utópica envolve a habilidade de quebrar associações habituais, de emancipar alguém da aparentemente devastadora dominância, tanto mental quanto física, da rotina, do ordinário, do 'normal'" (BAUMAN, 1976 p. 11)”. Esse pensamento é constante na carnavalização da óptica bakhtiniana.
Esse caráter subversivo reitera ou mesmo amplia a visão de heteroglossia na carnavalização, incluindo uma série de possibilidades na comunicação. A força da autorreflexão tem o mesmo efeito, pois, estando em igualdade, os indivíduos estão todos imersos em vivências potencialmente modificadoras, renovadoras, não-alienantes. A carnavalização permite não apenas que uns ironizem, satirizem, critiquem e riam de outros, mas permite também a ironia e a sátira sobre si mesma. Não se trata, então, de mero escapismo, sem efeito nem proveito.
A visão de heteroglossia altamente eficiente na carnavalização se confirma ainda em outra característica intrínseca, que é o riso essencialmente coletivo. Não se trata, como já dito, de um riso individual, nem de ironias particularizadas, em que há um sujeito e um receptor. O riso festivo é, de partida, coletivo. Universal, portanto, e ideal para o ambiente planificado que descrevemos. É um riso compartilhado e também dotado de uma ambivalência inevitável, na medida em que corrobora e critica, destroi e reconstroi. 
Já no prólogo de Pantagruel, o primeiro livro de François Rabelais, percebe-se a intensidade que afirmamos ter o aspecto da heteroglossia sob a carnavalização. Diversos itens do discurso podem ser identificados de modo a possibilitar essa visão. O uso de superlativos, de vozes que se assemelham a pregões de charlatães de feira, figuras populares que falavam alto pelas ruas, como vendedores ambulantes que ofereciam seus produtos. De maneira análoga, Rabelais discorre sobre seu livro: “Encontrem-me um livro, em qualquer língua, em qualquer faculdade e ciência que seja, que tenha tais virtudes (...). Não, meus senhores, não. Ele é ímpar, incomparável e sem termo de comparação. Eu o sustento, até diante da fogueira” (RABELAIS, 1972, p.08).
Bakhtin, sobre a referência a tantas vozes do carnaval medieval presentes no discurso de Rabelais, quanto ao supracitado prólogo, diz: “A cultura da língua vulgar era a da palavra clamada em voz alta ao ar livre, na praça pública e na rua. E os ‘pregões de Paris’ ocupavam nela lugar de destaque.” (BAKHTIN, 1965, p.158). Esse discurso hiperbólico dos charlatães que o autor pega emprestado está diretamente relacionado à situação do riso festivo em que estão inseridos. Eles estão contaminados, influenciados pela festa que acontece a sua volta. Assim, brincam, também, participando dessa mesma atmosfera, ao mesmo tempo em que exercem seu trabalho de vender.
O produto que vendem se torna, então, um ponto de partida para brincadeiras, e esses exageros no discurso marcam tal comportamento. Há, ainda, a referência a fogueiras, tão marcantes na Inquisição. É como se o autor, nesse prólogo em que fala diretamente aos potenciais leitores, tivesse absoluta consciência do peso de sua obra (em termos de provocação, tendendo até mesmo à profanação) e, ao mesmo tempo, exagerasse esse peso por outro lado (considerando o livro mais importante que qualquer outro, inclusive, parodicamente, a Bíblia Sagrada).
Neste sentido, Augusto Ponzio, ao tratar das visões e representações artísticas do romance pode nos auxiliar a pensar os aspectos da eficiência da carnavalização:

Bakhtin chama de “carnavalização” da literatura a transposição da linguagem do carnaval à linguagem literária, que se reflete em várias formas simbólicas (ações da massa, gestos individuais etc.), unificadas pela visão comum do mundo que todas elas expressam. Entre essas duas linguagens, o carnavalesco e o artístico-literário, produz-se uma relação de afinidade que tem permitido, historicamente, a passagem da primeira para a segunda, isto é, a transposição, a tradução da linguagem carnavalesca para a linguagem da literatura (2010, p. 172).

Vemos, então, como a heteroglossia liga-se à carnavalização. Esta e seus ambientes festivos marcam a facilidade da eficiência e da ampliação do caráter de heteroglossia dos discursos, a exemplo de Rabelais e com o destaque para a Idade Média graças à relevância específica que a carnavalização tem nesse contexto – de intensa hierarquização e repressão, em que as festas populares eram mais, muito mais que escapismo ou mudança temporária no cotidiano. A carnavalização, em seu caráter crítico e subversivo, de oposição ao que é dominância, tem importância incomensurável no papel de reflexão e de renovação – e isso contribui também, por sua vez, para a criatividade suprema da heteroglossia concretizada na carnavalização.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BAUMAN, Zygmunt. Socialism: the active utopia. Londres: George Allen & Unwin, 1976.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Prefácio de Tzvetan Todorov, introdução e tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

_________________. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento – O contexto de François Rabelais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

GARDINER, Michael. “O carnaval de Bakhtin: a utopia como crítica” In Mikhail Bakhtin – Linguagem, cultura e mídia. Organizadores Ana Paula Goulart Ribeiro e Igor Sacramento. São Carlos: Pedro&João Editores, 2010.

PONZIO, Augusto. A revolução bakhtiniana. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

RABELAIS, François. Pantagruel [1564], établi et annoté par Pierre Michel. Librairie Générale Française: Paris, 1972.



* Aluna do Curso de Letras – UnB. Pesquisadora do Grupo: Literatura e Cultura – CAPES. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Augusto Rodrigues da Silva Junior (TEL/UnB). E-mail: luisa.lsf@hotmail.com

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