segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A linguagem da criança no período de aquisição: afinal, o que é o dado?



Rosângela Nogarini Hilário
UNESP/FCLAr
Relacionar as reflexões propostas pelo Círculo de Bakhtin com Aquisição de Linguagem tem sido extremamente proveitoso para os estudiosos da área. Até então as teorias eleitas para análise dos dados provenientes da fala da criança acabavam por apagar o sujeito falante e sublinhar a língua que estava por ser adquirida. Os dados, após sofrerem explícita pasteurização em busca de construções que revelassem apenas os conhecimentos que a criança já demonstrava saber acerca do código linguístico (BROWN, 1973), tornavam-se descaracterizados. A tentativa de buscar no falar infantil o reflexo da linguagem utilizada pelo falante “mais experiente” desconsiderava que a criança, em seu modo particular de expressar-se na língua(gem), inseria em seu falar toda a sua subjetividade. Por outros lado, as teorias que rejeitaram este modelo e consideravam as especificidades do falar infantil (LEMOS, 1995) carregam consigo a noção de que há uma dependência entre os enunciados da criança e do Outro, sendo este Outro uma personificação da língua. A criança, enquanto ser ativo, sujeito único, e a enunciação, enquanto ato irrepetível, ficavam também descaracterizados.
            Então, Fredéric François (1994) traz para a área as reflexões sobre língua e linguagem propostas pelo Círculo de Bakhtin. A partir delas, podemos entender esta criança, no período de aquisição da linguagem, não mais como coadjuvante do adulto, que supostamente detém maior saber acerca da língua, mas como ser ativo, que se constrói na língua enquanto nela é imerso. Todas as questões acerca do discurso – a organização em enunciados relativamente estáveis (BAKHTIN, 1997), as ideologias intrínsecas a ele (BAKHTIN/VOLOSHIVOV, 1992), a atividade responsiva-ativa (BAKHTIN, 1997), a indissolúvel união entre material verbal e extraverbal na construção do significado, do sentido, (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1981), as relações entre a representação literária e o discurso da vida, entre outras – são trazidas para os estudos acerca da linguagem da criança. O foco agora não é mais a existência ou não de um dispositivo inato, um aparato cognitivo específico para a Aquisição da Linguagem, mas a constituição do sujeito social/individual na língua(gem), com suas particularidades, suas especificidades, com sua fala singular, embora social, não mais pasteurizada. Se isso nos traz mais alento? Por um lado sim, pois podemos, finalmente, tratar os dados exatamente como os temos: particulares, singulares, específicos, únicos. Podemos, enfim, buscar a significação para além das formas linguísticas, no evento da vida em que o ato enunciativo se instaura, com toda a riqueza que nele se apresenta: a entonação (DHALET, 1997), a conivência entre os falantes, necessária para determinadas produções (DEL RÉ, 2003), os formatos e rotinas definidos, que possibilitam o intercâmbio de papéis (BRUNER, 2004a, 2004b), os movimentos discursivos e ao continuidade e descontinuidade no discurso (FRANÇOIS, 1994), a liberdade do dizer, no sentido de que a criança ainda não está totalmente “engessada” pela normatividade da língua (FRANÇOIS, 2006). Por outro lado, a profundidade das reflexões propostas pelo Círculo trazem sobre nós a responsabilidade de não permitir que o senso-comum enfraqueça conceitos importantes como diálogo, polifonia, enunciação... e os que incitam nossos questionamentos neste texto, i. e., as noções de ética e estética em Bakhtin. Questionamentos, estes, que compartilho a seguir.
            As pesquisas atuais em Psicolingüística e, mais especificamente em Aquisição de Linguagem têm buscado confirmar através de dados transversais suas hipóteses sobre como a criança adquire a língua(gem). As pesquisas longitudinais, que lidam objetivamente com dados de apenas uma criança (estudos de caso), não possibilitam  as generalizações  garantidas pelos dados transversais. Entendemos, no entanto, que é no dado longitudinal que o ato enunciativo e o discurso, enquanto evento, podem ser concretamente observados. O dado longitudinal permite que o pesquisador flagre fenômenos dificilmente observáveis em dados direcionados. A subjetividade do sujeito enunciador, expressa na língua(gem), apresenta-se ainda mais palpável no dado longitudinal, nas relações entre o eu e o outro que se instauram no discurso, e não nas relações entre as unidades internas ao código, flagradas no dado isolado. Retomamos aqui um trecho de Estética da criação verbal:
Para afastar qualquer mal-entendido, salientamos mais uma vez que não estamos tratando aqui dos problemas de cognição — da relação da alma com o corpo, da consciência com a matéria, do idealismo com o realismo, etc. O que nos importa é a vivência concreta, seu poder de convicção puramente estética. Poderíamos dizer que, do ponto de vista de uma vivência pessoal, o idealismo é intuitivamente convincente e que, do ponto de vista de uma vivência que tenho do outro, o materialismo é que seria intuitivamente convincente (sem levantar novamente a questão dos fundamentos filosófico-cognitivos dessas correntes). Em termos de valores, o traçado das fronteiras do corpo basta para proporcionar a configuração e o acabamento ao outro, ao passo que esse mesmo traçado não basta para circunscrever-me, pois minha vivência engloba qualquer fronteira, qualquer corporalidade, ampliando-me mais além de qualquer delimitação, e minha consciência elimina o poder de convicção plástica da minha imagem. Donde se segue que, na minha experiência, apenas o outro é vivenciado por mim como algo aparentado, entrelaçado ao mundo e concordante com ele. O homem enquanto fenômeno natural é vivenciado de forma intuitivamente convincente apenas no outro. Para mim mesmo, não sou inteiramente aparentado ao mundo exterior, e
há sempre algo em mim que posso opor a ele. (BAKHTIN, 1997, p.58-59)

De acordo com Sobral (2008)
[...] a filosofia do ato ético (ou ato “responsível” ou ato responsável) de Bakhtin é, em termos gerais, uma proposta de estudo do agir humano no mundo concreto, mundo social e histórico e, portanto, sujeito a mudanças, não apenas em termos de seu aspecto material, mas das maneiras de os seres humanos o conceberem simbolicamente, isto é, de o representarem por meio de alguma linguagem, e de agirem nesses termos em circunstâncias específicas. O empreendimento bakhtiniano sobre essa questão consiste em tentar mostrar como generalizar acerca das singularidades que são os atos sem perder de vista sua singularidade nem a generalidade!
            Neste sentido podemos conceber, também nos estudos em Aquisição de Linguagem, esta busca por explicitar o que é singular na fala da criança em relação, enfim, o que expressa a subjetividade do eu e me distingue do outro, mas também o que a caracteriza como fala infantil? Como analisar o dado proveniente da fala da criança levando em consideração não apenas a interpretação do adulto acerca das mesmas, mas as representações simbólicas concebidas pela própria criança no ato da enunciação?
            Sei que há ainda outros questionamentos pertinentes, muitas reflexões a serem propostas e relações a serem estabelecidas. São elas que me motivam a participar desse diálogo ininterrupto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p.277-326.
BAKHTIN, M. M.; VOLOSHINOV, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
_____. “Le discours dans la vie et le discours dans le poésie”. Contribition à une poétique sociologique. In: TODOROV, T. (1981). Mikhaïl Bakhtine, Le príncipe dialogique. Paris: Seuil. p.181-216. (Trad. port.: Carlos Alberto Faraco e Cristovâo Tezza).
BRUNER, J. Comment les enfants apprennent à parler. Paris: Retz, 2004a.
______. Le développement de l’enfant: savoir-faire, savoir-dire. Paris: Presses Universitaires de France, 2004b.
BROWN, R. A first language; the early stages. Cambridge: Harvard University Press, 1973.
DAHLET, V. A entonação no dialogismo bakhtiniano. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 1997. (p. 263-275)
DEL RÉ, A. A criança e a magia da linguagem: um estudo sobre o discurso humorístico. Tese (Doutorado). São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 2003c.
SOBRAL, A. O “ato responsável”, ou ato ético, em Bakhtin, e a centralidade do agente. Signum: Estudos Lingüísticos, Londrina, n. 11/1, p. 219-235, jul. 2008.
FRANÇOIS, F. O que nos indica a “linguagem da criança”: algumas considerações sobre a “linguagem”. In: DEL RÉ, A. Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolingüística. São Paulo: Contexto, 2006, p.183-200.
______. Morale et mise en mots. Paris : L’harmattan, 1994.
LEMOS, C. T. G. Língua e discurso na teorização sobre Aquisição de Linguagem. In: Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 30, n. 4, p. 9-28, 1995.

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