Lezinete Regina Lemes
O pensamento do Círculo de Bakhtin cada vez mais se torna desafiador para seus leitores e estudiosos, haja vista a complexidade e as teias discursivas que se instauram nos seus diferentes textos. Para compreendermos seus temas, somos levados a todo instante a dialogar com todos os textos que compõem a obra do Círculo. E a temática que vamos empreender neste artigo é a questão da arquitetônica que está ligada às atividades estética e ética do homem social.
Para esse intento, vamos tentar compreender o projeto discursivo da mídia em relação à questão da língua(gem), no que se refere ao domínio da norma padrão pelos falantes da Língua Portuguesa. Em vista disso, faz-se necessário falarmos brevemente sobre a concepção de língua(gem) do Círculo de Bakhtin.
Bakhtin/Volochinov (1929) assumem a perspectiva enunciativo-discursiva para tematizarem sobre a língua(gem). Para isso, posicionam-se contrários a duas correntes teóricas anteriores denominadas — subjetivismo idealista e objetivismo abstrato, que estudavam a língua dissociada das práticas sociais, numa visão estrutural e individual.
No tocante à crítica epistemológica empreendida por Bakhtin/Volochinov às duas orientações supracitadas, evidencia-se que a língua não pode ser vista como um ato de fala isolado nem como um caráter sistemático, normatizador, pois essas visões são incompatíveis com a abordagem sócio-histórica da língua. É a partir dessa abordagem que o Círculo de Bakhtin desenvolverá sua concepção de língua(gem) marcada pela relação dialógica, em que o contexto situacional é inerente à interação verbal.
Segundo Souza (2002), a concepção sociológica do enunciado concreto em que a materialidade da linguagem é vista tanto pela forma verbal quanto pela extraverbal permite que se considere que a criatividade linguística seja concebida como “uma criatividade sociológica e dialógica realizada na interação verbal, ou seja, na dimensão do diálogo entre falantes de uma determinada comunidade lingüística” (SOUZA, 2002, p. 64). Dessa forma, entendemos que o todo arquitetônico das obras do Círculo está centralizado numa visão de língua(gem) entendida como um processo que permite a interação entre os indivíduos, pois eles estão circunscritos em uma determinada situação de comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico.
Entretanto, observamos em nosso cotidiano que a mídia tem evidenciado um outro querer-dizer que se aproxima do pensamento normatizador das correntes teóricas anteriores ao pensamento concreto de Bakhtin acerca da linguagem. Tais apreciações valorativas de alguns segmentos da mídia em relação ao uso da língua pelos brasileiros podem ser exemplificadas pelos seguintes títulos: “Como falar bem” (Revista Língua Portuguesa, março de 2010); “Prepare seu Português” (Revista Língua Portuguesa, janeiro de 2010); “Falar e Escrever Bem: rumo à vitória” (Revista Veja, agosto de 2010); Fala, Gerente! (Revista Você S/A, maio de 2009), Falar e Escrever bem (Revista Veja, setembro de 2001).
Desses títulos, escolhemos a matéria da revista Veja, publicada neste ano de 2010, no que se refere ao uso da língua pelos candidatos à Presidência da República do Brasil. Esse projeto discursivo está ligado à visão de mundo dos jornalistas bem como à suposição de que todos seus leitores também vão assumir essa visão. Entendemos que sua posição pertence a dois eventos que se distanciam e se aproximam em virtude da valoração dada pelos sujeitos participantes.
Assim, a matéria jornalística partiu de um evento único: debate realizado pela emissora Band em 4 de agosto de 2010 com os candidatos à Presidência da República. Nesse evento, esperava-se, segundo os jornalistas, um uso cuidadoso da linguagem por parte dos futuros presidentes:
Na quinta-feira última, a Band levou ao ar o primeiro debate da corrida presidencial deste ano, com a presença dos três principais candidatos – Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva – e de um nanico enfezado, Plínio de Arruda Sampaio. Mas quase nada foi oferecido ao eleitor que porventura tenha assistido às duas horas de perguntas, respostas, réplicas e tréplicas: na maior parte, o debate foi simplesmente ininteligível. Os candidatos, em especial Dilma Rousseff, afundaram-se em anacolutos, solecismos, frases inconclusas e erros gramaticais. Dois homens e duas mulheres cujo ofício público exige a formulação clara de propostas concretas e princípios abstratos falharam todos, em maior ou menor medida, no uso de uma ferramenta básica: a linguagem (Jerônimo Teixeira e Daniela Macedo, Veja, 11 de agosto de 2010).
Entretanto, isso não aconteceu, o que fez com que esse evento se tornasse um mote para um outro evento em que os jornalistas assumiram o papel de agentes fiscalizadores da língua(gem) para apontarem as falhas cometidas pelos candidatos, bem como darem dicas para falar e escrever corretamente:
Serra usa um recurso típico da oratória: a reiteração. Por exemplo, dois “eu vou” consecutivos e, na frase seguinte, vários “de” que, a rigor, seriam dispensáveis. Escrito, não é bonito. Dito, serve para manter a atenção do ouvinte. (Jerônimo Teixeira e Daniela Macedo, Veja, 11 de agosto de 2010).
Dilma comete um erro clássico, e bastante grave, entre os oradores afoitos: não pontua suas orações. É difícil saber onde uma acaba e outra começa. Com os sujeitos e predicados assim embaralhados a inteligibilidade fica seriamente comprometida (Jerônimo Teixeira e Daniela Macedo, Veja, 11 de agosto de 2010).
(Jerônimo Teixeira e Daniela Macedo, Veja, 11 de agosto de 2010).
Esses enunciados estão sustentados por argumentos que levam em consideração a natureza estética, elitista ou aristocrática, política, comunicacional e histórica para a continuidade do pensamento prescritivo no que tange ao ensino da língua(gem).
Dessa forma, podemos dizer que a atividade estética e ética que perpassa esse projeto discursivo dessa matéria da revista Veja procura manter determinados valores estéticos para a língua, uma vez que os jornalistas estão se responsabilizando pelos seus atos, de promover o conhecimento da língua na sociedade. Essa responsabilidade da mídia é observada por Orlandi (2002, p. 208):
A mídia e as novas tecnologias da linguagem certamente trazem nova percepção da linguagem e de sua importância. Isso mexe com o saber sobre a língua, o mercado e o interesse. E sobre o profissional de linguagem, cujo perfil vai-se tornando, de um lado, mais abrangente, e de outro, mais especializado, num movimento contraditório que mostra a relação produtiva da formação de disciplinas concorrentes nos estudos da linguagem: a gramática, a filologia, a linguística, com seus diferentes “ramos”. E as Comunicações.
Segundo Bakhtin (1920-1924, p. 39), “todos os sistemas éticos são normalmente, e corretamente, subdivididos, em ética material (conteúdo) e ética formal.” Para o pensador russo, a ética material visa normatizar alguns valores que são universais:
A ética material procura encontrar e fundar normas morais especiais que tenham conteúdo definido — normas que são algumas vezes primordialmente relativas, mas em qualquer caso universais, aplicáveis a qualquer um.
Diante disso, acreditamos que a atividade ética realizada pelos jornalistas da Veja está fundada nesse princípio. A apreciação que eles têm para a língua, em boa medida, está constituída pelas vozes sociais que admitem apenas a norma padrão. Nessa matéria, encontramos a fala de um professor que representa uma dessas vozes: “ao eliminar as peculiaridades regionais e etárias da língua, a televisão contribui para formar um português urbano padrão”. Assim, a ética material “especifica o conteúdo, o objetivo de uma ação com seus fins” (FARACO & TEZZA, s/d).
De outro lado, temos as cartas dos leitores que respondem positivamente à reportagem, concordando e fazendo algumas colocações que fogem à concepção de linguagem do Círculo bem como aos estudos da linguagem, empreendidos pelos linguistas, sociolinguistas. Vejamos alguns destes enunciados:
Tenho 20 anos e a minha geração usa e abusa das gírias. No trabalho, na faculdade, com os amigos... A linguagem não se adapta conforme o ambiente. Esse vício em nada enrique a língua (Allyson dos Santos, Veja, 18 agosto de 2010).
Comecei bem a semana ao deparar com a capa da Veja: “Falar e escrever bem: rumo a Vitória” (11 de agosto). Senti-me motivada para dar continuidade ao meu trabalho. Sou professora de português e “luto” diariamente para “provar” a importância de dominar a nossa língua. O enfoque dado à reportagem e a contextualização, usando o debate dos presidenciáveis, foram pontos-chave para torná-la uma leitura agradável. Com certeza, usarei o texto em minhas aulas (Maria Goreti Mafra, professora, Veja, 18 agosto de 2010).
A reportagem vem ao encontro do que a Banestes Seguros pretende com o projeto Segure o Português, destinado aos seus funcionários. O curso, que teve início em março, é transmitido em módulos pela internet. Periodicamente, é aplicado um teste, premiando-se os que obtiverem melhor desempenho (José Carlos Lyrio Rocha, Diretor Presidente da Baneste Seguros S.A, Veja, 18 agosto de 2010).
Sobral (2008) fala-nos sobre a atividade estética e ética, baseando-se no texto Para uma filosofia do ato de Bakthin (1920-1924). Segundo o pesquisador, na concepção de ato de Bakhtin, há três movimentos correlacionados: processo do ato, produto do ato e um agente do ato. Estes elementos atestam a diferença que há entre o conteúdo do ato (aquilo que o ato produz ao ser realizado ou se produto) e o processo do ato, quer dizer, as operações que o sujeito realiza para produzir o ato) (SOBRAL, 2008). Assim, a atividade ética é vista a partir do conceito de ato de Bakhtin (1920-1924).
Ao tomarmos esses três movimentos, afirmamos que o processo do ato da reportagem da Veja é levar todos os leitores a terem outra apreciação para com as falas dos candidatos, fazendo com que eles sejam agentes fiscalizadores de sua língua. O efeito do conteúdo desse ato interfere nas ações dos leitores, assim, num movimento dialógico, esse ato que ocorreu num dado evento acaba por estabelecer contrapalavras a favor e contra, endossando aquilo que Bakhtin/Volochinov (1929) afirmam que a palavra é uma “arena de luta”.
Diante disso, a atividade estética realizada pelos leitores estará muito mais próxima dos jornalistas, pois a intenção é interferir no agir dos leitores, no seu mundo, alterando sua atividade estética, quer dizer, fazer com que todos tenham a mesma apreciação para com a língua(gem). Dito de outra forma,
o discurso estético instaura uma representação avaliativa do mundo que na verdade cria — no sentido de construir — um novo mundo, um mundo que não é uma representação ou reflexo diretos do mundo concreto, mas tem esse mundo como seu contexto, sua condição de possibilidade, e como seu objeto, seu conteúdo (SOBRAL, 2009, p. 110).
A partir dos enunciados apresentados, é possível dizer que tanto a mídia quanto a sociedade têm uma visão tradicional para com a língua(gem), pois a questão que perpassa a matéria da Veja coloca em evidência que o “o saber a língua e o saber sobre a língua se conjugam no preconceito social do saber ler e escrever bem (a nossa língua)”, que atravessa toda a história” (ORLANDI, 2002, p. 211). Neste caso, agem as forças centrípetas, pois trata-se de uma arquitetônica ancorada na concepção tradicional de língua.
Assim, essa apreciação estética e ética nos faz dizer que o todo arquitetônico do projeto discursivo da mídia, em geral, está constituído por estes atos: apresentar deslizes de outrem, dar dicas para escrever e falar corretamente e ter resposta positiva por parte dos leitores a respeito de seu projeto. Segundo Sobral (2008, p. 224), “falar de ato é falar de um agir geral, que engloba os atos particulares; por isso, falar de ato é falar ao mesmo tempo de atos.” De forma análoga, afirmarmos que o ato da mídia é publicar reportagens sobre a Língua Portuguesa, já os atos particulares concretos são a materialização desse ato, ou seja, são as matérias veiculadas e as respostas dos leitores no que se refere a essas matérias. E cada um desses atos é de responsabilidade de seus agentes, pois para Bakhtin “não há álibi na existência”, e “os atos do sujeito, sejam ou não voluntários, são responsabilidade sua, ou melhor, ‘responsibilidade” sua, isto é, responsabilidade pelo ato e responsividade aos outros sujeitos no âmbito das práticas em que são praticados os atos” (SOBRAL, 2008, p. 228-229).
Por fim, consideramos que a arquitetônica da mídia está presa à valorização de uma única variante, em que a atividade estética e ética apresentada por ela e pelos leitores visam compreender a língua(gem) dentro de um único parâmetro, numa visão estreita sobre a língua(gem), numa crença de que gramáticas e manuais serão a solução para a fala e escrita dos falantes dos brasileiros. E a compreensão dessa arquitetônica está atrelada à concepção dialógica da linguagem, em que cada ato, cada agir está ligado a diferentes pontos de vista ético-estético, em que a responsabilidade e responsividade é comprometimento dos agentes (sujeitos).
Referências
BAKHTIN, M. M. (1920-1924). Para uma filosofia do ato. Traduzido por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza. Circulação restrita.
______; VOLOCHINOV, V. N (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. Traduzido por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12.ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
ORLANDI, E. O conhecimento sobre a linguagem: mercado e interesse. In: ______. Língua e conhecimento lingüístico: para uma história das idéias do Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.
SOBRAL, A. O ato “responsável”, ou ato ético, em Bakhtin, e a centralidade do agente. Revista Signum, jul. 2008, n. 11/1, p. 219-235.
______.Elementos da teoria estética em seu vínculo com a questão do gênero. In:______. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Mercado de Letras, 2009.
SOUZA, G. T. Introdução à teoria do enunciado concreto de Bakhtin/Volochinov/Medvedev. 2.ed. São Paulo: Humanitas, 2002.
[1] Membro do grupo REBAK (Relendo Bakhtin), MeEL/UFMT, coordenado pela profa. Dra. Simone de Jesus Padilha e Professora de Linguística das Faculdades Integradas ICE e Comunicação Empresarial do Instituto Cuiabá de Ensino e Cultura (ICEC).
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