Rosana do C. Novaes-Pinto
Cada um de meus pensamentos, com o seu conteúdo
é um ato singular responsável meu; é um dos atos de que
se compõe a minha vida singular inteira como agir ininterrupto,
porque a vida inteira na sua totalidade pode ser considerada como
uma espécie de ato complexo: eu ajo com toda a minha vida,
e cada ato singular e cada experiência que vivo são um momento
do meu viver-agir.
(Bakhtin. In: Para uma Filosofia do Ato; 2010, p. 44)
Este texto apresenta uma breve reflexão acerca de questões teórico-metodológicas, no âmbito de minha atuação como docente e pesquisadora na área de Neurolinguística, amplamente respaldada pela teoria bakhtiniana. Em trabalhos anteriores[1], procurei salientar como muitos dos conceitos postulados por Bakhtin (1929/1997) podem ser mobilizados para abordar questões relativas às alterações de linguagem nas patologias, pois ultrapassam os limites dos modelos teóricos e abstratos. Dentre esses conceitos, destaco como exemplos os de enunciado, acabamento, querer-dizer (ou intuito discursivo), excedente de visão, compreensão ativo-responsiva, dialogia e interação.
Mais recentemente, tenho buscado compreender a complexidade do conceito de ato ético e responsável (Bakhtin, em sua obra Para uma filosofia do ato responsável; Sobral, 2005a,b; Faraco, 2009; Amorim, 2006, 2009). Tal interesse não se justifica, evidentemente, por sua aplicação direta em alguma instância de análise, mas porque o conceito sintetiza uma postura com relação ao agir na vida, que abrange também nossas atividades de docência e nas pesquisas; as escolhas teórico-metodológicas que devemos fazer – de modo responsável - o tempo todo. A reflexão aqui apresentada deve ser vista apenas como um recorte de questões mais amplas e privilegia o tema da ética, buscando inserir-se no contexto da temática proposta para o III Círculo: Rodas de Conversa Bakhtiniana, de 2010.
A discussão respalda-se também nas experiências e práticas acumuladas ao longo de quase trinta anos de pesquisas com as afasias[2] no IEL/UNICAMP, desde os primeiros estudos de Coudry (1986/1988), à luz da perspectiva enunciativo-discursiva, que levaram ao desenvolvimento de princípios teórico-metodológicos tanto para a avaliação de linguagem nas patologias, quanto para orientar condutas terapêuticas, considerando-se o papel do sujeito como central, como aquele que atua sobre os recursos abstratos da língua para produzir significados, em enunciados reais (Bakhtin, 1929/1997).
Alguns dos princípios que norteiam nossas pesquisas são apresentados aqui não apenas visando contrapor as abordagens enunciativo-discursivas às práticas tradicionais, mas também, principalmente, para discutir a natureza ética do trabalho realizado com sujeitos afásicos[3]. As práticas desenvolvidas nos grupos do CCA (Centro de Convivência de Linguagem) têm como base a interação, a construção dialógica da significação, entre parceiros da comunicação verbal – afásicos e não-afásicos. O conhecimento multidisciplinar, advindo da Linguística e de outras áreas (neurologia, neuropsicologia, neurofisiologia, dentre outras), permite desenvolver um excedente de visão com relação aos fenômenos patológicos que comprometem a linguagem, o que por sua vez torna possível ajudar os sujeitos a superar suas dificuldades e limites. Lidamos juntos com a incompletude da linguagem e também da condição humana.
Consideramos, portanto, questões de natureza sócio-culturais e também subjetivas (como os diferentes modos que os afásicos encontram para enfrentar suas dificuldades, desenvolvendo recursos alternativos de significação), lidando ainda com o sofrimento dos sujeitos quando não conseguem alcançar seu querer-dizer (Bakhtin, 1929/1997). Buscamos, pelo efeito das práticas dialógicas, nas sessões coletivas dos grupos do Centro de Convivência de Afásicos (CCA), a (re)inserção dos afásicos como sujeitos sociais e da linguagem, incentivando-os a reagir e a lutar não só contra a patologia, mas também contra o preconceito linguístico e social do qual são vítimas.
Tais questões, de natureza ético-filosóficas, são inspiradas por vários autores de vertentes sócio-histórico-culturais, com destaque para as produções do Círculo de Bakhtin, desde o início da década de vinte do século XX. Os primeiros escritos deste autor, segundo Faraco (2009), pautaram toda a sua obra, sobretudo as reflexões sobre linguagem, dialogia, alteridade e sobre a ética.
Segundo Bakhtin, cada sujeito é responsável e responde (deve responder) pelos seus atos. A ética é um conjunto de obrigações e deveres concretos, sendo que o ato de pensar é o mais fundamental compromisso humano. Essa afirmação, sem dúvida, nos move; desloca-nos de posições possivelmente mais cômodas. Nesse sentido, podemos afirmar que “acomodar-se” em uma forma de pensar, repetindo o que se faz numa certa abordagem teórico-metodológica, ou porque é mais aceita numa comunidade científica, ou porque tem mais prestígio - não pode ser considerado ético, nem tampouco responsável.
Sobral (2007), quando se refere à ética na pesquisa em Ciências Humanas, tendo a teoria bakhtiniana como base, afirma que o empreendimento teórico que esquece as especificidades do objeto, sua singularidade, sua inserção particular é teoreticista e absolutista. Nas palavras do autor, “um trabalho que propõe encerrar o objeto na camisa-de-força da teoria, ou das limitações do pesquisador, não é propriamente pesquisa, mas prática relativista que só vê no espelho do outro aquilo que ele mesmo lá inseriu”.
A neuropsicologia e a neurolingüística tradicionais podem ser tomadas como bons exemplos do que o autor chama de postura teoreticista, uma vez que descartam das análises justamente as singularidades, o sujeito, o individual, em nome de modelos generalizantes, abstratos. A linguagem é reduzida à “língua”, da forma mais redutora possível. As unidades de análise são as palavras e as orações, que também passam a ser centrais no trabalho terapêutico[4]. Higienizam os dados para corroborar modelos componenciais, modulares que, segundo Sachs (1995), representam uma neurologia mecanicista, essencialmente concebida como um sistema de capacidades e conexões. Segundo o autor, torna-se necessário desenvolver uma teoria que se estabeleça a partir de princípios novos, pois “nossa concepção do sistema nervoso – como uma espécie de máquina ou computador – é radicalmente inadequada e precisa ser suplementada por conceitos mais dinâmicos, mais vivos”.
A ciência do século XX orienta-se por modelos idealizados. Nela, o normal tem como parâmetro o ideal. Sacks (1997:18)[5] afirma que “a neurologia clássica está mais voltada para os esquemas do que para a realidade”, ao falar do tipo de estudos realizados sobre as síndromes do hemisfério esquerdo. É em noções como as de falante-ouvinte ideal, cérebro médio, processamento normal, que a Neuropsicologia busca suporte para suas teorias. Nesses modelos reflete-se a concepção de língua como um sistema estático, fechado. Não há neles espaço para a variação individual, não há movimento, não há dinamismo, não há sujeito.
Por tratar-se de uma área híbrida, a Neurolinguística encontra-se num terreno de enfrentamentos (muitas vezes de conflitos) entre os paradigmas das áreas que a constituem – as Neurociências e a Linguística. Embora busquem se aproximar, na tentativa de compreender os objetos que têm em comum – cérebro, linguagem, cognição - há muitas barreiras que dificultam o diálogo entre elas, com destaque para a metodologia de abordagem dos fenômenos linguístico-cognitivos. As neurociências prezam o chamado “método científico”, quantitativo, estatístico, pretensamente neutro e objetivo; o conhecimento científico só é validado quando derivado desse método. A esse respeito, Faraco (2009, p.37) afirma, baseando-se no pensamento de Heidegger, que a ciência não pensa:
A racionalidade científica se funda no gesto primeiro de calculabilizar o mundo, isto é, ela precisa ver o mundo como objetividade calculável para que possa predeterminá-lo o tempo todo (Seminários, p. 177). S[o assim é que a ciência pode instalar-se num domínio de objetos e alcançar seus resultados. Não pensar é, portanto, sua vantagem: basta-lhe submeter-se ao primado do método – “a própria ciência nada mais é do que o método” (Seminários, p. 136).
A discussão se torna ainda mais importante e complexa quando se tem como cenário o espantoso desenvolvimento tecnológico que marcou o final do século XX e que caracteriza o início do século XXI, sobretudo na área de neuroimagem. Uma quantidade substancial de trabalhos realizados nas neurociências tem como objetivo não só postular modelos de processamento lingüístico, mas indicar quais substratos neurais participam de funções complexas como linguagem e memória, à semelhança do que se pode afirmar sobre processos primários como percepção visual, auditiva e tátil-cinestésica.
Esses trabalhos representam, a meu ver, uma tendência neo-localizacionista ou neo-frenológica nas neurociências. Nas palavras de Foucault (1963/1998), representam a vontade de verdade deste século. Ao contrário das primitivas técnicas utilizadas no século XIX, por Gall e seus seguidores, que apalpavam os cérebros dos pacientes nas autópsias a fim de descobrir protuberâncias ou lesões que justificassem o estabelecimento de seus mapas frenológicos[6], a utilização da neuroimagem se estabelece no século XXI como o instrumento mais respeitado para revelar verdades acerca do funcionamento cerebral. Para Bakhtin, quando um modelo não é tomado apenas como modelo, mas sim para se referir a um todo real, em toda a sua complexidade, trata-se ficção científica (Bakhtin, 1929/1997).
Para Sachs(1997), nos estudos das neurociências deve ser central a questão da relação do sujeito com sua doença, o caráter pessoal de um caso, pois:
uma doença nunca é uma simples perda ou excesso; existe sempre uma reação, por parte do organismo ou indivíduo afetado, para restaurar, substituir, compensar e preservar sua identidade, por mais estranhos que possam ser os meios; e estudar ou influenciar esses meios, tanto quanto o dano primário ao sistema nervoso, é uma parte essencial de nosso papel (...).
A relação do sujeito com a sua afasia é um dos fatores que podem nos ajudar a compreender muitas das variações observadas nos estudos da linguagem nas patologias. Essa relação é desprezada pela maioria dos estudos tradicionais que visam objetividade e, para isso, subtraem justamente o sujeito.
Retomando a questão da relevância que Bakhtin atribui ao ato de pensar, bem como a de agir eticamente, responsavelmente, retomo também Sobral (2005), quando afirma que:
se o objeto revela algo que o pesquisador julga inaceitável ou coisa dessa natureza, é ética a atitude de reconhecê-lo. (...) Por outro lado, não age eticamente o pesquisador que, ao elaborar seu texto de pesquisa, escamoteia as hipóteses refutadas ou as elimina cuidadosamente para manter seu arcabouço teórico ou de outra natureza.
Considerar essas questões implica em uma mudança substancial com relação aos procedimentos metodológicos de avaliação e de acompanhamento terapêutico na reconstrução dos processos de significação pelos sujeitos afásicos – o que por sua vez contribui para uma teorização baseada em princípios novos, que valoriza outras formas de razão científica. Nas palavras de Faraco (2009), “estabelecer, num mundo dominado pelo pensamento científico, um espaço para outra racionalidade”. Trata-se, portanto, de uma escolha e, como tal, devem ser consideradas todas as implicações que derivam de nosso ato, pois por ele devemos responder sem álibi.
Referências Bibliográficas
AMORIM, M. Ato versus objetivização e outras oposições fundamentais no pensamento bakhtiniano. In: FARACO, C. A; TEZZA, C.; CASTRO, G (orgs). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin, Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 17-24.
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BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. In: Para uma filosofia do ato responsável. Organização de Augusto Ponzio & GEGE/UFSCAR. (Trad. Valdemir Miotello & Carlos A. Faraco). Pedro & João Editores, 2010.
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BEILKE, H. & NOVAES-PINTO, R. A narrativa na demência de Alzheimer: reorganização da linguagem e das memórias por meio de práticas dialógicas. In Revista Estudos Linguísticos, V.39, n.2, p. 557 – 567. São Carlos, 2010.
CAZAROTTI, M. & NOVAES-PINTO, R. Aspectos discursivos da narrativa de um sujeito afásico fluente. In: Revista Estudos Linguísticos. V.39, n.2, p. 568 – 577, São Carlos, S.P, 2010.
COUDRY, M. I. H. Diário de Narciso - discurso e afasia. Campinas: Martins Fontes, 1988.
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FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1963/1998.
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_____Preconceito lingüístico e exclusão social nas chamadas patologias de linguagem. In Avesso do Avesso, Revista de Educação. FAC-Araçatuba, SP, 2008.
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VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. São Paulo, Martins Fontes, 1984, p.132.
[1] Novaes-Pinto, 1999, 2002, 2007a,b, 2008 e 2009a,b; Novaes-Pinto & Beilke, 2008; Novaes-Pinto & Santana, 2009a,b; Beilke & Novaes-Pinto, 2010; Cazarotti & Novaes-Pinto, 2010. Referências completas ao final deste texto.
[2] Afasias são alterações de linguagem em decorrência de lesões focais no cérebro, causadas por AVCs (derrames), traumatismos crânio-encefálicos, tumores, dentre outras possíveis causas e podem comprometer tanto os processos de produção quanto de interpretação da linguagem.
[3] Mais recentemente, vimos estudando também alterações de linguagem em outras patologias, dentre as quais a Demência de Alzheimer, os atrasos de linguagem, dislexia, epilepsia e surdez.
[4] Essas unidades estão na base da formulação das baterias de testes neuropsicológicos, compostas por tarefas como repetir, completar, copiar; todas descontextualizadas e sem nenhuma relação com o uso efetivo da linguagem (Coudry, 1986/1988; Novaes-Pinto, 1999, dentre outros)
[5] SACKS (1997), na Introdução de seu livro The man who mistook his wife for a hat and other clinical tales, cuja primeira edição data de 1970.
[6] O objetivo dos mapas frenológicos era o de correlacionar áreas anatômicas a faculdades mentais específicas.
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