Elaine Deccache Porto e Albuquerque
Dentre tantas reflexões que a teoria de linguagem bakhtiniana nos convida a mergulhar, escolho a de pensar no lugar de tensão permanente, ao admitirmos, por exemplo, a singularidade dos atos e pensamentos humanos no decorrer de cada existência, única, e, ao mesmo tempo, considerar “a expressão social da experiência mental”, no dizer do próprio Bakhtin.
Podemos afirmar que a filosofia de linguagem de Bakhtin nos põe em contato com uma concepção radicalmente social de homem. Sua teoria de linguagem propõe que o conteúdo de uma enunciação, como forma de expressão individual, se constitui a partir de um código de signos que é exterior ao indivíduo. Para Bakhtin, o eu não é autônomo, pois necessita da colaboração dos outros para tornar-se autor de si mesmo: existe somente em diálogo com outros eus. Assim, para ele, a língua, encarada como um sistema objetivo, não poderia dar conta das relações entre sujeitos reais e concretos, imersos em dinâmicas sociais historicamente dadas, das quais participam de forma ativa e responsiva.
Bakhtin assinala que o signo linguístico se realiza no processo da relação social: é marcado, assim, pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados. Segundo ele, é a vida social que oferece o material que dará origem aos signos. Dessa forma, esse processo não pode ser explicado a partir da consciência individual, já que o signo é criado entre os indivíduos no meio social: sua significação é, portanto, interindividual. Daí a afirmação de que a atividade mental do sujeito, bem como sua manifestação exterior, se constitui a partir do território social.
É importante perceber que, para o filósofo, não só a atividade mental é expressa, exteriormente, com o auxílio do signo, mas que para o próprio indivíduo, ela só existe em forma de signo. Por outro lado, o signo ideológico exterior adquire vida, ao “banhar-se nos signos interiores, na consciência, através de um processo sempre renovado de compreensão e emoção” (Bakhtin,1995, p. 57). Para Bakhtin, o signo ideológico, como processo interior individual, precisa ser expresso para se aperfeiçoar, se afirmar e marcar sua diferença, pois, para ele, não há uma fronteira estabelecida entre o psiquismo e a ideologia, há uma diferença de grau.
“No estágio do desenvolvimento interior, o elemento ideológico, ainda não exteriorizado sob a forma de material ideológico, é apenas um elemento confuso. Ele não pode aperfeiçoar-se, afirmar-se a não ser no processo de expressão ideológica. A intenção vale menos que a realização (mesmo falha)”. (Bakhtin, 1195, p. 57)
Vale também dizer que Bakhtin considera a comunicação ideológica na vida cotidiana como extraordinariamente rica e importante, na medida em que é esse o lugar em que a conversação e as formas discursivas se situam por meio da palavra,como material privilegiado dessa comunicação.
Segundo Jobim e Souza (1995), Bakhtin usa o termo ideologia do cotidiano para falar de uma linguagem desordenada e não fixada num sistema. Ao nos manifestarmos por meio de cada gesto, atos ou palavras, expressamos a ideologia do cotidiano e permitimos que a moral, a arte, a religião e a ciência, como sistemas ideológicos constituídos, se cristalizem a partir dela. O filósofo, ao enfatizar a necessidade da expressão ideológica, opta por uma concepção de linguagem que não aceita sistematização rígida. Ao contrário, a vê como um processo contínuo de construção de sentidos e, por isso, capaz de interferir, de transformar.
Ao observar o fenômeno da interação verbal na vida social, em meio às várias enunciações, Bakhtin chama a atenção para o fato de que a nossa compreensão em relação a ele não pode ser reduzida ao reconhecimento de uma forma linguística familiar, conhecida. O essencial é perceber a enunciação dentro de um contexto concreto preciso: somente aí é possível reconhecer seu caráter de novidade e não, simplesmente, sua conformidade à norma.
Ao reivindicar a expressão do que pensamos, Bakhtin nos convida a manifestar a singularidade do nosso olhar, do nosso entendimento, enfim, da nossa voz em relação aos acontecimentos na vida, o que nos faz pensar que nossas palavras e expressões são atos. Em que medida temos consciência da singularidade dos nossos atos linguísticos?
Ao admitir a singularidade da experiência subjetiva, Bakhtin, sustentando a tensão, nos alerta para o fato de que ela se constitui na vida, participando dos acontecimentos e imersa num imenso auditório. É aí que ele convoca o Ser a viver sua existência única e nela, assumir a responsabilidade que é sua, enquanto pensa, se expressa e cria.
O texto em que Bakhtin trata especificamente desse tema é um escrito de sua juventude, intitulado Para uma Filosofia do Ato, que até quase o fim de sua longa vida ficou desconhecido. Foi produzido entre 1919-1921 e é reconhecido como um dos seus textos mais antigos.
Segundo Holquist (1993), enquanto Bakhtin trabalhava em Para uma filosofia do ato, ele lia Kant em profundidade, bem como debatia e dava aulas sobre o filósofo. Assim, talvez possamos considerar que esse texto foi uma espécie de réplica à mobilização que o pensamento de Kant operou no próprio Bakhtin, ou seja, uma expressão do dialogismo na construção do conhecimento, uma idéia que Bakhtin veio a desenvolver mais tarde.
Nesse texto, Bakhtin constata uma cisão entre o pensamento teórico discursivo (das ciências, da filosofia e da arte) e a experiência histórica do ser humano no acontecimento real de sua existência, expressa num conjunto de atos ou ações no campo da vida. Ou seja, o aspecto abstrato do pensamento teórico que pretende explicar os atos humanos na vida, ao funcionar como um pensamento ou juízo universalmente válido, só têm valor à medida em que permaneçam em seu domínio apropriado, qual seja, o domínio teórico.
Bakhtin manifesta seu incômodo em relação ao juízo universalmente válido porque, para ele, embora este esteja incluído na avaliação de qualquer ato ou ação individual, ele não esgota a compreensão deste ato em sua singularidade. No entendimento do filósofo, a vida de alguém, como um conjunto singular de pensamentos e atos realizados, compõe uma experiência que escapa à pretensão de um juízo universalmente válido pois este, em sua imaterialidade, é completamente impenetrável à materialidade da existência situada e responsável de alguém. Assim, cada um que esteja pensando e, portanto, seja responsável pelo seu ato de pensar, não está presente no juízo teoricamente válido, ou por outra, a vida singular de cada um de nós não existe dentro de uma perspectiva de veridicidade formal ou teórica. Nesse sentido, o pensamento de Bakhtin postula a existência de dois mundos que se confrontam e que não mantêm absolutamente comunicação entre si, quais sejam, o mundo da vida e o mundo da cultura. O mundo da vida, sendo o único em que nós criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos e morremos, é também o mundo que oferece um lugar para os nossos atos, os quais são realizados uma única vez no decorrer singular e irrepetível da nossa vida realmente vivida e experimentada. E o mundo da cultura é aquele no qual os atos da nossa atividade são objetivados ou representados.
Bakhtin deixa claro que não há um plano unitário e único que possa determinar, entre esses dois mundos, uma relação de unidade: pelo contrário, o mundo da vida e o mundo da cultura são impenetráveis. Somente o evento único da existência do Ser, em seu acontecer, pode constituir essa unidade. Desse modo, a expressão de um conteúdo teórico ou estético deve ser determinado como um momento constituinte do evento único da existência do Ser, embora este momento não seja mais visto em termos teóricos ou estéticos e, sim, como um ato ou ação responsável. O ato responsável instaura um plano unitário e singular que se abre em duas direções: na construção de seu sentido ou conteúdo e na construção do próprio Ser como evento único. Assim, no ato se unificam o mundo da cultura e o mundo da vida, ou seja, a responsabilidade do ato é a única via pela qual a perniciosa divisão entre a cultura e a vida poderia ser superada (Bakhtin, 1993, p. 20).
Para Bakhtin, tomar o dever como a mais alta categoria formal é a expressão de um equívoco, pois ele só pode funcionar como fundamento, ou marcar uma presença real de referência na vida singular de alguém, dentro de um tempo histórico concreto em que a vida desse alguém se desenrola. Ainda assim, ele se apresentará como uma referência em relação a qual alguém sempre poderá se posicionar. Nas palavras do próprio Bakhtin: “o momento da veridicidade teórica é necessário, mas não suficiente, para fazer de um juízo um juízo de dever para mim; que um juízo seja verdadeiro não é suficiente para transformá-lo num ato de dever do pensamento” (Bakhtin, 1993, p. 22).
Ao pensar sobre o dever, Bakhtin argumenta que, se ele fosse um momento formal de juízo, não haveria ruptura entre o campo da vida e o campo da cognição ou campo da cultura, o que não é o que se vê, pois: “a afirmação de um juízo como um juízo verdadeiro é relacioná-lo a uma certa unidade teórica e essa unidade não é, de modo algum, a unidade histórica da minha vida”. (Bakhtin, 1993. p.22)
Como explica Amorim (2003), o pensar verdadeiro se torna um dever ético, ao correlacionar a verdade com o ato de pensamento real. Assim, a responsabilidade por aquilo que penso em um dado momento, ou seja, a assinatura do meu ato de pensar concretiza o dever ético. A assinatura é o que me compromete com o dever e não uma proposição teórica: esta não me obriga a nada. A verdade da situação está no que se apresenta como singular, no que surge e é totalmente novo, algo que nunca existiu e nunca se repetirá.
Em Para uma filosofia do ato, Bakhtin segue refletindo sobre a distância que constata, também, entre o mundo da visão estética e o mundo real no qual se vive. Mas essa é uma discussão que pode se aprofundar nas rodas de conversa...
Por enquanto, fica expresso o meu desejo de trocar ideias sobre as nuances que o jogo de linguagem de Bakhtin encerra, ao nos convidar a pensar por meio de conceitos tais como responsabilidade, veridicidade, ato, Ser como evento único e mais tantos outros. Na verdade, a aventura intelectual de mergulhar na teoria bakhtiniana não nos deixa escapar de enfrentar as implicações e compromissos dessa forma de pensar.
Referências bibliográficas
─ Bakhtin M., M. (Volochínov, V.N.). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1995.
________ Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza da edição americana Toward a philosophy of the act. Austin: University of Texas press, 1993. (tradução destinada exclusivamente para uso didático e acadêmico)
─ Jobim e Souza, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas: Papirus, 1995.
─ Amorim, Marília. Ato versus objetivação e outras oposições fundamentais no pensamento bakhtiniano. Trabalho apresentado na XI Conferência internacional sobre Bakhtin, Curitiba, julho de 2003.
Elaine Deccache Porto e Albuquerque ─ Doutora em Psicologia pela PUC-Rio. Orientadora Educacional da Educação Infantil do Colégio Teresiano CAP/PUC.
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